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Pantera Negra: Wakanda Para Sempre

Novo filme fala sobre o luto pelo protagonista mas peca ao se estender em personagens demais e tramas paralelas subdesenvolvidas

Texto por Andrizy Bento

Foto: Marvel/Disney/Divulgação

“Só as pessoas mais feridas podem ser grandes líderes”

Sequência do grande sucesso de público e crítica Pantera Negra, de 2018, este Pantera Negra: Wakanda Para Sempre (Black Panther: Wakanda Forever, EUA, 2022 – Marvel/Disney) deveria ser um um filme sobre Shuri, uma produção que se dedicasse a mostrar o crescimento da personagem interpretada pela atriz Letitia Wright, que se obriga a amadurecer após inúmeras perdas. Toda a tragédia em seu entorno daria consistência à jornada da heroína e seria enredo suficiente para um longa, tendo como mola-mestra o luto pela morte do irmão, o rei T’challa (Chadwick Boseman). Uma base lúgubre, triste, mas funcional e eficiente para situar a heroína no panteão de super-heróis que é o MCU (Universo Cinematográfico da Marvel). Porém, é Hollywood e Wakanda Para Sempre faz parte de uma safra de produtos que ultrapassou o nicho ao qual era destinada no passado. Não apenas os fãs de quadrinhos de super-heróis consomem esses filmes hoje em dia. Já há um tempo eles abrangem o público em geral.

Portanto, é necessário fanservice para agradar aos marvetes, introduzindo tudo o que for possível da mitologia dos quadrinhos; contextualizar esse fanservice para atingir os espectadores que não conhecem a base original; e, considerando que a Marvel Studios optou por não escalar um substituto para Boseman (falecido em 2020, vítima de um câncer de cólon) seja por carinho ao saudoso ator ou por preferir não despertar a fúria dos ardorosos fãs, em uma demonstração solene de respeito, compor uma obra cuja essência é o luto pelo rei T’Challa e um tributo a Boseman. Toda a história de sucessão protagonizada por Shuri tem esse sabor agridoce de despedida ao intérprete de Pantera Negra, além de ser intercalada por diversas tramas paralelas. O resultado é um longa sem unidade, que aponta para vários lados. É difícil dar coesão a todos os núcleos narrativos. O diretor Ryan Coogler não parece se esforçar muito para alcançar tal objetivo, contentando-se com épicas cenas de ação e profusas sequências de pesar pela perda de T’Challa. É grandioso na embalagem, porém razoável no conteúdo.   

O que fez Pantera Negra se destacar dentre os longas da franquia MCU nos cinemas, levando-o até mesmo a concorrer ao Oscar de melhor filme, era o equilíbrio do conjunto. Coogler apostou em uma lenda fascinante, com cenas de ação certeiras e uma crítica ao imperialismo americano. Em sua essência, a produção de 2018 era feliz e bem-sucedida ao construir nas telas uma mitologia convincente, envolvendo cerimônias ritualísticas e fortes representações culturais que fundamentam Wakanda sem dispensar as boas e velhas lutas coreografadas, explosões e perseguições que fazem a festa dos fãs de blockbusters e ainda trazia uma base política sólida ao discutir racismo e colonialismo. Wakanda Para Sempre apresenta todos esses elementos, mas de maneira desorganizada e totalmente over.

A homenagem a Chadwick Boseman tem início nos créditos de abertura, continua na bela sequência inicial que representa a cerimônia fúnebre e se estende por toda a história. Após a morte de T’Challa, a rainha Ramonda (Angela Bassett) faz o possível para proteger sua nação de poderosos líderes estrangeiros que buscam se apossar do vibranium (metal fictício encontrado em abundância em Wakanda, que possui a capacidade de absorver todas as vibrações em sua proximidade, bem como a energia cinética direcionada a ela e faz com que a terra natal do Pantera Negra seja rica e poderosa), ao mesmo tempo em que tem de lidar com o luto pela perda do filho e tentar uma conexão com a filha, Shuri, que parece ter se fechado em um casulo após a morte do irmão.

