Movies

Crimes Of The Future

Uma sociedade anestesiada buscando emoções e sentimentos por meio da exploração da dor é a nova crítica ácida e mórbida de David Cronenberg

Texto por Taís Zago

Foto: O2 Play/Distribuição

O novo filme de David Cronenberg já chegou colhendo comentários bastante mistos. Adorado por alguns críticos e detestado por boa parte do público. E, confesso, isso se torna para mim um grande atrativo na hora de escolher o que assistir. Quando essa oportunidade surgiu pela plataforma Mubi, e eu abracei a causa.

Preciso salientar que não me considero uma grande fã das distopias com tema biológico de Cronenberg. Quando assisti pela primeira vez eXistenZ (1999), fui tomada por um conjunto de irritação e deboche. Naquele tempo ainda estávamos na época de alugar DVD na locadora e depois nos arrependermos amargamente pelos reais gastos. Uma arte já morta atualmente. Mas eXistenZ não foi meu primeiro contato com a obra de David. Como muitos, eu passei a acompanhar o diretor a partir do filme Crash (1996), que gerou uma grande polêmica na época pelo seu tema – a fetichização de limitações físicas e a erotização de acidentes automobilísticos. E foi também em meados dos anos 1990 quando descobri que Cronenberg era responsável por outros shockers que marcaram a minha experiência precoce no gênero do horror, como Scanner (1981) e Naked Lunch (1991). Uma coisa aqui é certa: Cronenberg não pisa em ovos em torno de temas horripilantes, obscuros ou mórbidos. O festejado diretor se destaca exatamente por romper tabus e limites transpondo (sobrepondo?) gêneros. Sua obra nos causa náusea e ao mesmo tempo instiga a reflexão. E essa também é uma função da arte, provocar repulsa.

Em Crimes Of The Future Crimes Of The Future (Canadá/Grécia/Reino Unido, 2022 – O2 Play), o diretor explora um futuro que, apesar de parecer próximo, não é determinado: é quando a ideia de dor praticamente desapareceu nos conceitos humanos. Pessoas andam nas ruas a esmo, com olhares vários, procurando algum tipo de emoção. A droga da vez é a busca pela dor, o que poucos ainda conseguem sentir. A dissecação da alma humana é a dissecação de corpos sob o manto protetivo da arte. Da performance. Como se tudo isso já não nos pintasse uma tela aterrorizante, os seres humanos passaram a desenvolver espontaneamente órgãos com funções não determinadas em seus corpos. Órgãos que crescem como tumores e precisam ser extirpados para não causarem morte ou mutação em seus hospedeiros. E é nesse cenário que Saul Tenser (interpretado por Viggo Mortensen) e sua parceira Caprice (Léa Seydoux) brilham com suas performances artísticas inspiradas em cirurgias e que consistem em Caprice manipulando remotamente incisões e a extrações de órgãos tatuados de dentro do corpo de Saul. Um ato no qual, supostamente, faz-se uma conexão entre dor e prazer e que deixa Saul extasiado. 

Em um tom ainda mais macabro e chocante, Cronenberg já inicia nos oferecendo o assassinato cruel de um menino pela própria mãe, quando esta percebe que o filho, uma vítima das bizarras mutações recorrentes nos humanos, passa a ingerir e digerir plástico. O pai do menino, Lang Dotrice (Scott Speedman), inconformado com o ocorrido e determinado a tornar sua morte um símbolo da resistência dos humanos “já mutados”, oferece o seu pequeno corpo como objeto para uma das performances de Saul e Caprice. Por fim, com a quase impossível função de assumir a posição de comic relief nesse tema tão aterrorizante e denso, temos o curioso escritório chamado National Organ Registry, onde supostamente os novos órgãos identificados são catalogados. É um cantinho empoeirado, sujo e protocolar que lembra o escritório de um detetive fracassado e é comandado por Yevgeny Nourish (Don McKellar) e uma hilária Kristen Stewart no papel de sua assistente Timlin. Esta também é uma fã incondicional do trabalho de Saul e não esconde sua adoração por seu ídolo.

