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Coração de Neon

Filme independente acerta ao fugir da Curitiba para turistas e levar às grandes telas a vida e as ruas periféricas do Boqueirão

Texto por Abonico Smith

Foto: IHC/Divulgação

Estreia nesta quinta-feira nos cinemas de Curitiba e outras capitais brasileiras mais uma produção feita por profissionais da área que são e vivem na capital paranaense. Coração de Neon (Brasil, 2023 – International House of Cinema), entretanto, corre o risco de ser o mais curitibano de todos os filmes que, recentemente, estão colocando a cidade no mapa nacional.

Misturando elementos de drama, comédia e ação, o filme foi rodado em 2019. Correu alguns festivais, ganhando inclusive prêmios em alguns destinados a produções iniciantes, e ganhou diversas matérias em televisões, sites e rádios locais a respeito do fato. A expectativa em torno de sua estreia chega ao fim no dia de hoje, quando muita gente da cidade – especialmente quem mora ou já morou no Boqueirão – pode se ver, enfim, representado na grande telas das salas de projeção.

Mondo Bacana dá oito motivos para você não perder a oportunidade de assistir à obra. Que não fala só de e para quem está na capital paranaense. Consegue transpassar a localização geográfica e contar uma história universal, mas sem abrir mão de pinceladas bem curitibanas. O que ainda é raro de se ver no cinema independente nacional.

Novo polo de cinema

Curitiba , claro ainda está distante do volume de produções de outras cidades brasileiras fora do eixo Rio-São Paulo, como Porto Alegre, Recife ou Brasília, claro. Mas já se começa a perceber uma movimentação mais frequente de produções feitas para cinema, streaming e internet por aqui. Realizadores como Aly Muritiba, Paulo Biscaia Filho, Gil Baroni, Ana Johann, Heloisa Passos, Willy e Werner Schumann volta e meia aparecem com alguma (boa) novidade. Muritiba, inclusive, chegou a quase disputar o Oscar por duas vezes. Agora é a vez do trabalho de estreia em longa-metragem de Lucas Estevan Soares chegar às salas de projeção. Para uma grande cidade que possui boas opçòes de graduação e pós em cinema, é fundamental que se crie um mercado constante de trabalho para profissionais da área

Faz-tudo

Lucas Estevan Soares é quase onipresente na ficha técnica de Coração de Neón. Ele não é apenas o diretor do filme. Assina também produção executiva, roteiro, montagem e trilha sonora, cantando e compondo várias das músicas feitas para esta produção. Não bastasse se virar feito o Multi-Homem dos Impossíveis do desenho animado de Hanna-Barbera, ele ainda é o protagonista da história. Rapaz de versatilidade e talentos distintos.

Cinema de guerrilha

Não foi só Lucas a função de coringa neste filme. Por trás das câmeras, houve um trabalho hercúleo de apenas doze pessoas envolvidas no set de filmagem, o que exigiu acúmulo de funções técnicas. Isso fez com que Lucas cunhasse para a obra o status de “cinema de guerrilha”. Orçamento baixo (R$ 1,6 milhão, segundo o autor), bem verdade, mas diante das condições econômicas do país nos últimos quatro anos (leia-se o período em que houve desgoverno em Brasília e um intencional corte de apoio às artes) foi feito o possível para conseguir a verba necessária para a produção e a pós-produção. Sem falar no fato de que nenhuma grana de captação de qualquer lei de incentivo foi usada aqui. Mas o que poderia se tornar um grande empecilho, na verdade, tornou-se trunfo para Coração de Neonbrilhar na tela imbuído num total espírito punk. Do it yourself no talo, concebido com o que se tinha na mão, muitas vezes recorrendo ao uso da criatividade para driblar a adversidade.