Nesse ínterim, entidades do governo descobrem que Wakanda não é o único lugar a possuir vibranium, identificando-o também no fundo do oceano por meio de um detector construído especificamente para rastrear o elemento. A matéria é proveniente do reino submarino governado por Namor (Tenoch Huerta), um mutante com poderes extraordinários derivados de sua herança genética incomum, com fisiologia anfíbia, força sobre-humana, supervelocidade e pés alados que garantem a ele a capacidade de voar. Ao tomar conhecimento do detector de vibranium, Namor entra em contato com Wakanda a fim de solicitar apoio para que capturem a cientista responsável pela invenção. Riri Williams (Dominique Thorne) é uma jovem universitária que não faz ideia que é o principal alvo dessa caçada. Em meio a tudo isso, Shuri precisa encontrar seu lugar entre as lideranças de Wakanda, digladiando com o próprio rancor e sentimento de vingança que a consome.

O elenco numeroso e as diversas tramas paralelas centradas em diferentes personagens tornam os já eloquentes 161 minutos de Wakanda Para Sempre insuficientes para trabalhar tanto material. Por isso mesmo, várias discussões interessantes acabam exploradas de maneira superficial, alcançando um nível muito raso de debate. É o caso, por exemplo, da tão alardeada (ao menos nos materiais de divulgação!) liderança feminina, que ganha pouca substância. Outros temas trabalhados com pouca profundidade neste exemplar afrofuturista da Marvel são justamente a questão racial e o imperialismo americano. Há muita coisa acontecendo na tela e, ainda assim, o roteiro peca ao não se aprofundar em nenhuma delas: a tentativa de focar em Shuri, as introduções de Namor e Riri Williams e o plot envolvendo o agente Everett Ross (Martin Freeman). Todas essas tramas socadas em um único longa tornam o enredo desequilibrado.

Entendo que Wakanda Para Sempre ocupa uma posição difícil na franquia dos Vingadores. O longa tinha a ingrata função de “substituir” o herói de forma nobre, sem ferir seu legado. Mas toda essa construção aliada à introdução de duas personagens importantes transforma o longa em um bolo de noiva e é justamente o desenvolvimento de Shuri que acaba ofuscado. É até irônico, pois, mesmo sem querer, a personagem já acenava para essa possibilidade desde o ritual de desafio no primeiro longa. A pedra angular deste longa-metragem deveria ser a preparação do terreno para que, aos poucos, Shuri ganhasse protagonismo.

Há um momento em que a princesa pergunta a Namor o porquê de estar lhe contando tudo isso. E eu não resisti e respondi mentalmente: porque filmes hollywoodianos têm a mania de serem expositivos demais e contar origens por meio de flashbacks manjados. A insistência da indústria em subestimar a inteligência do público se baseia na crença de que o espectador não vai ser capaz de acompanhar uma história na tela se tudo não for devidamente explicado.

Se já não bastasse o excesso de tramas que incham o longa, a montagem vacila em diversos momentos, especialmente ao mostrar os desdobramentos de lutas tão definitivas, intercalando ambas e tirando o impacto do desfecho das duas. Como tradição dos filmes do estúdio, este não foge à regra de apresentar embates corporais repletos de cortes secos e abruptos. O design de produção continua primoroso e as cenas pirotécnicas que se desenrolam tanto em terra firme como no mar são empolgantes, embora o longa peque pela falta de contrastes, especialmente nas cenas que se passam no reino de Namor, Talokan. A trilha sonora é composta de vários temas interessantes, mas o conjunto da obra é deveras saturado. Há todo um cuidado em retratar a cultura dos wakandanos, explorando seus costumes e a mitologia dos povos que ocupam aquele território. O mesmo não acontece com os talokans. Mas nem vou reclamar nesse quesito, porque, além da certeza de que Namor regressará, isso só tornaria a produção ainda mais longa e modorrenta. Por falar nisso, a guerra entre as duas nações é maniqueísta e bidimensional, abusando de um artifício muito raso para deflagrar o conflito.