Com todos esses elementos assustadores, alguns pendem a se levantar e sair da sessão no cinema (como fizeram no lançamento do filme, em Cannes) ou parar o streaming nos primeiros 15 minutos. Porém, os que ficam e fazem o esforço de enxergar o que está por baixo da primeira camada de pele dessa obra vão enxergar uma crítica ácida e (por que não?) cirúrgica da humanidade. Cronenberg realiza uma operação de peito aberto em uma sociedade que após lutar para viver anestesiada passa a procurar emoções no que deliberadamente perdeu. A busca aflita por sensações e experiências que tirem as pessoas da letargia em que se encontram seus corpos nessa nova realidade. Uma realidade onde o velho sexo (old sex, como é chamado) já não mais é a forma de prazer suprema. A busca pela dor, a extirpação de órgãos, os cortes e as mutilações são a nova forma de vivenciar algo novo. Temos também uma crítica à arte e à ambição artística em seus sacrifícios, no caso, bem carnais. Até onde podemos ir para receber a atenção e o reconhecimentos dos nossos pares?

Perfeição estética e apuro técnico visual nunca foram os focos de interesse de Cronenberg. Algumas das geringonças biomórficas apresentadas podem nos tirar a atenção e levar ao riso espontâneo – comigo foi a cadeira para “digestão”. Mas relevando isso, Crimes Of The Future é horror com reflexão. Mesmo quando materializada em forma de sangue, órgãos, tripas ou tumores.

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Rainha Elizabeth II

Oito momentos em que a monarca britânica imprimiu a sua marca na cultura pop que ajudou a fomentar em 96 anos de vida

Textos por Marden Machado (Cinemarden) e Abonico Smith

Fotos: Reprodução e divulgação 

Os ponteiros do relógio já haviam ultrapassado a tradicional hora britânica do chá quando o anúncio oficial da morte da rainha Elizabeth II foi disparado pela área de comunicação do governo britânico. A monarca – que completava 70 anos de reinado em 2022, o mais longo de todos os tempos da História – faleceu neste dia 8 de setembro aos 96 anos de idade, no castelo real de Balmoral, na Escócia. Seu filho, Charles, hoje com 73 anos, será o sucessor no trono e se tornará o rei mais velho a ser coroado no Reino Unido.

Nascida Elizabeth Alexandra Mary Windsor, Lilbet – como era chamada pela família – transformou-se em um dos maiores ícones da cultura pop do século 20. Seu rosto, seu simbolismo, sua posição, tudo isso movimenta uma trilhardária indústria do turismo por Londres e outras cidades do Reino Unido (que comporta, além da Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte). Quem vai a Londres deve pelo menos passar ali pela frente dos portões do Palácio de Buckingham – ou assistir ao espetáculo semanal da troca da guarda se for o dia certo para tal. Por isso, o Mondo Bacana comenta oito momentos em que a monarca marcou presença em música, filmes e séries, sendo uma ilustre presença pop dentro da própria cultura pop que sempre ajudou a fomentar durante seu reinado. (AS)

O Discurso do Rei (2010)

O cineasta londrino Tom Hooper começou sua carreira profissional na televisão em 1997, onde dirigiu episódios de seriados e alguns telefilmes e minisséries. Sua estreia no cinema veio em 2004, quando dirigiu Sombras do Passado. Isso não impediu que ele continuasse trabalhando na TV, onde dirigiu em 2008 para a HBO a premiada minissérie John Adams, estrelada pelo ator Paul Giamatti. O Discurso do Rei foi seu terceiro longa. A partir de um roteiro de David Seidler, o filme conta um período da vida do rei George VI, do Reino Unido, que era gago. Ele não esperava tornar-se rei. Isso aconteceu porque seu irmão mais velho abdicou do trono. Veio a Segunda Guerra Mundial e ele precisava falar e inspirar confiança em seu povo. Para tanto, George, vivido por Colin Firth, é levado por sua esposa, Elizabeth (Helena Bonham Carter), para ser tratado por um terapeuta, Lionel Logue (Geoffrey Rush), de métodos pouco ortodoxos. O Discurso do Rei se concentra nesse momento crucial da vida do monarca, pai de Elizabeth II (que também aparece como personagem na história, ainda como uma pequena princesa). Ou seja, todo o caminho que percorreu para superar a gagueira e vencer esse grande desafio. Tom Hooper não é um diretor, digamos assim, cinematográfico. Ele funciona melhor em trabalhos para televisão. De qualquer maneira, o filme recebeu 12 indicações ao Oscar e ganhou nas categorias de filme, diretor, roteiro original e ator. (MM)