Muito além do olhar do turista

Qual é a imagem que a capital paranaense transmite a quem não vive nela? Curitiba é encarada além de suas fronteiras como uma cidade exemplar, que contrasta com muitas outras regiões e localidades do país. Certo? Não. Jardim Botânico, Ópera de Arame e outros pontos turísticos podem ser muito belos aos olhos de quem vem de fora e anda pelo ônibus verde double decker, mas a cidade não é só isso. Vai bem além e, por isso, mostra-se uma decisão acertadíssima de Soares mostrar o que está na periferia. Para começar, a história se passa toda no bairro do Boqueirão, onde tudo também foi filmado e de onde vieram as origens familiares de Lucas Estevan Soares – muito do que se vê vem de parte da história da própria vida dele. Neste long estão as casas simples de famílias de classe média da região, a torcida organizada e para lá de fanática pelo futebol amador, as furiosas brigas desses torcedores em estações-tubo e terminais de ônibus, as mensagens de amor transmitidas por chamativos carros coloridos, o garoto sonhador que gosta de rock e tem cabelos compridos, o pai empreendedor, a guria casada que leva uma pacata vida de dona de casa, o vendedor de algodão doce que caminha tranquilamente pela rua do bairro e ainda o carro dos sonhos (de comer, claro).

Trilha sonora

Se o filme fala sobre o Boqueirão, claro que não poderia faltar rap nele. E dos bons. O canto falado dos MCs não estampa somente a frente de algumas das camisetas mais bacanas do figurino utilizado por Dinho, o coadjuvante que ancora as ações do protagonista Fernando. Tem também duas faixas incluídas na trilha sonora que dão peso e um charme todo especial a momentos-chaves da trama. Uma delas vem embalada pelas vozes dos irmãos gêmeos PA & PH. A outra é trazida pela libertação feminina cantada em versos e rimas pela brasiliense Belladona. A cantora pode não ser de Curitiba, mas sua canção “Coração de Neon” não apenas se encaixou como uma luva na narrativa como também acabou dando nome ao filme. Ela inclusive veio ao Boqueirão para rodar o videoclipe para a música sob a direção de Soares (que também participa das imagens como ator e ainda empresta o carro carinhosamente chamado de Boquelove em várias cenas). Como já disse Karol Conká – que, por sinal, também veio do Boqueirão, é do gueto ao luxo, do luxo ao gueto.

Violência contra a mulher

Arte é entretenimento mas também pode cumprir uma função bem maior quando possível. Deve servir para questionar e transformar o mundo ao redor. Coração de Neon acerta em cheio ao incluir como cerne de sua trama um dos eventos infelizmente ainda muito corriqueiros na sociedade brasileira: a violência contra a mulher. A cada dia o noticiário da vida real conta a história de muitos feminicídios. Na ficção curitibana, o companheiro ultraviolento, armado e sem o mínimo de equilíbrio emocional no trato com outras pessoas (especialmente se forem do gênero feminino) está presente levando a tensão necessária para várias sequências mostradas em tela. Lógico que a trama gira ao redor de seus atos, que ainda são engrossados por um coro de machismo e misoginia que corrobora com a triste situação. 

Elenco com caras novas

Este não é apenas o filme de estreia de Lucas Estevan Soares. Quase todo o elenco também faz sua primeira participação cinematográfica. São atores vindos do palco curitibano, que sempre foi muito feliz em revelar grandes nomes para a dramaturgia nacional. Se na última década a cidade exportou para as produções de TV, cinema e teatro do eixo Rio-São Paulo, a renovação de bons nomes vem sendo feita para que uma nova geração de qualidade não deixe passar em branco a condição de celeiro que a capital paranaense sempre teve. Tanto que todo ano um grande festival movimenta intensamente os palcos daqui por duas semanas cheias. No caso de Coração de Neon, deve-se prestar atenção aos nomes de Ana de Ferro (que interpreta Andressa, a jovem agredida pelo companheiro com quem divide a casa), Wenry Bueno (o guarda noturno que rivaliza com o trio de personagens centrais da história) e Wawa Black (Dinho, o amigo de fé e irmão camarada de Fernando). Mesmo atuando em poucas cenas, Paulo Matos (Lau, o pai de Fernando e criador do carro que leva as mensagens de amor pelas ruas do Boqueirão) também se destaca.

