Montagem peruana recria tragédia clássica de Shakespeare misturando linguagens e afirmando a representação da neurodiversidade
Texto por Abonico Smith
Foto: Divulgação/Teatro La Plaza
Ser ou não ser? A famosa pergunta que tornou-se o bordão da tragédia escrita por William Shakespeare entre 1599 e 1601 transpassa os séculos cada vez mais enigmática e provocando inquietude. O que transformou Hamlet em um dos maiores clássicos do teatro, sempre rendendo novas e diferentes adaptações dramatúrgicas – inclusive para o cinema e a televisão.
A mais recente iniciativa de recontar a peça centrada no príncipe da Dinamarca que precisa superar a morte do seu pai e destronar o tio vilão, que tomou-lhe o reino ao casar com sua mãe, vem do Peru. Mais precisamente do Teatro La Plaza, uma companhia da cidade de Lima sempre disposta a fazer da criação teatral um diálogo com a comunidade por meio de pontos de vista críticos e processos investigativos não apenas peculiares como também envolvendo a realidade e a atualidade.
Espetáculo escalado para abrir na noite de 27 de março, no Teatro Guaíra, a edição de 2023 de Festival de Curitiba (também conhecido como Festival de Teatro de Curitiba), o Hamlet do La Plaza é levado ao palco de uma forma bem diferente da tradicionalmente conhecida – como bem se alerta no início da montagem. O elenco, formado por oito jovens com síndrome de Down ou com neurodiversidade, busca no clássico britânico um processo de autoconhecimento e expressão sobre suas vidas, sentimentos e percepções. O ser ou não ser aqui envolve a condição de ter a presença de um cromossomo 21 a mais nas células e o desafio de enfrentar o cotidiano no mundo regular dos neurotípicos. Os preconceitos, as superações, as diferenças, as alegrias, os sofrimentos, os sonhos, o humor, a sexualidade, o mergulho em sua própria alma, tudo ali é justaposto por cada ator e atriz ao processo de montagem de Hamlet. Cada um no palco tem a sua vez de interpretar o príncipe e usar sua coroa na cabeça enquanto encenam momentos-chave da narrativa dramatúrgica shakespereana e misturam detalhes de suas próprias vidas. Só que a pesquisa não se resume ao protagonista. Eles se dedicam também a dissecar Ofélia, Claudio e demais personagens que gravitam ao redor do príncipe dinamarquês.
Portanto, traição, vingança e morte aqui também há. Mas também há muito mais. A natureza transmídia do La Plaza insere nesta encenação o século 21 do uso de câmeras de celular e videochamadas mais interações da atuação com o uso de dança, filme, vídeo e música. Laurence Olivier e Ian McKellen, dois nomes ligados à interpretação de Hamlet, aparecem de certa forma no palco. Destaca-se também o encerramento catártico ao som do punk rock de “No Soy Como Los Demás” feita pelo grupo peruano de garage e surf music Los Manganzoides. Nesta hora, o elenco exorciza toda a entrega apaixonada já acumulada durante a quase hora e meia da peça decorrida até então. O que só reforça o excelente trabalho de interpretação de Octavio Bernaza, Jaime Cruz, Lucas Demarchi, Manuel García, Diana Gutiérrez, Cristina León Barandiarán, Ximena Rodríguez e Álvaro Toledo. Todos encantadores e com muito talento para o drama (e, claro, também para fazer rir, já que há várias cenas em que a verve cômica é exercida na maciota).
Com roteiro e direção de Chela de Ferrari (o nome à frente do comando do La Plaza) o octeto de Hamlet afirma o orgulho e a representação da neurodiversidade em cima do palco. Depois de assistir a esta montagem não tem como não se apaixonar por esta trupe peruana. E mais: fica impossível não começar a refletir sobre a vida e aquilo que já disse o poeta curitibano Paulo Leminski: isso de ser exatamente o que sé ainda vai nos levar além.
Kevin Parker dribla uma fratura no quadril para guiar os fãs na Argentina em uma hora e meia de catarse psicodélica
Texto por Frederico Di Lullo
Foto: Reprodução
Algumas coisas na vida são inesquecíveis. Você, certamente, irá lembrar para sempre do seu primeiro dia de escola, daquela paixão que arrebatou seu coração ainda adolescente, de uma viagem com amigos ou até mesmo do fim de um relacionamento. Eu, por exemplo, irei me lembrar do show do Tame Impala no Lollapalooza Argentina para sempre. Aconteça o que que acontecer. E agora vou explicar o motivo nesta humilde resenha.
