Movies

Os Rejeitados

Química improvável na relação entre professor ranzinza e aluno rebelde é uma das mais gratas surpresas da temporada

Textos por Abonico Smith e Tais Zago

Foto: Universal Pictures/Divulgação

Títulos como O Clube dos Cinco, Conta Comigo e Sociedade dos Poetas Mortos estão até hoje nos corações e mentes de qualquer cinéfilo aficionado pelas produções do cinema pop americano da década de 1980. Além de exalar o frescor da juventude em suas histórias, estas obras abordam temas de suma importância para esta fase da vida como diversidade, tolerância, paciência, lealdade e, sobretudo, autoconhecimento. Mergulham fundo no âmago humano e por isso mesmo são celebradas até hoje por quem ainda prefere um cinema mais real e sem aquela enxurrada de CGI que rola nos blockbusters da atualidade.

Os Rejeitados (The Holdovers, EUA, 2023 – Universal Pictures) parece ter sido feito para bater lá no fundo dessa turma. Assinado por Alexander Payne, um cineasta que tem como características a economia de obras ao longo da carreira em prol de projetos mais profundos e menos comerciais, o filme vem provocando burburinho desde o seu lançamento no último festival de Toronto. Foi adquirido pela distribuidora Focus Features pela “bagatela” de trinta milhões de dólares e chega agora aos cinemas brasileiros acompanhado de altas expectativas para esta safra de premiações. No último domingo, Paul Giamatti e Da’Vine Joy Randolph ganharam o Globo de Ouro como ator de musical ou comédia e atriz coadjuvante e aparecem como apostas seguras para figurar entre os indicados ao próximo Oscar. Filme, direção, roteiro e ator coadjuvante (o estreante Dominic Sessa) também podem ser outras categorias beliscadas. Nada mau para uma produção extremamente autoral, de relativo baixo orçamento, sem grandes pretensões de bilheteria e que vai buscar no passado – tanto na trama quanto na estética – inspiração para comer pelas beiradas e se fixar como um dos grandes longas da temporada.

De um lado temos o veterano professor de História Paul Hunham. Ele vive sozinho, dentro do próprio internato onde leciona, incrustado em algum canto do norte dos EUA, onde não para de nevar no inverno. Não se casou, não tem muita paciência para conviver com outras pessoas além de suas obrigações profissionais. Leva tudo com rigidez extrema, a ferro e fogo, dentro e fora da sala de aula. Angaria a antipatia de seus alunos e não larga uma garrafa de uísque. Portanto, é o típico personagem mal humorado no qual Giamatti se encaixa perfeitamente para atuar.

Do outro, um aluno insuportável e rebelde ao extremo chamado Angus Tully. Ele também amarga um alto índice de rejeição, mas por sua própria família. Ignorado pela mãe – que não pensa duas vezes antes de “trocá-lo” pelo novo marido – ele acaba tendo de passar as semanas que antecedem Natal e Ano Novo na própria escola. Esta é a época na qual crianças e adolescentes ganham um período de intervalo das aulas para voltar às suas casas e rever os parentes mais próximos. A escola fica praticamente vazia por três semanas e Tully (Sessa) precisa se resignar a ficar por lá. Sem os colegas de turma para sacanear, com um professor linha-dura no seu encalço o dia todo, vigiando seu comportamento quase sempre inadequado.

No meio disso quem também passa o break de inverno em Barton é Mary Lamb, a cozinha-chefe do refeitório que alimenta diariamente docentes e alunos. Sua maior luta é superar o período de luto – seu filho, que estudava e morava com ela por lá, foi morto em guerra, durante o serviço militar. Além de Angus e Paul, seus únicos companheiros no local são o jardineiro (que também fica por lá), os cigarros e os populares programas de auditório exibidos pela televisão. Mary é o vértice do triângulo que mais expõe seus problemas pessoais e emocionais.