Iconografia curitibana

Quando se fala em Curitiba é impossível não pensar no Oil Man visto só de sunga pelas ruas mesmo no frio extremo do inverno. Ou no super-herói Gralha. Ou então na capivara, bicho comum nas redondezas do Parque Barigui que se tornou o animal-símbolo da cidade. Agora esta galeria iconográfica ganhou mais um integrante: o antigo corcel azul customizado por Lau e Fernando, carinhosamente chamado por este último como Boquelove. Tanto que Lucas agora leva o automóvel para onde pode, sempre no intuito de chamar a atenção para o filme em eventos pela cidade.

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Pantera Negra: Wakanda Para Sempre

Novo filme fala sobre o luto pelo protagonista mas peca ao se estender em personagens demais e tramas paralelas subdesenvolvidas

Texto por Andrizy Bento

Foto: Marvel/Disney/Divulgação

“Só as pessoas mais feridas podem ser grandes líderes”

Sequência do grande sucesso de público e crítica Pantera Negra, de 2018, este Pantera Negra: Wakanda Para Sempre (Black Panther: Wakanda Forever, EUA, 2022 – Marvel/Disney) deveria ser um um filme sobre Shuri, uma produção que se dedicasse a mostrar o crescimento da personagem interpretada pela atriz Letitia Wright, que se obriga a amadurecer após inúmeras perdas. Toda a tragédia em seu entorno daria consistência à jornada da heroína e seria enredo suficiente para um longa, tendo como mola-mestra o luto pela morte do irmão, o rei T’challa (Chadwick Boseman). Uma base lúgubre, triste, mas funcional e eficiente para situar a heroína no panteão de super-heróis que é o MCU (Universo Cinematográfico da Marvel). Porém, é Hollywood e Wakanda Para Sempre faz parte de uma safra de produtos que ultrapassou o nicho ao qual era destinada no passado. Não apenas os fãs de quadrinhos de super-heróis consomem esses filmes hoje em dia. Já há um tempo eles abrangem o público em geral.

Portanto, é necessário fanservice para agradar aos marvetes, introduzindo tudo o que for possível da mitologia dos quadrinhos; contextualizar esse fanservice para atingir os espectadores que não conhecem a base original; e, considerando que a Marvel Studios optou por não escalar um substituto para Boseman (falecido em 2020, vítima de um câncer de cólon) seja por carinho ao saudoso ator ou por preferir não despertar a fúria dos ardorosos fãs, em uma demonstração solene de respeito, compor uma obra cuja essência é o luto pelo rei T’Challa e um tributo a Boseman. Toda a história de sucessão protagonizada por Shuri tem esse sabor agridoce de despedida ao intérprete de Pantera Negra, além de ser intercalada por diversas tramas paralelas. O resultado é um longa sem unidade, que aponta para vários lados. É difícil dar coesão a todos os núcleos narrativos. O diretor Ryan Coogler não parece se esforçar muito para alcançar tal objetivo, contentando-se com épicas cenas de ação e profusas sequências de pesar pela perda de T’Challa. É grandioso na embalagem, porém razoável no conteúdo.   

O que fez Pantera Negra se destacar dentre os longas da franquia MCU nos cinemas, levando-o até mesmo a concorrer ao Oscar de melhor filme, era o equilíbrio do conjunto. Coogler apostou em uma lenda fascinante, com cenas de ação certeiras e uma crítica ao imperialismo americano. Em sua essência, a produção de 2018 era feliz e bem-sucedida ao construir nas telas uma mitologia convincente, envolvendo cerimônias ritualísticas e fortes representações culturais que fundamentam Wakanda sem dispensar as boas e velhas lutas coreografadas, explosões e perseguições que fazem a festa dos fãs de blockbusters e ainda trazia uma base política sólida ao discutir racismo e colonialismo. Wakanda Para Sempre apresenta todos esses elementos, mas de maneira desorganizada e totalmente over.