Cheguei no Hipódromo de San Isidro, em Buenos Aires, por volta das 17h do dia 18 de março de 2023 e logo me impressionei com o tamanho do festival. Tudo numa distância longa, com necessários vários minutos de caminhada. O sol estava começando a ficar mais fraco e a temperatura de 34ºC ia diminuindo com a ausência de luz natural. Após presenciar os concertos de Wallows, Jane’s Addiction, Catupecu Machu (uma parte), 1975 (outra parte) e ter tomado apenas duas cervejas por 1100 pesos cada (equivalente a 14 reais; sim, o festival permitia o consumo de apenas duas latas por dia!), chegou o momento de me posicionar defronte ao palco Samsung para poder presenciar pela primeira vez uma das minhas bandas favoritas.
Assim, sete anos depois e com Kevin Parker recentemente submetido a uma cirurgia no quadril fraturado, o Tame Impala voltava para a Argentina, reencontrando-se com um público em verdadeiro frenesi e euforia desmedida. Eram 20h45 em ponto e eu estava junto a dezenas de milhares de pessoas.
E os australianos deram, com toda certeza, um dos melhores espetáculos do Lollapalooza Argentina 2023. Após um vídeo introdutório distópico, no qual era apresentado Rushium, o medicamento psicodélico presente durante toda a turnê do álbum The Slow Rush, o frontman entrou auxiliado por muletas e recebeu uma estrondosa e merecida ovação. Sim, em tempos de cancelamentos repentinos e caprichosos cortes, a atitude de Kevin é louvável e necessária. Obrigado por não desistir de nós!
Assim, sob uma catarse de efeitos visuais, lasers coloridos, overdrives e distorções, o Tame Impala começou sua jornada naquela mistura de pop psicodélico, rock clássico, sintetizadores e indie rock. O set list veio com “One More Year” e, na sequência, “Bordeline”, talvez a música mais popular do seu quarto álbum.
Durante a apresentação da banda, tive diversas sensações e agitos sensorais. Um deles foi, sem dúvida, viajar através dos loops coloridos que a sequência de “Nangs”, “Breathe Deeper” e “Posthumous Forgiveness” proporcionou: uma repetição infinita, profunda e que parecia congelar o tempo. Mas o show continuava e depois rolaram os clássicos absolutos como “Elephant”, “Lost In Yesterday” e “Apocalypse Dreams”.
A física diz que não é possível estar acelerado e, ao mesmo tempo, pairando sem movimento nenhum. Contudo, Parker e companhia demostraram isso no momento de Mutant Gossip, quando todo mundo pareceu mover-se através das ondas que apareciam ao fundo, desaparecendo no oceano de psicodelia. E se diz o ditado popular que“as águas calmas são profundas”, o que veio depois foi o mergulho absoluto ao abismo. Era tempo de “Let It Happen”, “Feels Like We Only Go Backwards”, “Eventually” e “One More Hour, que fechou a primeira parte do show e encontrou a comunhão de corpos dançando como se não houvesse amanhã.
Ainda houve tempo para um bis quiçá um pouco mais introspectivo, mas igualmente enérgico. Aqui foi tocado “The Less I Know the Better” e “New Person, Same Old Mistakes”. Assim, pontualmente às 22h15, o turbilhão colorido psicodélico chamado Tame Impala encerrou sua participação no Lollapalooza Argentina, deixando todos os fãs realmente em êxtase e com muita coisa para processar, entender e viabilizar. Do fundo do meu coração, espero ver novamente eles em breve.
Fumei um cigarro, respirei fundo e corri para assistir ao Twenty One Pilots. Mas essa história conto em outro momento.
Set list: Rushium Intro, “One More Year”, “Borderline”, “Nangs”, “Breathe Deeper”, “Posthumous Forgiveness”, “Elephant”, “Lost In Yesterday”, “Apocalypse Dreams”, Mutant Gossip, “Let It Happen”, “Feels Like We Only Go Backwards”, “Eventually” e “One More Hour”. Bis: “The Less I Know the Better” e “New Person, Same Old Mistakes”.