Os três acabam criando elos emocionais improváveis, especialmente Tully e Hunham. Aos poucos, um vai descobrindo o outro e nutrindo sentimentos de pai e filho, como confiança e afeto. Ambos mostram, mesmo não querendo mostrar, ser altamente carentes disso, o que justifica a química quase imediata entre eles. A partir da metade final, quando Os Rejeitados se transforma em road movie e muitas das cenas se passam distantes de Barton, fica impossível para a dupla não manifestar novas descobertas e sensações (o que, por sinal, mais caracteriza um road movie: o deslocamento geográfico provocando deslocamentos internos). Se até então o espectador já está bastante envolvido com os dois, embarcar no melhor da viagem pisando no acelerador torna-se inevitável.

Este filme se passa nos últimos dias de 1970. Portanto, Payne tenta recriar a época da maneira mais fidedigna possível. Aproveita somente iluminação e locações reais (nada aqui fora reconstruído em estúdio) e usa a pós-produção para dar mais credibilidade à estética de seu filme. Filmou tudo por meio da câmera manual Alexa Mini, da Arri, e inseriu posteriormente a granulação e outras sujeiras visuais típicas do celuloide. Até mesmo antes da primeira cena o cineasta brinca com a estética retrô: inclui o mesmo selo de Rated R que carimbava muitos dos filmes daquela época. Utiliza também artistas do período, como o poeta e cantor britânico Labi Siffre e as bandas, respectivamente galesa e holandesa, Badfinger e Shocking Blue.

Sem muitos radicalismos na narrativa e tocando no coração de quem senta na poltrona para ver o filme, Os Rejeitados desponta como um possível “azarão” para faturar o prêmio máximo da noite promovida pela academia cinematográfica norte-americana. Por não desagradar a muita gente, não corre o risco de receber notas muito baixas no ranking designado como critério para o quesito “melhor filme”. Na soma final de todos os votantes, corre o risco de terminar na liderança. Mas, se não ganhar, pelo menos, marcará a temporada como uma de suas obras mais queridas. Justamente retornando ao tempo em que Hollywood se salvou da bancarrota sendo cada vez menos Hollywood e trocando superficialidade pela densidade. (AS)

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Em meados dos anos 70, Paul Hunham (Paul Giamatti), um professor solitário e isolado socialmente, acaba sendo forçado a passar o feriado de Natal no colégio interno onde leciona para jovens privilegiados nos arredores de Boston. Os jovens aos seus cuidados foram deixados de lado, voluntaria ou involuntariamente, por suas famílias durante as festas de final de ano. 

Mas não se engane, não temos em Os Rejeitados (The Holdovers, EUA, 2023 – Universal Pictures) um O Clube dos Cinco (1985) setentista. Logo no começo das férias natalinas o pai de Jason Smith (Michael Provost), um dos cinco jovens “ilhados” na Escola, é acometido por um arrependimento abrupto e acaba “resgatando”, com seu helicóptero, quatro dos rapazes para uma luxuosa estação de esqui. Apenas um, Angus Tully (Dominic Sessa), acaba ficando para trás. Tragicamente ele não conseguiu fazer contato com a mãe para receber autorização para o passeio. Decepcionado, o jovem acaba ficando no colégio frio e vazio junto a seu odiado professor de história Paul, a cozinheira Mary Lamb (Da’Vine Joy Randolph) e outro funcionário da manutenção.

Aos poucos uma inusitada conexão começa a se formar entre Paul, Angus e Mary. A cozinheira estava passando o primeiro Natal sem o filho, também aluno da escola, que fora morto no Vietnam.  Com o passar dos dias frios e escuros, o luto da mãe acaba se misturando ao luto e a raiva do jovem. Tully está afastado do pai e abandonado pela mãe após ela se casar novamente. Ao mesmo tempo, a misantropia e o distanciamento inicial de Paul vão dando lugar à empatia pelo aluno e seu drama pessoal. Dentro de suas limitações, os três passam a permitir que alguns prazeres e alegrias mundanas permeiem seu convívio e diminuam seus sofrimentos durante a época das festas.

O diretor Alexander Payne escolheu o tema mesmo sem ter qualquer experiência pessoal com colégios internos. O roteiro original é assinado por David Hemingson, que tinha criado a narrativa pensando em uma série televisiva. Mesmo assim, a junção criativa entre Payne e Hemingson e o fantástico elenco nos trouxe uma pequena pérola que já está colhendo os louros por sua sensibilidade. Sem grandes exageros dramáticos, mas com muito coração, Os Rejeitados nos envolve. As cenas são pontuais; as reações, verdadeiras; os diálogos, repletos de insight. É uma verdadeira tragicomédia da vida pequeno-burguesa e uma crítica a escolas sisudas e ‘tradicionais”. Na trilha sonora temos até Cat Stevens (“The Wind”) nos momentos em que professor e aluno trocam cândidas experiências natalinas, algo que nos remete, mesmo que inconscientemente, ao clássico Ensina-me a Viver (1971).