A Rainha (2006)

É lugar-comum dizer que ninguém faz filmes sobre a realeza como os ingleses. E se o roteiro for escrito por Peter Morgan, então, é aposta certa. Este é o caso de A Rainha, dirigido por Stephen Frears. A monarca em questão é a rainha Elizabeth II, vivida aqui por Helen Mirren, que ganhou o Oscar de melhor atriz naquele ano pelo papel. A história se passa na primeira semana do mês de setembro de 1997, logo depois do acidente de carro que vitimou a princesa Diana, em Paris. A família real se isola no palácio de Balmoral e cabe a Tony Blair (Michael Sheen), que acabara de ser apontado como primeiro-ministro do Reino Unido, a missão de reconectar os governantes com a população em luto pela morte prematura de sua querida princesa. Para tanto, somente Elizabeth poderá ajudá-lo. Repare como Frears diferencia as cenas onde a realeza e os comuns aparecem. Ele usou duas câmeras: uma 35 mm para os nobres e uma 16 mm para os plebeus. Você pode até não perceber num primeiro momento, mas, com certeza vai sentir que há algo diferente nas mudanças de cenário. (MM)

Spencer (2021)

O cineasta chileno Pablo Larraín iniciou sua carreira em 2001. Desde então tem se revelado um sensível roteirista, diretor e produtor, bem como um adepto de trilogias. A primeira delas, a “Trilogia da Ditadura Chilena”, é composta por Tony Manero (2008), Post Mortem (2010) e No (2012). Em 2016 ele iniciou uma nova trilogia sobre a solidão de mulheres ligadas ao poder. Jackie, estrelado por Natalie Portman no papel da primeira-dama americana Jacqueline Kennedy, viúva do presidente Kennedy, nos dias seguintes a seu assassinato. Com Spencer, ele dá continuidade a essa nova trinca de filmes. Com roteiro de Steven Knight, temos aqui um preciso recorte de três dias na vida da princesa Diana, da família real inglesa, então casada com o príncipe Charles, durante as festividades de Natal junto à Família Real (Stella Gonet interpreta o papel de Elizabeth). No papel-título, a atriz Kristen Stewart interpreta uma jovem angustiada e extremamente solitária presa a uma rotina de obrigações tradicionais que remonta há séculos. O principal elo que Lady Di tem com o mundo real se concentra nas figuras de Maggie (Sally Hawkins), sua estilista; o mordomo Alistar (Timothy Spall); e o cozinheiro Darren (Sean Harris). Além disso, ela tem visões da Ana Bolena, segunda esposa do rei Henrique VIII. Não há registro algum que confirme a história que Spencer conta. Trata-se de uma especulação bastante crível. Principalmente, quando sabemos de inúmeros relatos da rotina da princesa. Larraín é meticuloso em sua narrativa e tem Kristen Stewart em interpretação inspirada, precisa no sotaque britânico e minuciosa nos gestos, olhares e jeito de andar. Como se isso não bastasse, há um cuidado extremado com o desenho de produção, o que resulta em cenários, figurinos e objetos de cena que trabalham a favor da história. Da mesma forma que a fotografia, a montagem e especialmente a bela trilha sonora composta por Jonny Greenwood, guitarrista do Radiohead. (MM)

Corra Que a Polícia Vem Aí (1988)