A homenagem a Chadwick Boseman tem início nos créditos de abertura, continua na bela sequência inicial que representa a cerimônia fúnebre e se estende por toda a história. Após a morte de T’Challa, a rainha Ramonda (Angela Bassett) faz o possível para proteger sua nação de poderosos líderes estrangeiros que buscam se apossar do vibranium (metal fictício encontrado em abundância em Wakanda, que possui a capacidade de absorver todas as vibrações em sua proximidade, bem como a energia cinética direcionada a ela e faz com que a terra natal do Pantera Negra seja rica e poderosa), ao mesmo tempo em que tem de lidar com o luto pela perda do filho e tentar uma conexão com a filha, Shuri, que parece ter se fechado em um casulo após a morte do irmão.

Nesse ínterim, entidades do governo descobrem que Wakanda não é o único lugar a possuir vibranium, identificando-o também no fundo do oceano por meio de um detector construído especificamente para rastrear o elemento. A matéria é proveniente do reino submarino governado por Namor (Tenoch Huerta), um mutante com poderes extraordinários derivados de sua herança genética incomum, com fisiologia anfíbia, força sobre-humana, supervelocidade e pés alados que garantem a ele a capacidade de voar. Ao tomar conhecimento do detector de vibranium, Namor entra em contato com Wakanda a fim de solicitar apoio para que capturem a cientista responsável pela invenção. Riri Williams (Dominique Thorne) é uma jovem universitária que não faz ideia que é o principal alvo dessa caçada. Em meio a tudo isso, Shuri precisa encontrar seu lugar entre as lideranças de Wakanda, digladiando com o próprio rancor e sentimento de vingança que a consome.

O elenco numeroso e as diversas tramas paralelas centradas em diferentes personagens tornam os já eloquentes 161 minutos de Wakanda Para Sempre insuficientes para trabalhar tanto material. Por isso mesmo, várias discussões interessantes acabam exploradas de maneira superficial, alcançando um nível muito raso de debate. É o caso, por exemplo, da tão alardeada (ao menos nos materiais de divulgação!) liderança feminina, que ganha pouca substância. Outros temas trabalhados com pouca profundidade neste exemplar afrofuturista da Marvel são justamente a questão racial e o imperialismo americano. Há muita coisa acontecendo na tela e, ainda assim, o roteiro peca ao não se aprofundar em nenhuma delas: a tentativa de focar em Shuri, as introduções de Namor e Riri Williams e o plot envolvendo o agente Everett Ross (Martin Freeman). Todas essas tramas socadas em um único longa tornam o enredo desequilibrado.

Entendo que Wakanda Para Sempre ocupa uma posição difícil na franquia dos Vingadores. O longa tinha a ingrata função de “substituir” o herói de forma nobre, sem ferir seu legado. Mas toda essa construção aliada à introdução de duas personagens importantes transforma o longa em um bolo de noiva e é justamente o desenvolvimento de Shuri que acaba ofuscado. É até irônico, pois, mesmo sem querer, a personagem já acenava para essa possibilidade desde o ritual de desafio no primeiro longa. A pedra angular deste longa-metragem deveria ser a preparação do terreno para que, aos poucos, Shuri ganhasse protagonismo.

Há um momento em que a princesa pergunta a Namor o porquê de estar lhe contando tudo isso. E eu não resisti e respondi mentalmente: porque filmes hollywoodianos têm a mania de serem expositivos demais e contar origens por meio de flashbacks manjados. A insistência da indústria em subestimar a inteligência do público se baseia na crença de que o espectador não vai ser capaz de acompanhar uma história na tela se tudo não for devidamente explicado.

Se já não bastasse o excesso de tramas que incham o longa, a montagem vacila em diversos momentos, especialmente ao mostrar os desdobramentos de lutas tão definitivas, intercalando ambas e tirando o impacto do desfecho das duas. Como tradição dos filmes do estúdio, este não foge à regra de apresentar embates corporais repletos de cortes secos e abruptos. O design de produção continua primoroso e as cenas pirotécnicas que se desenrolam tanto em terra firme como no mar são empolgantes, embora o longa peque pela falta de contrastes, especialmente nas cenas que se passam no reino de Namor, Talokan. A trilha sonora é composta de vários temas interessantes, mas o conjunto da obra é deveras saturado. Há todo um cuidado em retratar a cultura dos wakandanos, explorando seus costumes e a mitologia dos povos que ocupam aquele território. O mesmo não acontece com os talokans. Mas nem vou reclamar nesse quesito, porque, além da certeza de que Namor regressará, isso só tornaria a produção ainda mais longa e modorrenta. Por falar nisso, a guerra entre as duas nações é maniqueísta e bidimensional, abusando de um artifício muito raso para deflagrar o conflito.