Cate Blanchett domina as telas como a genial regente que não faz qualquer questão de esconder a falta de humildade
Texto por Taís Zago
Foto: Universal Pictures/Divulgação
Lydia Tár (Cate Blanchett) está no topo do mundo. Como uma das mais conhecidas e respeitadas regentes e compositoras da atualidade, ela reina quase soberana – uma das únicas mulheres a reger orquestras famosas, interpretar de forma singular gênios da música erudita como Mahler enquanto principal regente da Orquestra Filarmônica de Berlim ou dar aula em escolas da elite musical como a nova-iorquina Julliard. Tár não faz questão alguma de esconder a sua falta de humildade. Ela sabe que é singular e ao seu redor só tolera a presença de outras personalidades singulares. Tudo que leva seu nome é um sucesso instantâneo e serve de inspiração para muitos outros aspirantes à carreira de regente. Quem cruza o seu caminho ou discorda de sua opinião é decepado de seu convívio, com a frieza digna de narcisistas e sem aviso prévio.
O diretor e roteirista Todd Field retorna às grandes telas após uma pausa de 16 anos desde seu último filme Pecados Íntimos (2006) e não está para brincadeira. O ex-ator (participou do elenco de De Olhos Bem Fechados, de Stanley Kubrick, por exemplo) abandonou precocemente uma carreira promissora na frente para ficar somente atrás das câmeras. Em Tár (EUA, 2022 – Universal Pictures), mostra a que veio – as imagens são fortes e os diálogos profundamente reflexivos, a fotografia é escura e fria, os personagens não nos permitem que os coloquemos em papais definidos de virtude ou falha humana. Soa como Ingmar Bergman, mas não é. Blanchett não é Ullmann. Blanchett é Blanchett.
Para quem há tempo acompanha a carreira da excepcional atriz, afirmar isso tem um amplo significado: estamos diante de uma artista que busca na arte a constante superação de seus limites, tanto técnicos quanto emocionais. Cate atua em três línguas (inglês, um pouco de francês e alemão) aprendeu sobre regência e a tocar instrumentos na preparação. Mas a sua entrega diante das câmeras é mesmerizante, nenhum preparo técnico supera a capacidade da atriz de entrar na pele de Lydia e torná-la sua. Essa fusão visceral é inegável e evidente em cada cena. Tár, apesar de contar com um amplo elenco de atores tarimbados como a francesa Noémie Merlant e a alemã Nina Hoss, é praticamente um monólogo de Blanchett. O holofote está nela por toda a sua jornada, do cume de seu sucesso e reconhecimento até sua desastrosa queda.
Se você busca relações polarizadas e monocromáticas, Tár pode não ser uma boa pedida. O diretor nos coloca (e se coloca) na posição de um mero observador sem julgamento moral e sem conduzir a jornada de Lydia de uma forma óbvia. Mas como nada é perfeito – fora a atuação da Cate, claro – mais tardar a partir da metade do filme chegamos a nos questionar a necessidade de uma duração de 158 minutos para nos contar essa história. Há uma repetição de temas e de situações que, mesmo que sendo o desejado pela produção, acaba por não acrescentar muito ao todo. Uma duração de 100 a 120 minutos já daria perfeitamente conta do recado. Ao pisar no acelerador na última meia hora, Field nos deixa um pouco perdidos, pois já tínhamos internalizado, assim como em uma música, o ritmo imposto. Mas aqui não se trata de música pop. Nos universos dos virtuoses clássicos, a surpresa faz parte da experiência e desconcertar a plateia pode ser o objetivo.
Além disso, a escolha de uma Berlim invernal como locação para o “miolo” da trama, apesar de evidenciar a frieza das relações entre os personagens, coloca desnecessariamente as cenas sob uma perspectiva dura demais. Mas sim, viver em Berlim tem disso e falo por experiência própria. Nenhuma outra cidade desse planeta tem tanto poder sobre os humores das pessoas de acordo com suas estações do ano. Nenhum lugar casa tão bem criatividade com niilismo ou liberdade de expressão com opressão cultural e arrogância. Uma verdadeira meca para as elites intelectuais e criativas do mundo todo. Lydia está no lugar certo para viver seu narcisismo até as últimas consequências e nos arrasta com ela ao mergulho no abismo, independentemente da nossa vontade.