O trio ZAZ, formado pelos irmãos Jerry e David Zucker junto com Jim Abrahams, surgiu em 1980 com o sucesso Apertem os Cintos, o Piloto Sumiu, comédia que abriu espaço para outras semelhantes com traziam muitas piadas acontecendo ao mesmo tempo em cena. Piadas tanto verbais quanto não verbais, em primeiro, em segundo e até em terceiro planos. Corra Que a Polícia Vem Aí!, de 1988, é, na verdade, uma versão para cinema da série Esquadrão de Polícia, criada pelo trio em 1982, que apresentou o atrapalhado detetive Frank Drebin (Leslie Nielsen). Ele agora está de volta e tem como missão impedir um atentado contra a Rainha Elizabeth II (interpretada por Jeannette Charles), que está nos Estados Unidos para uma visita oficial. O roteiro, escrito pelo ZAZ junto com Pat Proft, não nos poupa de rir, sem exagero, por um segundo sequer. A resposta nas bilheterias foi mais do que satisfatória e gerou duas continuações, além de transformar Nielsen em astro da comédia pastelão. (MM)

The Crown (2016–)

A série anglo-americana feita para a Netflix conta a trajetória de Elizabeth II do seu casamento em 1947 ao começo deste novo século, passando por várias pessoas e acontecimentos que fizeram parte de seu extenso reinado. Com quatro temporadas já disponíveis, já arrebatou várias indicações e premiações. Três atrizes já fizeram a monarca durante a cronologia: Claire Foy, Olivia Colman e Imelda Stauton. A última estreará como protagonista da produção em novembro deste ano, quando vier a quinta temporada. (AS)

Os Simpsons (1989-)

Todo mundo que significa algo a mais na cultura pop mundial com certeza já ganhou alguma participação especial na longeva série de animação criada por Matt Groening. Elizabeth II aparece em carne, osso e pele amarelada em seis episódios (e ainda é mencionada em outros dois!). No mais engraçado deles, que pertence à decima quinta temporada, Homer provoca uma grande balbúrdia ao invadir acidentalmente o Palácio de Buckingham, bater em uma carruagem e ser espancado pela Guarda Real. Depois começa a chamar a rainha de impostora e acaba sentenciado à prisão nas masmorras da Torre de Londres. O desenrolar de tudo isso, se contado, vira spoiler, mas só dá para dizer que até a cantora Madonna acaba tendo seu nome envolvido em todo este imbroglio.

“God Save The Queen” (1977)

Era final de maio de 1977 e o Reino Unido estava nas comemorações do jubileu da rainha, dos 25 anos de monarquia de Elizabeth II. Regidos pelo empresário picareta Malcolm McLaren, os Sex Pistols lançavam – tocando em um navio alugado por McLaren para ficar em movimento à frente do Parlamento, nas águas do Tâmisa – uma nova música com o mesmo nome do hino britânico de séculos e séculos. Só que a letra provoca uma cusparada verbal atrás da outra na história da realeza britânica. Na capa do single, uma foto da Elizabeth jovem cheia de referencia estética da arte punk.  Nos versos vociferados por Johnny Rotten, dizeres como “Deus salve a Rainha/ O regime fascista dela/ Eles fizeram você de idiota/ Uma bomba H em potencial/ Deus salve a Rainha/ Ela não é ser humano/ E não existe futuro/ No sonho da Inglaterra” transformaram a gravação em um clássico do punk rock.