O filme que encerra a fase mais criticada do MCU também é um reflexo da mesma, composta de filmes muito apoteóticos em suas intenções, mas inchados ou apáticos em seus resultados. Wakanda Para Sempre é emocional em diversas passagens, especialmente ao rememorar T’Challa. É conceitual, ao abordar o luto cinematograficamente, mostrando como cada figura do elenco lida com a morte do personagem, do ator e do amigo. Mas não é funcional, não possui um fim, um objetivo. Um demérito irreparável quando nos referimos a obras cinematográficas. Eis um tributo a Chadwick Boseman que não faz a devida justiça a seu homenageado. 

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Paloma

Longa brasileiro sobre mulher trans que luta por um casamento religioso ganha prêmios mas não deixa de ser desastrado no percurso narrativo

Texto por Leonardo Andreiko 

Foto: Pandora Filmes/Divulgação

Na arte contemporânea, assim como no cinema, o século 21 trouxe consigo uma mudança nos paradigmas que definem o que é a ‘boa arte’ e a ‘arte ruim’. Em linhas gerais, a parte relevante ao discurso não é mais a forma com que ele é estabelecido, mas o tema sobre o qual versa. A arte toma seu lugar no mundo não somente como expressão do sujeito, mas sua expressão sobre algo. 

No cinema, a situação é a mesma, a se demonstrar pelas recentes polêmicas e mudanças de rumo sobre diversidade e inclusão na indústria. Em um cenário em que a vivência de quem está diante e detrás das câmeras é essencial para a compreensão do filme enquanto obra, a autoficção e o retrato de si vêm ganhando corpo e notoriedade. Sobre o que as vozes que nunca tiveram o direito de portar o megafone das artes falarão senão delas mesmas?

Nesse panorama, Paloma (Brasil/Portugal, 2022 – Pandora Filmes) ganha tração como um dos fortes nomes do cinema nacional. Desde sua estreia no Festival de Munique de 2021, o longa sobre uma mulher trans que luta por um casamento religioso foi exibido ao redor do mundo e comemorou os prêmios de Melhor Filme da mostra competitiva e Melhor Atriz do Festival do Rio 2022 para Kika Senna, que interpreta a personagem-título. O destaque, contudo, é que a situação não é tão autoficcional assim.

Inspirado em uma notícia de jornal que dá a premissa já citada, Paloma se constrói narrativamente como uma ficção atenta à realidade, tecendo em si mesmo um comentário sobre o mundo sem fazer do concreto seu objeto de análise. A protagonista é mãe da pequena Jenifer (Anita de Souza Macedo) e vive junto de Zé (Ridson Reis), um pedreiro que não parece embarcar no sonho do casamento com véu e grinalda. Trabalha no campo, tem amigas por lá e mantém forte contato com a comunidade trans de Saloá, cidade no Pernambuco onde vive. Ao apresentar Paloma com profundidade e complexidade, o longa-metragem não comete o erro de simplificar sua protagonista e, com isso, prejudicar a narrativa.

Paloma ama, trabalha, cuida. Mas também erra, e tais erros dão o andar da carruagem à história do filme. Marcelo Gomes, que dirigiu Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), é diretor e corroteirista deste longa (junto de Gustavo Campos e Armando Praça) e aqui opta por meandros entre a narrativa convencional e o estudo de personagem contemporâneo (aquele em que o tema é a lente focal ao mesmo tempo que seu próprio objeto). A decupagem é simplista e as sequências são conduzidas com um ou dois planos e pouco dinamismo clássico, como o jogo de campo/contracampo e planos de contexto (os planos gerais que nos apresentam o espaço da cena). Isso confere à ação um tom muito mais teatral, e ao ritmo do longa um senso de lentidão – embora o marasmo pareça buscar uma atmosfera que incita a reflexão. 