O filme que encerra a fase mais criticada do MCU também é um reflexo da mesma, composta de filmes muito apoteóticos em suas intenções, mas inchados ou apáticos em seus resultados. Wakanda Para Sempre é emocional em diversas passagens, especialmente ao rememorar T’Challa. É conceitual, ao abordar o luto cinematograficamente, mostrando como cada figura do elenco lida com a morte do personagem, do ator e do amigo. Mas não é funcional, não possui um fim, um objetivo. Um demérito irreparável quando nos referimos a obras cinematográficas. Eis um tributo a Chadwick Boseman que não faz a devida justiça a seu homenageado. 

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Judas e o Messias Negro

História dos últimos momentos de vida de líder revolucionário encerra trilogia fortemente realista e historiográfica do povo negro dos EUA

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Warner/Divulgação

Os dois últimos longa-metragens de Spike Lee sugerem uma abordagem fortemente realista, até mesmo historiográfica, de pontos-chave da história do povo negro nos Estados Unidos. Enquanto Infiltrado na Klan desvenda o plano de Ron Stallworth ao infiltrar-se na racista Ku Klux Klan, Destacamento Blood explora o sangrento passado da Guerra do Vietnã, cujas vidas perdidas eram majoritariamente negras.

Para fechar a conta, Judas e o Messias Negro (Judas and the Black Messiah, EUA, 2020 – Warner) mergulha nos últimos momentos de vida do pantera negra Fred Hampton Jr, bem como na tortuosa traição cometida por William O’Neal, infiltrado no partido pelo FBI e corresponsável por seu assassinato. O interessante, no entanto, é que Spike Lee não está, de modo algum, envolvido neste último. Pelo contrário, a obra é dirigida por Shaka King e produzida por Ryan Coogler (o diretor de Pantera Negra).

A proposta de encarar Judas como o “sucessor espiritual” e, portanto, terceira peça dessa trilogia com as obras de Lee surge, naturalmente, a partir da clara inspiração de King no cinema daquele. A abordagem acima chamada de “historiográfica”, que abre e encerra seu discurso com imagens potentes de uma realidade completamente factual ao mesmo tempo que escondida, determina o tom deste longa-metragem.

A sombria trama decide focar em O’Neal (LaKeith Stanfield) e sua psique enquanto trai o líder revolucionário (Daniel Kaluuya) em quem, conforme se aproxima, passa a acreditar. Assim, o filme é capaz de escapar de um tratamento panfletário de seu tema político – a saber, o Partido dos Panteras Negras, associação socialista americana que defendia a revolução armada contra a violência policial e racismo estrutural na sociedade estadunidense – ao aprofundar-se no conflito interno imensurável do traidor de uma causa que lhe é cara. 

Ao não reduzi-lo a um comentário histórico-político externo a si mesmo, Shaka King consegue utilizar desse aparato discursivo para significar melhor sua narrativa. O diretor é capaz de explorar não somente a relação entre Hampton e O’Neal, mas no conjunto de relações que surge com diversas personagens presentes no Partido dos Panteras Negras. Dessa forma, é uma ótima escolha que um filme cuja mensagem de sobreposição do indivíduo para o coletivo (com o impactante slogan “você pode matar um revolucionário, mas não pode matar a revolução”) não se ampare somente na dinâmica entre os protagonistas. Há uma preocupação com a dimensionalidade de cada personagem, criando uma rede de relações íntimas e potentes que elevam a narrativa e amplificam a mensagem política inerente à trama.