“The Queen Is Dead” (1986)

Terceiro álbum de estúdio e considerado a grande obra-prima da banda inglesa que lançou as carreiras do Morrissey (vocais e letras) e Johnny Marr (guitarras e musicas). Com dez faixas e a capa ostentando uma foto monocromática em verde ao ator francês Alain Delon em um filme de 1964 que levou o nome de Terei o Direito de Matar? no Brasil, o disco tem dez faixas e traz clássicos como “There Is A Light That Never Goes Out”,  “Bigmouth Strikes Again” e “The Boy With The Thorn In His Side”. A abertura do lado A do vinil (e consequentemente a abertura do CD também) fica com a música-título, que traz versos costumeiramente interpretados como antimonarquistas, mas que fazem referência a passagens da vida de Morrissey, sobretudo as dificuldades de relacionamento com a mãe (no caso, a figura da Rainha Elizabeth seria apenas uma metáfora para a incitação a uma inevitável mudança de vida). “The Queen Is Dead”,  a música, não foi lançada como single. Entretanto, acabou ganhando videoclipe pelas mãos do cineasta Derek Jarman, que flagra, por meio de uma câmera frenética sempre em movimento, os momentos de rebeldia e insatisfação da  juventude e a sobreposição de imagens de ruas, edificações, pessoas, árvores, flores e o fogo, que culmina com a simbologia da destruição de tudo que havia até então. Jarman também produziu – com estética semelhante – videoclipes para outros dois singles da banda nesta época (“There Is A Light…” e “Ask”) e lançou tudo sequenciado como um curta-metragem e também sob o nome de The Queen Is Dead.

Series, TV

Euphoria

Segunda temporada da cultuada série continua a maravilhar com suas transgressões na narrativa e os dramas de coming of age

Texto por Taís Zago

Foto: HBO Max/Divulgação

Nunca faltou, em canais de streaming, filmes ou séries do estilo coming of age, onde as agruras da adolescência são esmiuçadas de todas perspectivas possíveis. Pegando como exemplo o canal com mais assinaturas mundo afora, a Netflix, temos uma enxurrada disso nos últimos cinco anos. Do ponto de vista de pessoas com necessidades especiais temos a adorável Atypical (2017-2021). Para a fixação sexual na puberdade, temos a bagunça de Sex Education (2019-) ou a mais comportada – mas não menos engraçada – Never Have I Ever (2020-). Já com foco no público latino temos a escrachada On My Block (2018-2021), com dramas (quase) reais. Para os que gostam de fantasia ou terror, temos The Chilling Adventures Of Sabrina (2018-2020) ou Riverdale (2017-). Os amantes de quadrinhos sombrios foram agraciados com The End Of The Fxxxing World (2017-2019) e I Am Not Okay With This (2020). Ainda tem todo o escopo das direcionadas aos fãs de sci-fi, sendo a mais famosa Stranger Things (2016 -)

Mas nada, NADA MESMO – e nisso podem ser incluídos os outros canais – se compara à série Euphoria (EUA), da HBO Max. A segunda temporada iniciou em janeiro de 2022, e está em pleno andamento. Ou melhor, em plena ascensão, já que a cada episódio quebra (seus próprios) recordes de visualização. É a queridinha da geração Z, é tema de inúmeras postagens semanais no Tik Tok ou polêmicas no Twitter. Não que isso sirva de incentivo para adultos também assistirem a ela. Eu, por exemplo, descobri a série na sua estréia em 2019, quando HBO Max ainda estava se despedindo do formato HBO GO, portanto bem antes do hype se espalhar por todos cantos do mundo. Eu nem mesmo sabia que a protagonista Zendaya já era bastante conhecida por sua carreira musical e por séries infantojuvenis da Disney.

O que prende em Euphoria é que viramos um pouco o adolescente que é retratado, independente da nossa idade. O drama é tão atual, tão real, tão próximo que todo mundo conhece (ou foi) alguém com alguma das dúvidas e angústias dos personagens. E o tom é sério. Mesmo que adentre por vezes um humor cáustico e absurdo. Não tem mesmo muito o que rir por aqui: é uma seriedade púbere, a certeza que a vida sempre vai acabar no próximo porre, no próximo amor ou no próximo high. Mas, curiosamente, nada soa falso ou montado nessa obra. E vejamos que, em uma série onde a protagonista é viciada em drogas (no caso de Rue pode ser qualquer uma indo do fentanyl à morfina), a presença de um imaginário fantástico, do surreal, do lúdico ou do assustador é uma constante.