Ainda, na medida em que as cenas se iniciam e terminam no decorrer dos diálogos – o que nos dá a sensação de estarmos sempre atrasados ou saindo muito depressa –, a presença da câmera no espaço é berrante: estamos conscientemente adotando a perspectiva da câmera, o olhar da lente sobre a história. Sua imobilidade faz de si um corpo existente no espaço; a montagem é também realizada nos planos, ações e reações que essa inércia nos tira.

A forma do filme, então, suscita reflexão e, embora apresente problemáticas, não deixa de se fazer parte integral do discurso e demarcar muito bem a autoralidade de Marcelo Gomes, cuja carreira desponta como uma das mais sólidas desses 20 anos. Por outro lado, a narrativa solta do longa-metragem traz consigo outra série de complicações à estrutura do filme.

A partir daqui me debruço sobre a história retratada e, ainda que busque evitar spoilers, a oclusão de seus elementos impossibilitaria a clareza do meu argumento. Então, prossiga com certa atenção se prefere, assim como eu, saber o mínimo possível de um filme antes de vê-lo.

Paloma é um filme desastrado. Seu percurso narrativo é dissonante; ou seja, há relações esparsas entre uma determinada cena e a cena seguinte de modo que, se já empacamos na narrativa por estar sempre fora do tempo (sempre atrasados ou adiantados), a situação piora pela falta de continuidade que aqui se instaura. E embora exista uma preocupação com a premissa (mulher trans deseja casar na igreja), esse não é o principal vetor da história contada.

Destaco alguns exemplos. Logo no começo da trama, quando Paloma verbaliza pela primeira vez para Zé seu desejo de casar-se de véu e grinalda, cita a conexão especial que teve com o padre no casamento de uma amiga. “Olhava para mim, parecia que falava diretamente para mim”. No entanto, há pouco vimos a cerimônia, e o que se filma é a manifestação visual do desejo que viria a se concretizar na fala – Paloma fita o vestido que ajudou a ajustar e transborda em expectativa. 

Ainda, conflitos são estabelecidos ao léu e jamais tensionados. Desde o início, Zé deixa clara sua indisposição em seguir com o casamento. Prefere gastar o dinheiro com uma moto nova e se refere ao casório como “coisa tua”. Em outras palavras, durante todo o filme, Zé não parece querer estar lá. Contudo, o embate desenhado no decorrer do longa só é concretizado no clímax da narrativa; e tão logo se coloca e já é resolvido. 

Por fim, ocorre uma importante morte no andar da trama, mas sua repercussão é displicente e não condiz com os laços construídos pela história. O impacto parece, no fim das contas, nulo. E houve claras oportunidades de referenciá-la, o que tornaria um comentário “por fazer” em uma sólida e forte demonstração da barbárie à qual é submetida a comunidade trans no Brasil, o país que mais mata pessoas transexuais há 13 anos. O exemplo final é uma confusão de intenções, uma traição que se inicia com a tensão de um assédio e termina sem conclusão, um conflito irresolvido para sempre.

Paloma é um lançamento interessante deste ano, com fortes atuações e um esmero formal que se desgarra do panorama contemporâneo sem desgarrar-se completamente. Um mérito, por assim dizer. No entanto, o trato hesitante e embargado de sua história deixa evidente uma tentativa de desgarrar-se da narrativa convencional, novamente, sem fazê-lo completamente. Uma mácula, infelizmente.