Por tudo isso, enxergo um terceiro Oscar para Cate no horizonte. E talvez seja o mais merecido de toda sua carreira.
Cineasta estreia com um dilacerante drama sobre amadurecimento e a relação da filha de 11 anos com o pai emocionalmente abalado
Textos por Leonardo Andreiko e Janaina Monteiro
Fotos: 02 Play/Mubi/Divulgação
Há filmes que desde o início prendem nossa atenção. Anunciam sua chegada e, com presença de espírito, nos catapultam para dentro de si e ocupam nossas mentes até o final. Não raro eles também sabem encerrar sua estadia, seja por meio de uma conclusão narrativa ou deixando-nos abertos à incerteza. Na vida, contudo, o fim de uma história raramente é anunciado. Nosso último encontro com alguém não vem acompanhado do letreiro onde vem escrito “fim”. Aftersun (Reino Unido/EUA, 2022 – O2 Play/Mubi), queridinho da crítica mundial e arrebatador de premiações deste ano (incluindo o Troféu Bandeira Paulista, para novos diretores na Mostra de São Paulo), consegue o feito de fazer os dois.
O longa-metragem, primeiro da diretora escocesa Charlotte Wells, retrata uma viagem de Calum (Paul Mescal) e Sophie (Frankie Corio), sua filha de 11 anos, para um resort no Mediterrâneo. Em meio às atividades de férias, mergulhos e jantares, acompanhamos o amadurecimento do olhar de Sophie sobre o mundo, a conflituosa relação de Calum consigo mesmo e o movimento de aproximação–distanciamento de pai e filha.
Wells tece um delicado véu que unifica os muitos percursos temáticos que Aftersun explora, de modo que consegue abordar questões socioeconômicas, melancólicas, psicológicas e até mesmo de coming of age mantendo um filme coeso e direcionado. É sob a decupagem simples (mas não minimalista) de suas cenas que a diretora projeta os diferentes estados de espírito que permeiam sua obra. É simples pela movimentação desperturbada: o interesse nos planos longos e nos detalhes em cena. O fora-de-campo cumpre uma função essencialmente especulativa (por imaginarmos o que se passa para além das câmeras), mas também de tensão – as elipses, omissões simbólicas e a subexposição esmagadora do mar à noite são aspectos constitutivos da forma da obra. Não somente floreiam o que se passa como discursam sobre ele, o expandem.
O resultado, primoroso de certo, é um filme que carrega consigo a complexidade de duas vidas, e não somente a superficialidade de uma trama, uma mera premissa. Enquanto Sophie descobre relações, modos de interação e o romance que permeia a vida, a operação emocional de Calum é praticamente oposta. A pré-adolescente se encontra num movimento de afastamento da magia do jogo, do karaokê e da infância, partindo ao mundo dos interesses românticos e das nuances adolescentes, que faz florescer seu próprio desejo ao mesmo tempo que descobre e se interessa pelo desejo do outro. Seu mundo é o hotel, suas piscinas e o fliperama. Em paralelo, seu pai não consegue desvencilhar-se do próprio passado, das próprias aspirações e da opressão do mundo à volta. Seu desejo é sempre presente, mas reprimido – fuma escondido de sua filha, projeta saídas de problemas materiais para além da viagem, preocupa-se com o dinheiro e rememora o passado sem noção certa do futuro.
Das muitas sequências memoráveis, vejo aquela em que Calum almeja o tapete sem poder comprá-lo como uma das mais potentes. Em um quadro repleto de tapetes, empilhados sobre os demais numa espécie de sótão/estoque, irrompem Calum, Sophie, o vendedor e um tapete estendido ao chão, no qual o protagonista finca o olhar. Não é o desejo pelo artefato que o interessa, mas a capacidade de carregar consigo as histórias daqueles que o teceram.
Em um jogo de cena entre esse plano conjunto e um tocante close-up de Paul Mescal (que desde Normal People, série que projetou o astro às telas mundiais, é uma marca de sua carreira), o delicado olhar da direção faz o papel de nos impor a realidade emotiva que vive o protagonista. Em crise por não ver no tempo presente cumpridos seus sonhos de criança e muito menos os próximos passos na vida adulta, Calum se deita num de muitos tapetes e respira – busca sentir a história, mas não é capaz de tê-la.