Paul e Angus, duas personalidades tão diferentes e tão próximas. Ambos acabam descobrindo que lutam contra a depressão por fatores diversos, mas possuem em comum uma profunda solidão e a dor do abandono. Em Mary, Angus encontra um afeto genuíno e sem afetação. O título em português, Os Rejeitados, é exatamente o que a história sugere: um grupo de outcasts, completamente diferentes entre si, que encontram pontos comuns em seus sofrimentos e buscam o alívio de suas tristezas oferecendo apoio emocional uns aos outros. 

Somos, então, agraciados com estranhos saudosos de um Natal com família ou amigos, pela ausência ou pela rejeição. Um drama triste, um coming da relação professor/aluno sem apelar para clichês no estilo de Sociedade Dos Poetas Mortos (1989). Uma transferência materna entre Mary e Angus sem apelar para o melodrama desnecessário. Todos aqui possuem feridas abertas, novas ou antigas. A ajuda é mútua e balanceada. E a lição final que fica é a de que nunca é tarde demais para quebrar algumas regras que para nada mais nos servem a não ser representar o papel de algemas para nossa liberdade e felicidade. É a permissão para ser alegre, mesmo em situações difíceis. Um sorriso no meio do solo desolado da tristeza. (TZ)

Music

Nenhum de Nós – ao vivo

Sem um integrante, banda apresenta em Curitiba uma acentuada veia rock’n’roll jamais vista em shows anteriores

Texto por Abonico Smith

Fotos de iaskara

Quando vou escrever o texto de alguma resenha procuro pensar numa ideia referente ao objeto da análise. Pode ser algo sobre o artista, a obra, o público-alvo, mas necessariamente precisa poder me dar algum assunto para discorrer sobre, defender alguma teoria – seja positiva ou negativa – a respeito disso. Quando solicitei o credenciamento para realizar a cobertura da recente passagem do Nenhum de Nós por Curitiba fiquei matutando a respeito do que iria ser a costura do texto.

Acabei me fixando em um ponto curioso. Ainda são várias as bandas que colocaram o rock no mainstream brasileiro a partir dos anos 1980 que permanecem em atividade. Isso que dizer que lá se vão entre três e quatro décadas continuas de shows e lançamentos de discos (no formato do momento do mercado fonográfico que fosse). Só quase todas sofreram com perdas pelo caminho. Mortes, desentendimentos, rompimentos e saídas dos integrantes de suas formações, se não a original, a clássica, aquela que ficou conhecida pelo grande público. Só para citar algumas que permanecem vivas: Blitz, Rádio Táxi, RPM, Barão Vermelho, Titãs, Ultraje a Rigor, Ratos de Porão, Mercenárias, Replicantes, Ira!, Capital Inicial, Biquíni, Inocentes, Plebe Rude, Legião Urbana (ops, essa não pode, judicialmente, nem utilizar o próprio nome durante as turnês!). Se o panorama se estender para os anos 1990, outra década de ouro do gênero no Brasil, temos Raimundos, Nação Zumbi, mundo livre s/a, Planet Hemp, Natiruts, Relespública, Sepultura e por aí vai. Caso você queira estender o panorama aos anos 1970, dá para adicionar dois heróis da resistência bem famosos, que mais recentemente decidiram retomar a trajetória como conjunto: Mutantes e Novos Baianos.