Para viajarmos sem tomar as drogas embarcarmos na trip com Rue (Zendaya). Se quisermos experimentar todo o ressentimento, a raiva, o medo e a autodepreciação de quem ainda não consegue se aceitar, Nate (Jacob Elordi) é o cara. Se preferirmos nos aprofundar nos dramas de uma menina trans, brilhante e talentosa, que está descobrindo sua sexualidade e seu lugar no mundo, a pessoa indicada é Jules (Hunter Schafer). Se formos explorar as questões de autoimagem e autoestima, Barbie (Barbie Ferreira) e Cassie (Sydney Sweeney) são praticamente estudos de caso. Se decidirmos mergulhar na vida de alguém que nunca conheceu na vida nada diferente de violência, o personagem é Fezco (Angus Cloud). Se nos identificamos com a durona com coração mole, nos enxergamos em Maddie (Alexa Demie). E se nos sentimos descolados de nossa realidade, veremos em Lexi (Maude Apatow) o espelho. Euphoria nos inunda com situações inesperadas e com histórias belas e comoventes. Não tem um único momento novelesco. Não tem nenhum exagero descabido. Não peca em nenhum detalhe, dos figurinos à música. Aliás, a trilha da série é sensacional e vale muito buscar a playlist oficial no Spotify. 

O criador, Sam Levinson, faz tudo: dirige, escreve e produz, o que torna a série quase um one man show, e colhe muitas criticas dos fãs por se recusar a colaborar com outros artistas, salvo em algumas exceções. Euphoria, assim como In Treatment (HBO Max), também é inspirada em uma série de TV israelense, porém em muito supera a sua modesta matriz. Fica bastante evidente que Levinson é o fruto de uma família afluente e ligada ao audiovisual. Mesmo ainda dando seus primeiros passos no ramo, desfrutou de certos privilégios e liberdades criativas e isso fica bem claro na sua forma transgressora e livre de montar os episódios. Não existe ritmo que não possa ser quebrado, flashbacks ou mininarrativas que não possam ser inseridas nos capítulos, sonhos que não se misturem perigosamente com a realidade ou até uma crueza que, muitas vezes, adentra a crueldade. Sam entrou chutando a porta, e o resultado é, felizmente, maravilhoso.

Movies

Encanto

Nova animação da Disney troca o universo dos contos de fada pelo realismo mágico com protagonista latina feminina

Texto por Flavio Jayme (Pausa Dramática)

Foto: Disney/Divulgação

Muito já se falou sobre Encanto (EUA, 2021 – Disney), a sexagésima animação dos estúdios Walt Disney que estreou no dia 25 de novembro nos cinemas brasileiros e agora chega em streaming no Disney+. Da locação inspirada na Colômbia às origens latinas, da diversidade e representatividade às músicas compostas por Lin Manuel-Miranda. Mas nada do que você tenha lido te prepara para a beleza estonteante da aventura protagonizada por Mirabel Madrigal.

Centrado na pequena vila que dá nome ao filme, Encanto conta a história da família Madrigal: como eles foram parar ali, como ganharam os dons de que tanto de se gabam e como fizeram do lugar e de todos à sua volta uma enorme família. No centro da ação está Mirabel (voz original de Stephanie Beatriz, de Em Um Bairro de Nova York), a única da família que não possui um dom. Entre irmãs e primas capazes de criar flores por onde passam ou donas de força extrema, tios que podem prever o futuro ou fazer chover e uma mãe que cura qualquer doença ou ferimento com arepas mágicas (um tipo de pão tradicional da América Latina feito com farinha de milho), a garota de 15 anos é a única que “não tem nada de especial”.

Mirabel, então, decide descobrir o motivo dela ser a única sem um dom e esbarra em um mistério da família: o tio Bruno. Desaparecido há muito tempo, ele previa o futuro mas desagradava a todos com as previsões (que realmente se concretizavam). Para silenciá-lo, a família quase o obrigou a fugir. E é nele que Mirabel acredita estar a resposta para sua pergunta. 