Pincelando sua narrativa com o recurso da filmagem caseira que marcou o final dos anos 1990 e o começo do novo milênio, Wells opera uma exploração vívida da psique de suas personagens e o poder cristalizador da matéria-prima do cinema: o vídeo. São muitas as instâncias em que as brincadeiras de Frankie segurando a câmera, bem como os registros mais aterrados e “documentais” de Calum, são monumentos da memória, revelando ao espectador um passado muito latente e carregado de afetos. Não à toa, em dado momento, a espectadora é a própria Frankie, já adulta, que ao assistir as filmagens rememora e reinterpreta sua história e relação com o próprio pai.
Aftersun é, sem dúvidas, um dos lançamentos mais potentes deste ano, um sopro de ar fresco sobre o claustrofóbico e agonizante cenário das franquias intermináveis e lançamentos decepcionantes. Esse é um filme que emociona ao ser assistido, mas também é um dos raros que emocionam ao escrever sobre. Charlotte Wells, ao trabalhar a partir de sua própria memória, parece recuperar uma constatação óbvia, mas não menos potente: não há letreiro de “fim” para anunciar o último encontro. E é isso que os torna especiais. (LA)
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Gatilhos mentais podem ser acionados de várias maneiras, fazendo revisitar memórias guardadas nas mais profundas gavetas e que trazem à tona calafrios e sensações nada agradáveis. Tem gente, por exemplo, que associa assistir a vídeos caseiros a uma certa melancolia. Talvez porque saiba que quando alguém querido, da família, se for, essa é uma das formas de se perpetuar as lembranças, sejam elas alegres ou não.
Por isso, assim que a personagem Sophie (a estreante Frankie Corio) aperta o play no registro de suas férias na Turquia com o pai Callum (Paul Mescal) só tive uma certeza: a de que seria engolida por uma imensa onda gigante de nostalgia, chamada Aftersun (Reino Unido/EUA, 2022 – O2 Play/Mubi).
Quando este primeiro longa-metragem da escocesa Charlotte Wells terminou, fiquei atônita por alguns momentos na frente da tela. E mesmo que eu tentasse me desvencilhar de tudo aquilo que havia assistido nos últimos cem minutos não conseguia recuperar o fôlego de jeito nenhum. Não conseguia me soltar daqueles fragmentos de uma história avassaladora.
Charlotte me deixou completamente hipnotizada pela narrativa desenhada de forma melancolicamente deslumbrante para mostrar o período em que um pai separado, de 30 e poucos anos, e sua filha pré-adolescente de 11 passam juntos.
Do início ao fim, a diretora nos proporciona um mergulho na relação entre os dois, mostrando a paternidade por um viés diferente daquele que costumamos ver no cinema. Podemos lembrar de vários longas, por exemplo, como o delicado O Mundo de Jack e Rose, protagonizado por Daniel Day-Lewis, mas dificilmente algum título supere Aftersun no quesito profundidade.
Em entrevistas à imprensa estrangeira, Charlotte revelou que concebeu o filme a partir do momento em que se deparou com álbuns de fotografias antigas da família. Portanto, existe muito de autobiográfico no roteiro assinado por ela.
Ao passo que o espectador é apresentado aos protagonistas, é possível perceber também que Charlotte busca uma certa inspiração na sua compatriota Lynne Ramsay, também conhecida por dirigir filmes complexos sobre as fraquezas humanas de uma outra perspectiva, como fez com o também avassalador Precisamos Falar Sobre Kevin.
Aftersun é muito mais que uma história sobre a conexão entre pai e filha. É sobre o vazio, o desespero. Sobre ter de sorrir e zelar pela vida de outra pessoa enquanto se está dilacerado por dentro. Para traduzir essa relação delicada de afeto e dar pistas do estado mental de Calum, Charlotte nos brinda com muito plano detalhe, como na cena em que mãos de pai e filha se unem, e movimentos de câmera sutis, quando enquadra os livros de meditação dispostos em cima de uma estante.