São poucos os exemplos quem sobreviveu ao desmonte mantendo o mesmo time clássico de músicos. Pode-se começar por aquelas exceções graças a curiosidades. O Los Hermanos só volta a se reunir em turnês esporádicas a cada três ou quatro anos. O Skank permaneceu unido até o começo deste ano até, enfim, dar adeus aos palcos. O Pato Fu iniciou como um trio que está lá até hoje na linha de frente, embora outros instrumentistas (teclados, bateria, percussão) tenham ido e vindo na formação. Dá para contar nos dedos de uma mão aqueles que permanecem intocáveis: Jota Quest, Racionais MCs (ainda mais para quem defende a teoria de que o rap é o novo rock), Paralamas do Sucesso (que inclusive montaram um show baseado no trio-que-vira-quarteto, com o tecladista que toca com eles desde sempre) e, o foco deste texto, Nenhum de Nós. Muitos músicos dizem que fazer parte de uma banda é como manter um casamento, quase sempre com mais de duas pessoas envolvidas. Por isso dar continuidade ao relacionamento acaba virando algo difícil quanto com o passar dos anos. Sem falar no sempre eterno Made In Brazil.

O Nenhum de Nós é um caso interessante quanto a isso. Começou em Porto Alegre em 1986 como um trio (Thedy Corrêa, baixo e voz; Carlos Stein, guitarra; Sady Homrich, bateria) e nos anos seguintes gravou os dois primeiros discos, já com três grandes hits  nacional (“Camila, Camila”, “Eu Caminhava” e “O Astronauta de Mármore”). O terceiro, de 1990, indicou um crescimento tanto no direcionamento sonoro (a incorporação de timbres e instrumentos que flertavam com a música tradicional gaúcha) e o acréscimo de Veco Marques para se dividir entre os violões e a segunda guitarra. Em 1996, já no sexto disco, o quarteto virou oficialmente um quinteto, com o músico de apoio João Vicenti (teclados e acordeon) virando membro fixo. Já na primeira década do novo século, Thedy passou a se dedicar mais à função de frontman sem ter de estar sempre tocando algo com as mãos. Por isso, deixou o baixo a cargo de Estevão Camargo, que desde então acompanha o grupo nos concertos sem, contudo, figurar na formação oficial. Portanto, é um trio que virou quarto, transformou-se em quinteto e hoje viaja como sexteto. Mas o mais importante é que quem entrou para o time não saiu mais. Nunca mais. Pelo menos até agora. Ou não?

Madrugada de 17 de setembro deste ano. Perto da uma da manhã, o Nenhum de Nós está sendo aguardado por uma plateia ávida por rock cantado em português. A banda gaúcha era a atração principal da noite no White Hall Jockey Eventos, que lançava a edição deste ano do Prime Rock Festival em Curitiba, evento anual que reúne grandes nomes do segmento durante um dia todo na Pedreira Paulo Leminski – informações sobre atrações, ingressos e tudo mais do próximo dia 9 de dezembro você encontra clicando aqui). Chego quase em cima da hora do início do show e me posiciono bem na cara do palco, mas na lateral direita. Era uma área reservada para ingressos vip. Dali, bem na grade, enxergava com perfeição a frente toda. Mas pouco via a bateria colocada ali ao fundo.

Entraram os músicos. Thedy, Carlos, Veco, Sady, Estevão… Mas cadê João? Me dirigi em direção ao centro e só então caiu a ficha: não havia nada de teclas disposto no palco. Nada da sanfona, nenhum teclado sequer. Atrás dos guitarristas e do vocalista, apenas o kit de Homrich e o pedestal com microfone para o baixista fazer os backings. O que teria acontecido com Vicenti? Espero alguma informação dita entre as músicas a respeito da ausência. Nada. Teria saído do grupo?

Lembro rapidamente que horas antes havia procurado na internet NdN informação mais recente sobre a banda. Algum lançamento, algum anúncio. Afinal, já fazia um tempinho que não sabia nada a respeito de novidades. Para minha surpresa, um comunicado dizia que o site oficial está em fase de reconstrução e em breve estará novamente ativo. Fui às redes sociais do NdN e também nada de novo encontrei por lá. Enquanto isso, as primeiras canções seguiam e Thedy continuava sem se pronunciar a respeito da “nova formação” de quinteto.