E aqui insiro uma nota particular de piada interna que talvez eu tenha sido o único a perceber: o personagem Bruno acaba por falar demais quando faz suas previsões e sua fuga é um meio de silenciar sua voz. Eu fui o único que pensou em “Silêncio, Bruno!”… de Luca?

Em meio ao visual arrebatador cheio de cor e movimento da vila de Encanto e da Casa Madrigal e dos inúmeros e carismáticos personagens da história, é fácil para nós, adultos, percebermos a real lição por trás daquela trama: não devemos passar a vida nos preocupando em atender às expectativas dos outros e escondendo o que queremos de verdade. Não devemos ter medo de sermos quem quisermos ser.

Com uma trama que flui de maneira fácil e rápida, números musicais incríveis que soam modernos e internacionais e uma personagem tão verdadeira que é quase de carne e osso, Encanto transmite sua lição mais para os pais que para as crianças. Estas vão se deliciar com os animais, as cores e as piadas do filme. Ao abrir mão dos contos de fada e aportar no realismo mágico, a Disney produz um longa de emocionar.

Não tão dramático quanto Frozen ou Raya e o Último DragãoEncanto consegue, sem o perdão do trocadilho, encantar de maneira fácil ao encher nossos olhos com aquele visual de cair o queixo e nos deixar com uma importante lição: seja quem você quiser ser. Este, aliás, pode ser o seu maior dom.

Movies

Uma Segunda Chance Para Amar

História inspirada em canção de George Michael traz Emilia Clarke como uma jovem atrapalhada em busca da felicidade em tempos natalinos

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Texto por Ana Clara Braga

Foto: Universal Pictures/Divulgação

Filmes românticos que se passam nos feriados de final de ano já são rotineiros em Hollywood. Uma Segunda Chance Para Amar (Last Christmas, Reino Unido/EUA, 2019 – Universal Pictures) faz parte de mais uma leva de longas que tentam emplacar bilheteria com carisma e uma história açucarada. Com direção de Paul Feig e roteiro dos atores Emma Thompson e Greg Wise, o longa conta a história de Kate (Emilia Clarke) uma jovem sem rumo que acabou de se recuperar de um problema de saúde. A atriz de Game of Thrones dá vida a personagem de forma natural, gostosa de assistir. Com todos os erros, acertos, atrapalhos e reviravoltas, Kate torna-se uma mulher de fácil identificação.

Tudo muda para a protagonista quando ela conhece Tom (Henry Golding), um homem misterioso que parece enxergar a vida de uma maneira muito mais leve. A premissa clichê não compromete momentos genuinamente divertidos e emocionantes, somados a atuações espontâneas e nem um pouco tediosas. Emma Thompson também faz uma participação como Petra, a peculiar mãe de Kate. Sempre impecável, a atriz diverte e torna-se um dos destaques de Uma Segunda Chance Para Amar.

O filme apresenta uma visão interessante sobre a necessidade – ou não – de um relacionamento na vida de uma mulher. Ponto positivo. É um refresco para o gênero apresentar uma reflexão sobre um tema tão usado e desgastado. A trilha sonora embalada por George Michael é outro acerto e tanto. A delicada homenagem ajuda a contar a história e a criar a imagem da personagem principal, fã de carteirinha do cantor – cuja música “Last Christmas”, gravada em 1984 quando ele ainda participava da dupla Wham!, inspira a trama deste longa-metragem.

Mesmo com sua história bonitinha e divertida, Uma Segunda Chance Para Amar não foge do brega e do previsível. A reviravolta, não tão surpreendente, dá a sensação de que algo não foi explicado direito. A revelação poderia ter sido feita de uma maneira um pouco mais natural e menos nos moldes de novela das 6.

Com um elenco estrelado, um diretor acostumado a fazer comédia e a mesma roteirista responsável por Razão e Sensibilidade, as expectativas para esse filme eram altas. A sensação ao fim dos créditos é a de que faltou algo. Pois, afinal, tantos nomes grandes juntos deveriam produzir algo grandioso como um todo.