Em início de carreira, Paul Mescal (o galã de Normal People) se mostra gigante quando de costas consegue representar com seu choro desesperador toda a agonia da personagem. Frankie Corio é a personificação de toda pré-adolescente, que faz suas descobertas e não tem papas na língua ao falar as verdades para o pai.
Para contextualizar a época, a cineasta recorre a objetos e outros artifícios: a filmadora de Sophie, o walkman de Callum, as canções que marcaram a época, como “Tender”, da banda de britpop Blur. Assim, pouco a pouco, vamos nos guiando por fragmentos dessa viagem registrada pelos olhos de Sophie. E nos dando conta do sofrimento de seu pai e a luta dele para sobreviver. Seja quando ele diz para a ex-mulher, numa cabine telefônica, que ainda a ama (“Por que você disse eu te amo pra mamãe?”, pergunta Sophie logo em seguida). Seja na cena do karaokê em que a filha, ao contrário de todas as outras vezes, canta sozinha. E uma das cenas mais arrebatadoras do filme é, sem dúvida, a “última dança” de Callum ao som de “Under Pressure”.
Depois de Aftersun, será difícil ouvir a canção de David Bowie com o Queen sem se lembrar dessa estreia arrebatadora de Charlotte Wells. (JM)
Película com acesso a muito material inédito da trajetória de David Bowie é um bilhete de loteria transformado em ode à arte
Texto por Fabio Soares
Foto: Universal Pictures/Divulgação
Brett Morgen é uma sujeito de sorte. Às vésperas de completar 54 anos, o diretor californiano (que esteve à frente de Cobain: Montage of Heck, filme de 2015 sobre a vida do líder do Nirvana) obteve acesso a milhares de arquivos de imagens, manuscritos e registros sonoros de David Bowie, tudo disponibilizado pela família do cantor. Aliás, o termo “cantor” transforma-se em definição diminutiva e errônea diante da mastodôntica importância do britânico, morto em janeiro de 2016 e que hoje faria 76 anos de idade.
A película Bowie: Moonage Daydream (EUA, 2022 – Universal Pictures) foi exibida em cinemas no Brasil por somente uma semana durante a segunda quinzena do último mês de setembro. Ela não é um documentário. Também não é um filme. Muito menos um videoclipe com exacerbada extensão. É um bilhete de loteria transformado em ode à arte.
Com narração do próprio Bowie, este acontecimento multissensorial convida o espectador a mergulhar (sem tanque de oxigênio) por águas tortuosas. O jogo de imagens incomoda, instiga, provoca. Morgen sabia que o acesso a registros nunca antes divulgados era um bilhete de loteria valioso demais para ser desperdiçado. A marcial trilha sonora ainda é um personagem à parte. Há Bowie para todos os gostos. Do lirismo de “Rock and Roll With Me” à urgência de “Cracked Actor”, passando pela fase dançante da monumental retorno da carreira após breve hiato no início dos 1980, tudo impressiona, é grandioso e magistral.
A montagem do longa também merece destaque. A sobreposição de camadas visuais, misturadas a imagens de apresentações ao vivo, elevam a experiência audiovisual a outro patamar. Tente não se emocionar com Bowie cantando “Space Oddity” simultaneamente em 1972 e 1997. Perceba, nesta hora, a discreta diminuição de uma oitava na execução noventista.
Os mais esotéricos se surpreenderão com o ascendente em aquário do popstar sobrepor-se ao seu lado capricorniano, fazendo com que ele não criasse raízes em lugar algum, mudasse de país quando lhe desse na telha e carregasse consigo apego ZERO a lugares e pessoas. Desapego este que desabou por completo ao conhecer Iman Mohamed Abdulmajid, a modelo somali por quem se apaixonou em 1992. Mas daí é outra história.
Após a sessão, a vontade de possuir Bowie:Moonage Daydream no modal físico é mais que justificável! Saí da sala de cinema querendo adquirir o DVD, a camiseta, o CD, o vinil, o shampoo ou seja lá qual for o produto oriundo desta obra de arte que extrapole o conceito de documentário.
Só que no streaming (disponível para locação via Amazon Prime no Brasil) podemos consumir a películas uma, duas, quinze, cento e cinquenta vezes! Documento vivo de nosso tempo. Um tempo que é só nosso e que podemos fazer dele o que quisermos.