Passou mais um filme ligeiro em minha cabeça. O de que jornalistas também passam por perrengues em suas coberturas externas. Muitas vezes o cenário encontrado no local pode não bater com as informações prévias que existem sobre aquela pauta. Me peguei ficando surpreso e ansioso por alguma peça que ainda faltava no quebra-cabeça. Acompanho a trajetória ao vivo do NdN com regularidade desde 1988, quando assisti em um palquinho armado no Parque Barigui ao lançamento do primeiro álbum deles (e na sequência fui entrevistá-los no microônibus estacionado nos bastidores). Na foto utilizada nas peças promocionais da apresentação do White Hall o tecladista estava presente. Cadê João Vicenti e por quê ele não estava lá eram as perguntas que se repetiam em marteladas na mente. Havia ainda espaço para mais outras duas: será que todo o mote previamente pensado para escrever este texto teria simplesmente desabado em questão de segundos e eu teria de me virar para achar um fio condutor ali, meio que do nada, enquanto as músicas eram tocadas?

Um certo nervosismo tomou conta depois de um punhado delas. Fui observando como estavam os arranjos sem piano, teclado e acordeon. Percebi que Thedy empunhou mais vezes o violão, tecendo o fundo das bases harmônicas. Percebi também que o volume das guitarras de Veco e Carlos estavam mais alto do que o de outros shows anteriores em que estive presente. Com mais peso e distorções também. Puxava na cabeça a lembrança das gravações em discos de estúdio. Tinha momentos em que eles (às vezes um, às vezes outro, às vezes os dois juntos) substituíam os riffs tocados nas teclas pretas e brancas ali nas ligas metálicas que formam as seis cordas. Aos poucos ia criando um plano B para poder fazer a resenha enquanto ainda esperava alguma fala sobre a ausência da noite. Criatividade e improviso também são recursos de última hora que podem (e devem) ser utilizados durante o exercício do jornalismo.

set list do Nenhum de Nós em versão quinteto acabava surpreendendo. Nunca havia visto os gaúchos em uma performance tão (com o perdão do trocadilho besta para um artista que já lançou alguns discos acústicos!) elétrica. A veia pop que sempre permeou aquela extensa coleção de hits que o grupo costuma tocar ao vivo nunca havia soado tão rock’n’roll como ali, naquele instante. Várias vezes me peguei olhando o figurino escolhido pelo vocalista para se apresentar na capital paranaense. Uma jaqueta jeans trazia vários signos do rock entre o cult e ounderground. O slogan básico rock’n’roll, uma caveira, uma cruz, um enorme rosto de David Bowie do look raio colorido no rosto enfeitava as nas costas, um X bem grande na lateral frontal (que poderia remeter tanto à negação e à ruptura propostas pelo gênero como também à histórica banda punk X, de Los Angeles). Por baixo da jaqueta, uma camiseta com a estampa onde se lia o nome original do livro Espere a Primavera, Bandini. Publicada em 1938, a primeira obra de John Fante fala sobre o típico sentimento de inadaptação durante a adolescência, o fato de se sentir deslocado em relação à família, escola e sistema vigente. O protagonista Bandini nada mais era do que o alter ego do autor, que depois viria a escrever o clássico Pergunte ao Pó e se tornar um dos nomes mais cultuados da literatura underground norte-americana do século 20. Sei que Thedy é um consumidor voraz de livros e HQs. Estaria ali na camiseta dele um recado discreto sobre a “nova fase” do NdN?

Conforme o show se encaminhava para o final sentia o que em inglês se chama de mixed emotions. Gosto demais do terceiro álbum, Extraño, de 1990, no qual o Nenhum de Nós passou a incorporar elementos e influências da música regional do sul do país, criando uma identidade própria que passou a diferenciá-la de outros grupos locais de sua época – inclusive incluí o disco na minha votação feita para o recentemente lançado livro sobre os cem maiores álbuns do rock gaúcho. Com o tempo e a rápida consolidação do então músico de apoio João Vicenti na formação oficial, o NdN foi desenhando uma sólida discografia em conjunto com grande fanbase em todo o país. Saiu de uma grande gravadora, pipocou por vários selos menores e/ou independentes, voltou a uma major, retornou à independência (estacionando em 2009, enfim, no do it yourself do selo ligado à própria produtora de shows que sempre esteve com a banda). Tudo isso sem diminuir o volume de convites, viagens, lançamentos e fãs. Como assim, de uma hora para outra, depois de três décadas, poderia haver uma nova adaptação sonora tão repentina?