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Homens à Beira de um Ataque de Nervos

Comédia desperdiça um elenco experiente em aventura masculina que banaliza a interação entre os gêneros sexuais

Texto por Taís Zago

Foto: Synapse/Distribuição

Sete homens, com idades entre 18 e 70 anos, estão à beira de um ataque de nervos. Crises criativas, estresse no relacionamento, luto mal trabalhado, transtornos de ansiedade, entre outros problemas cotidianos e tipicamente urbanos levam o grupo a toparem uma experiência de convivência e autoconhecimento na natureza. E lá se vão Hippolyte (Thierry Lhermitte), Antoine (François-Xavier Demaison), Ivan (Pascal Demolon), Eliott (Max Baissette de Malglaive), Romain (Ramzy Bedia), Michel (Laurent Stocker) e Noé (Michaël Grégorio) ao encontro da guru/xamã/terapeuta Omega (Marina Hands) em busca de salvação e/ou solução para todos os seus problemas.

Em Homens à Beira de um Ataque de Nervos (Hommes au Bord de la Crise de Nerfs, França/Bélgica, 2022 – Synapse) estamos diante de uma comédia francesa bem clássica estruturalmente – homens rabugentos e irritados acabam mostrando que possuem corações de ouro quando colocados diante de desafios. Companheirismo, camaradagem, carinho – o pacote completo da ternura fraternal. E, claro, o humor, daquele tipo companheiro, autodepreciativo e “agridoce” que marca bastante as obras europeias feitas para as grandes massas.  

A princípio, a história nos engana – parece enveredar para o lado da critica às formas de terapias alternativas impulsionadas por rituais inspirados em xamanismo, que buscam a conexão com a terra e com o “eu interior” por meio de alucinógenos, enfrentamento de medos e situações limite como forma de provocar catarse pela exaustão do corpo físico. Mas já nos primeiros 30 minutos percebemos que o assunto é, relativamente, levado a sério por todos os envolvidos. E isso, infelizmente, não favorece a obra. Ao deixar de lado o humor ácido, acaba por adocicar demais uma situação pouco verossímil. Os homens envolvidos, contrariando suas naturezas, entregam-se facilmente, sem grandes restrições, a todos os experimentos guiados pela mão, claramente amadora, de Omega. Isso não favorece e nem acrescenta muito, para imagens positivas femininas ou masculinas – apenas banaliza a interação entre os gêneros sexuais, que, apesar dos esforços, se mostra extremamente convencional – os homens buscando o colo materno enquanto a mulher exala maturidade e bondade por todos os seus poros. Evidentemente tudo que os moços precisavam era de um bom “lote para carpir”, uma “louça pra lavar”, uma sauna fervente e um banho gelado de cachoeira, et voilà. A vida volta a ser bela.

Qualitativamente trata-se de um filme bem feito, com uma natureza exuberante em belas locações e personagens pitorescos. As atuações são boas, até porque estamos diante de um elenco experiente e já bastante conhecido pelo público europeu. Contudo, talvez seja exatamente isso que tenha sido um empecilho para realmente nos convencer da autenticidade dessa aventura masculina. Um time de atores mais amadores ou desconhecidos poderia ter sido escolha melhor para o propósito. Ou talvez se tivesse sido optado por um final não tão feliz e idílico. Ou mesmo se tivessem nos poupados da parte onde os homens é que “salvam” a mulher a qual deveria guiá-los pelo caminho da reflexão. 

Em alguns momentos Homens à Beira de um Ataque de Nervos foi demais. Em outros foi de menos. Apesar de dirigido por uma mulher, Audrey Dana (que também assina o roteiro), o longa não consegue fugir de muitos clichês sobre os sexos e suas posturas predeterminadas na sociedade em relação a seus pares. As armadilhas são muitas, e escapar delas nem sempre é fácil. Mesmo assim é um filme divertido e gostoso de se assistir. Só não pode ser levado muito a sério.