Ainda, King demonstra uma competente manipulação das tensões trabalhadas no filme, amplificadas pela ótima trilha de Craig Harris e do veterano Mark Isham, que experimentam com a cozinha do jazz (isto é, baixo e bateria) isolada. Assim, o peso de elementos melódicos é gritante – uma dinâmica que torna capaz o impacto da utilização de “Symbiosis”, de Bill Evans, como motif para o romance entre Hampton e sua esposa, Deborah (interpretada pela ótima Dominique Fishback).

Judas e o Messias Negro é, em última análise, um filme muito tenso, porém capaz de atenuar a agonia por meio do balanço oferecido por seu roteiro. Drama, romance e amizade são equilibrados em uma história política em conteúdo e forma. A visibilidade de figuras oprimidas, como esse líder político assassinado aos 21 anos, é pauta em crescimento no cinema hollywoodiano. Com King, Coogler e, claro, Lee assumindo as rédeas, pode-se esperar bons filmes como esse.

>> Judas e o Messias Negro concorre no dia 25 de abril ao Oscar 2021 em seis categorias: filme, ator coadjuvante (duas vezes), roteiro original, fotografia e canção original

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Um Funeral em Família

Tyler Perry volta a encarnar o personagem Madea em comédia repleta de obviedades e estereótipos

um funeral em familia

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Paris Filmes/Divulgação

Há uma corrente argumentativa que nega a necessidade de obras enaltecendo a representação da população negra nos cinemas e sustentam que filmes como Pantera NegraMoonlight e Infiltrado na Klan não fazem serviço algum ao povo que representam. Pois bem: Um Funeral em Família (A Madea Family Funeral, EUA, 2018 – Paris Filmes) se coloca como prova cabal de que tais filmes se fazem necessários.

Mais uma história de Tyler Perry protagonizando o personagem Madea, Um Funeral Em Família parece revolver em torno da morte de Anthony (Derek Morgan), o patriarca da família da “icônica” idosa, mas sua estrutura é desenvolvida de forma a introduzir o funeral apenas na segunda metade do filme. Não vale muito construir esta resenha em torno da trama. Afinal, é claro, ela é ignorada completamente pelo roteirista, diretor, produtor e protagonista.

Perry interpreta assombrosos quatro personagens, sendo três desenvolvidos em cima das próteses de rosto. Seus alter-egos masculinos, Joe e Tio Heathrow, são monótonos e resumem-se a piadas de cunho extremamente machista ou racista. Madea também replica este humor lastimável, com maior ênfase em sua história criminal. Claro, todos têm sua própria ficha policial quilométrica, como bons negros (o diretor afirma isso durante o filme quase explicitamente). Para completar o núcleo de idosos, Bam (Cassi Davis) e Hattie (Patrice Lovely) são a ridicularização da mulher negra levada ao próximo nível. A título de comparação, a linguagem corporal de Hattie recorda Jim Crow, clássica figura do humor racista americano, revisitada recentemente por Childish Gambino no clipe da faixa “This Is America”.

Os demais personagens não escapam uma cena sequer do estereótipo que representam. Claro, todos os homens são musculosos enquanto as mulheres têm cabelos lisos, corpos definidos e são vítimas de assédio pelo menos uma vez no filme.

A direção de Perry é óbvia em toda chance possível e, com uma montagem peculiarmente diferente, causa estranheza desde sua primeira cena. Ângulos de câmera, posicionamento dos personagens na mise-en-scène e até a razão de aspecto do filme dão a impressão de que este nada mais é que uma sitcom que, por acidente, foi parar nos cinemas.

Gostaria, sinceramente, de ser capaz de apontar bons traços de Um Funeral em Família. Contudo, seu mérito é ser tão indigesto que causou a todos os presentes na sessão em que presenciei a inexplicável vontade de retirar-se do cinema. Por sorte, Tyler Perry já anunciou que largará Madea de vez. O que significa mais espaço para diretores como Barry Jenkins, Jordan Peele e Ryan Coogler no mercado.