Ao mesmo tempo, a garra e o afinco mostrados ali, sem João e com muita segurança, possibilitaram que, sim, poderiam servir como um alívio imediato (com o perdão do trocadilho que faz uso do nome de uma música de outros gaúchos, os Engenheiros do Hawaii!) para um possível imediatamente “novo” NdN. Ao vivo já resolvido. Talvez em estúdio preparando novidades e surpresas para logo.

set list foi chegando ao final com os refrões dos diversos hits cantados a plenos pulmões e algumas covers adicionadas estrategicamente no repertório – afinal o evento era para promover o vindouro festival que celebra o rock nacional. Teve, então, “O Segundo Sol” (de Nando Reis mas muito famosa na voz de Cassia Eller), “Gita”(de Raul Seixas, de quem eles já regravaram “Tente Outra Vez”), “Um Girassol da Cor de Seu Cabelo” (de Lô Borges e lançado no histórico álbum Clube da Esquina) e “Toda Forma de Amor” (de Lulu Santos). As duas últimas, aliás, os gaúchos regravaram em Outros, disco de intérprete dedicado ao repertório alheio, lançado em 2012). E o encerramento (por que não?) do bis ficou com “O Astronauta de Mármore”, a consagrada versão em português para “Starman”, de David Bowie. Contudo, nenhum palavra proferida a respeito de João Vicenti não estar ali. 

Depois de cerca de uma hora e quinze de apresentação, saí do White Hall ainda encafifado mas com uma ideia simples e básica: mandar uma mensagem para Thedy perguntando o porquê da ausência de João. A resposta chegou no meu whatsapp horas depois, dando, enfim, uma conclusão para o mistério: ele sequer embarcara para Curitiba, pois havia sentido uma indisposição. Menos mal. O Nenhum de Nós não perdera um membro. O desfalque era apenas momentâneo e a sonoridade com a mistura de elementos da música gaúcha não fora descartada. Lado positivo: quem esteve ali na casa pode ver um raro show do NdN em que ele voltava às origens guitarreias pré-Extraño, porém com muito mais peso e barulho. E o fim definitivo dessa incógnita ainda possibilitou uma saída robusta para a tarefa de escrever o texto sobre o concerto: transformá-lo em misto de resenha, relato pessoal da noite e crônica gonzo.

Set list: “Paz e Amor”, “Notícia Boa”, “Eu Caminhava”, “Amanhã ou Depois”, “Eu Não Entendo”, “Das Coisas Que Eu Entendo”, “O Segundo Sol”, “Sobre o Tempo”, “Um Girassol da Cor de Seu Cabelo”, “Diga a Ela”, “Gita”, “Julho de 93”, “Você Vai Lembrar de Mim”, “Vou Deixar Que Você Se Vá” e “Camila, Camila”. Bis: “Toda Forma de Amor” e “O Astronauta de Mármore”.

Movies, TV

O Mistério de Marilyn Monroe: Gravações Inéditas

Documentário traz os áudios de minuciosa pesquisa de jornalista que investigou vida e morte da atriz que abalou Hollywood e a política dos EUA

Texto por Carolina Genez

Foto: Netflix/Divulgação

Marilyn Monroe é uma das mais marcantes, senão a mais marcante estrela de Hollywood. Sua morte, que fará 60 anos no próximo dia 4 de agosto, sempre foi cercada de mistérios e dúvidas. Por isso, qualquer coisa que destrinche a trajetória da estrela sempre gera curiosidade no público cinéfilo. Mesmo que venha uma novidade sem muito a acrescentar no quesito ineditismo.

O documentário O Mistério de Marilyn Monroe: Gravações Inéditas (The Mystery Of Marilyn Monroe: The Unheard Tapes, EUA, 2022 – Netflix) é baseado no trabalho do jornalista Anthony Summers que, durante a década de 1980, época em que o caso de Marilyn foi aberto, resolveu investigar minuciosamente a vida da atriz, entrevistando pessoas que de certa forma cruzaram a vida dela.  O trabalho de Summers durou mais de três anos por causa da grande dificuldade de obter informações junto às fontes consultadas. Por conta disso, Summers optou por traçar neste audiovisual uma linha do tempo da vida da atriz desde 1940 até sua morte em 1962.