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Marte Um

Pré-indicado ao Oscar em 2023 faz o retrato doloroso da árdua luta de uma família negra de classe média baixa brasileira contra as dificuldades diárias

Texto por Taís Zago

Foto: Embaúba Fimes

O encanto e a reflexão que habitam as pequenas histórias são o chamariz principal dessa força-tarefa de, praticamente, um homem só e seus amigos. Gabriel Martins é o diretor, produtor e roteirista dessa pequena pérola do cinema nacional financiada por meio de editais e que levou quatro anos para chegar aos nossos cinemas. Marte Um (Brasil, 2022 – Embaúba Filmes) nasceu de uma ideia que Gabriel teve em 2014 e foi filmado no final de 2018 – portanto, antes da pandemia e do agravamento da crise econômica e social que nos assola ainda hoje. A vida das quatro pessoas de uma família negra de classe média baixa da cidade mineira de Contagem, contada nos meses entre a vitória nas eleições e a posse do presidente Jair Bolsonaro, é cheia de verdades incômodas e marcada por fortes laços de ternura.

Wellington Martins (primorosamente interpretado por Carlos Francisco) é um porteiro, ex-dependente de álcool e pai de dois filhos, que aparentemente vive de forma conformada e pacata. Ele se adaptou à rotina do racismo institucional brasileiro, fazendo limonada dos limões azedos que aparecem constantemente em seu caminho. Como a maioria dos brasileiros, Wellington sonha com um futuro brilhante para suas crianças, trabalha com afinco e dedicação e fecha os olhos, mesmo que não completamente, para os abusos diários das relações patrão-funcionário que são evidentes em uma hierarquia torta do abuso de pequenos poderes. A dinâmica entre ele e a síndica do prédio onde bate ponto é uma perfeita caracterização desse processo. Seus colegas, não conformados, apontam os ditos abusos, mas Wellington apenas sorri com um “deixa disso”.

Tércia (Rejane Faria), a matriarca dos Martins, é uma diarista que trabalha para um influencer. À primeira vista, parece receber respeito e reconhecimento pelo seu trabalho, mas logo percebemos que nem tudo são flores quando um manda e o outro precisa obedecer. A filha mais velha do casal, Eunice (Camilla Damião em uma espetacular estreia como protagonista), cursa direito, é tutora e sonha com a independência da casa dos pais. Já o caçula da família Deivinho (interpretado pelo ator Cícero Lucas em seu primeiro papel), vive dividido entre seguir o sonho do pai, que almeja para ele uma carreira no futebol, sua paixão por astrofísica e o sonho de participar de uma missão a Marte. Daí o título Marte Um (Mars One, em inglês), que fora o nome dado à primeira expedição do homem para Marte, planejada para 2030 mas cancelada em 2019.

Gabriel Martins, não contente em já acumular várias funções na produção, também selecionou pessoalmente o casting e trabalhou na edição. Segundo Martins, Marte Um é, em parte, autobiográfico, principalmente nas representações do pai Wellington e do filho Deivinho. É um desses filmes em que o coração do realizador se derrama na tela, e nós, como público, sentimos isso. Quer seja nos conflitos de Deivinho sobre seu futuro profissional ou na batalha de Eunice para assumir seu relacionamento com uma mulher diante de seus parentes. Nas expectativas que Wellington deposita em Deivinho ou na crise existencial que abala até mesmo o entusiasmo natural de Tércia. São todos temas pesados e de difícil abordagem, principalmente para uma família de subúrbio brasileira, a qual muitas vezes não se permite o olhar para dentro de si mesma e segue a luta contra o olhar repreendedor e julgador dos mais bem situados economicamente. E essa é a delicadeza da obra de Gabriel: um olhar individual, um olhar mais profundo nos desejos das pessoas, em seus sonhos, em seus sentimentos.

É impossível sair de Marte Um sem lágrimas nos olhos e um sorriso no rosto. Com estreia no Sundance Festival de 2022, onde foi muito elogiado, e premiado no Festival de Cinema de Gramado, o longa-metragem é o nosso candidato escolhido para buscar a vaga entre os conconrrentes à premiação do Oscar de filme estrangeiro em 2023. Uma obra feita de forma independente, de baixo custo, por um diretor apaixonado, sobre um assunto que nunca deixa de ser atual no Brasil racista e classista que vivemos ainda hoje.

Para mim, Marte Um é, também, o melhor filme nacional lançado até agora nesse ano. Consegue unir crítica social e sensibilidade sem perder de vista a esperança e sem fazer concessões a preconceitos.