A primeira metade do documentário acompanha o início da carreira da atriz e acima de tudo reforça a dedicação e a paixão que Norma Jeane Mortenson (seu nome verdadeiro) tinha pelo cinema – o que é evidenciado tanto nas entrevistas com amigos e outros atores e diretores de Hollywood, quanto em relatos da própria atriz. Durante a produção, são mostrados clipes de Marilyn que não só glorificam a velha Hollywood, como também comprovam seu talento em cena e mostram como sua presença era magnética.

Através das entrevistas, liberadas pela primeira vez pelo autor, o público é convidado a conhecer mais sobre afigura Marilyn Monroe, principalmente sobre sua personalidade e vida fora das câmeras. Ela era corajosa, dedicada e talentosa; estas são algumas das impressões passadas através dos relatos. As entrevistas também são ilustradas de maneira muito interessante ao utilizar de atores para dublar as gravações originais, o que deixa o documentário mais dinâmico. Além disso, diversos clipes de filmes e fotografias da atriz que apenas confirmam aquilo que já é sabido por todos: Marilyn era uma mulher única e insubstituível. A direção de fotografia ainda foca num sentimento de melancolia, solidão e tristeza, com diversos vídeos em preto e branco trazendo alguma citação da atriz, modelo e cantora ao fundo. 

O documentário também evidencia a masculinidade tóxica de Hollywood e da mídia jornalística. Essa invasão de privacidade da mídia foi muito vista até recentemente, com o trabalho paparazzi que constantemente invadia os espaços dos artistas para conseguir um furo por meio de fotos a serem publicadas. 

O longa ainda cobre a infância de Marilyn de maneira breve e fazendo suposições de como seu passado teria afetado seu futuro, principalmente os seus relacionamentos amorosos, ao mostrar que mesmo com o extremo sucesso algumas feridas jamais seriam curadas. Um dos focos é a visão trazida a respeito dos casamentos da Monroe com o atleta Joe DiMaggio e com o dramaturgo Arthur Miller. Através de pessoas próximas de Marilyn durante ambos os relacionamentos, Summers relata o que se escondia nos bastidores dessas uniões.

Já a segunda metade da obra traça teorias em relação à morte da atriz e explora sua polêmica relação com os irmãos Robert e John Kennedy, expondo o contexto político e histórico da época e a ligação de Marilyn com todas essas questões. O caso de Monroe com os dois Kennedy compõe a mais conturbada passagem de sua vida, quando a atriz passou a ingerir diversos medicamentos. O longa vai além: apresenta arquivos paranoicos do FBI a respeito de Monroe ter ligações com pessoas tachadas como comunistas e joga a sugestão de que a morte dela poderia ter sido provocada para uma possível queima de arquivo, já que ela sabia muito sobre os fatores políticos do país devido suas conversas com Robert e John, que naquele momento eram respectivamente procurador-geral e presidente dos Estados Unidos (Nota do Editor: algo como a dobradinha conchavista brasileira formada por Jair Bolsonaro e Augusto Aras.)

O Mistério de Marilyn Monroe, porém, falha ao não trazer qualquer nova conclusão sobre a misteriosa morte da atriz. O título da obra leva o público a crer que a misteriosa morte será enfim solucionada no final. Porém, o longa com as pesquisas de Summers se preocupa mais em reconstruir os dias que antecedem a morte naquele verão de 1962, mostrando o estado mental em que a atriz se encontrava e trazendo um retrato humanizado da grande estrela do cinema. O jornalista realiza uma pesquisa completa sobre as últimas horas vividas por Marilyn, evidenciando as diversas controvérsias dos acontecimentos. Ainda assim, o próprio jornalista explica que mesmo com aquelas descobertas registradas nas fitas nada o convencera de que a morte de Marilyn, aos 36 anos de idade, não teria sido um suicídio ou uma overdose acidental de barbitúricos (a resposta correta ninguém saberá porque nenhuma carta de despedida foi deixada!).

Apesar de decepcionar aquela grande expectativa de trazer à tona alguma novidade para a morte de Marilyn, O Mistério de Marilyn Monroe: Gravações Inéditas é uma produção muito interessante e instigante, que de fato traz uma leitura muito detalhada da vida do ícone hollywoodiano. A obra acerta em cheio ao retratar a vida da atriz trazendo emoção e aproximando o espectador das diversas camadas desta magnífica bombshell.

Movies

Ghostbusters: Mais Além

Franquia de sucesso da década de 1980 volta aos cinemas com protagonistas adolescentes e homenagens aos filmes originais

Texto por Flavio Jayme (Pausa Dramática)

Foto: Sony Pictures/Divulgação

O público de hoje pode não saber, mas na década de 1980 os Caça-Fantasmas se tornaram fenômeno mundial. Os filmes foram um acontecimento pop e viraram até desenho animado e videogame com o divertido Geleia como coadjuvante.

Os Caça-Fantasmas, o primeiro filme, foi lançado em 1984 e trazia astros da época em uma história cheia de ação, fantasia, humor e, claro, fantasmas. Nomes como Bill Murray, Sigourney Weaver, Dan Aykroyd e Rick Moranis estavam à frente do elenco e ajudaram a catapultar o sucesso do título com seu carisma e talento. Dirigido por Ivan Reitman, o longa gerou uma continuação um pouco menos memorável em 1989 e ficou marcado na história do cinema.

Como vem acontecendo hoje, não tardaria para que os Caça-Fantasmas voltassem para as telas em um reboot, sequência ou remake. Esqueça o filme de 2016, estrelado por Melissa McCarthy e Kristen Wigg. Ele funciona no máximo como um spin-off esquecível, exagerado e desnecessário.

Agora, depois de vários adiamentos por conta da covid-19 finalmente podemos assistir a Ghostbusters: Mais Além (Ghostbusters: Afterlife, Canadá/EUA, 2021 – Sony Pictures) no cinema. Assim mesmo, com o nome da franquia em inglês, como ditam as regras da globalização. Desta vez, a história vem pra se conectar com o público mais jovem e criar uma nova geração de fãs. Feito para os pais nostálgicos (que são apaixonados pelas duas aventuras de suas infâncias) levarem os filhos ao cinema, Ghostbusters: Mais Além vem prontinho para o momento. Não é apenas uma sequência tardia, mas também uma homenagem aos filmes originais e um reboot. Tudo em um pacote só.

Na aventura, conhecemos Phoebe (McKeena Grace) e seu irmão Trevor (Finn Wolfhard). Ela com 12 anos e ele com 15, os dois são levados para a fazenda do avô que acabou de falecer. Falida, a mãe vai ter que reconstruir a vida sem dinheiro ali naquela cidade minúscula no meio do estado de Oklahoma com os filhos. As crianças não tardam a perceber que a casa do avô está cheia de mistérios e coisas estranhas passam a acontecer.

Durante todo o filme, é nítida a dedicação do diretor Jason Reitman (não por acaso, filho de Ivan Reitman, diretor das produções originais) em homenagear o longa de 1984 e seus protagonistas. A própria história tem um ar de “antiga”, como se fosse algo feito décadas atrás. Não estão ali os exageros nos efeitos especiais tão comuns hoje em dia, nem a histeria no roteiro e até mesmo alguns monstros ou apetrechos parecem “mal feitos” de propósito para dar a ideia de que ainda estamos vendo um filme dos Caça-Fantasmas originais. Desnecessário dizer que aconselhamos muito que você reveja os longas originais antes de ir ao cinema. Mas claro que o longa sofre de uma das maldições do cinema atual: agora os protagonistas são crianças e adolescentes. Os adultos – e aí inclua o careteiro Paul Rudd (de Homem-Formiga) – são meros coadjuvantes da história.

Com um humor inteligente e ágil, muita homenagem aos filmes anteriores e trazendo caras novas para dar continuidade à história, Ghostbusters: Mais Além é um produto de seu tempo: um reboot-sequência que agrada tanto aos fãs antigos quanto cria e se comunica com os novos. Feito na medida pra geração que nasceu na década de 80 e hoje celebra séries e filmes situados na época e olha pro passado com nostalgia. Mas sem esquecer de também olhar pro futuro, o longa também é feito para os mais jovens, repleto de ação e humor. Um filme que abre caminho para o futuro, ainda que ele pareça estar no passado…