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Pantera Negra: Wakanda Para Sempre

Novo filme fala sobre o luto pelo protagonista mas peca ao se estender em personagens demais e tramas paralelas subdesenvolvidas

Texto por Andrizy Bento

Foto: Marvel/Disney/Divulgação

“Só as pessoas mais feridas podem ser grandes líderes”

Sequência do grande sucesso de público e crítica Pantera Negra, de 2018, este Pantera Negra: Wakanda Para Sempre (Black Panther: Wakanda Forever, EUA, 2022 – Marvel/Disney) deveria ser um um filme sobre Shuri, uma produção que se dedicasse a mostrar o crescimento da personagem interpretada pela atriz Letitia Wright, que se obriga a amadurecer após inúmeras perdas. Toda a tragédia em seu entorno daria consistência à jornada da heroína e seria enredo suficiente para um longa, tendo como mola-mestra o luto pela morte do irmão, o rei T’challa (Chadwick Boseman). Uma base lúgubre, triste, mas funcional e eficiente para situar a heroína no panteão de super-heróis que é o MCU (Universo Cinematográfico da Marvel). Porém, é Hollywood e Wakanda Para Sempre faz parte de uma safra de produtos que ultrapassou o nicho ao qual era destinada no passado. Não apenas os fãs de quadrinhos de super-heróis consomem esses filmes hoje em dia. Já há um tempo eles abrangem o público em geral.

Portanto, é necessário fanservice para agradar aos marvetes, introduzindo tudo o que for possível da mitologia dos quadrinhos; contextualizar esse fanservice para atingir os espectadores que não conhecem a base original; e, considerando que a Marvel Studios optou por não escalar um substituto para Boseman (falecido em 2020, vítima de um câncer de cólon) seja por carinho ao saudoso ator ou por preferir não despertar a fúria dos ardorosos fãs, em uma demonstração solene de respeito, compor uma obra cuja essência é o luto pelo rei T’Challa e um tributo a Boseman. Toda a história de sucessão protagonizada por Shuri tem esse sabor agridoce de despedida ao intérprete de Pantera Negra, além de ser intercalada por diversas tramas paralelas. O resultado é um longa sem unidade, que aponta para vários lados. É difícil dar coesão a todos os núcleos narrativos. O diretor Ryan Coogler não parece se esforçar muito para alcançar tal objetivo, contentando-se com épicas cenas de ação e profusas sequências de pesar pela perda de T’Challa. É grandioso na embalagem, porém razoável no conteúdo.   

O que fez Pantera Negra se destacar dentre os longas da franquia MCU nos cinemas, levando-o até mesmo a concorrer ao Oscar de melhor filme, era o equilíbrio do conjunto. Coogler apostou em uma lenda fascinante, com cenas de ação certeiras e uma crítica ao imperialismo americano. Em sua essência, a produção de 2018 era feliz e bem-sucedida ao construir nas telas uma mitologia convincente, envolvendo cerimônias ritualísticas e fortes representações culturais que fundamentam Wakanda sem dispensar as boas e velhas lutas coreografadas, explosões e perseguições que fazem a festa dos fãs de blockbusters e ainda trazia uma base política sólida ao discutir racismo e colonialismo. Wakanda Para Sempre apresenta todos esses elementos, mas de maneira desorganizada e totalmente over.

A homenagem a Chadwick Boseman tem início nos créditos de abertura, continua na bela sequência inicial que representa a cerimônia fúnebre e se estende por toda a história. Após a morte de T’Challa, a rainha Ramonda (Angela Bassett) faz o possível para proteger sua nação de poderosos líderes estrangeiros que buscam se apossar do vibranium (metal fictício encontrado em abundância em Wakanda, que possui a capacidade de absorver todas as vibrações em sua proximidade, bem como a energia cinética direcionada a ela e faz com que a terra natal do Pantera Negra seja rica e poderosa), ao mesmo tempo em que tem de lidar com o luto pela perda do filho e tentar uma conexão com a filha, Shuri, que parece ter se fechado em um casulo após a morte do irmão.

Nesse ínterim, entidades do governo descobrem que Wakanda não é o único lugar a possuir vibranium, identificando-o também no fundo do oceano por meio de um detector construído especificamente para rastrear o elemento. A matéria é proveniente do reino submarino governado por Namor (Tenoch Huerta), um mutante com poderes extraordinários derivados de sua herança genética incomum, com fisiologia anfíbia, força sobre-humana, supervelocidade e pés alados que garantem a ele a capacidade de voar. Ao tomar conhecimento do detector de vibranium, Namor entra em contato com Wakanda a fim de solicitar apoio para que capturem a cientista responsável pela invenção. Riri Williams (Dominique Thorne) é uma jovem universitária que não faz ideia que é o principal alvo dessa caçada. Em meio a tudo isso, Shuri precisa encontrar seu lugar entre as lideranças de Wakanda, digladiando com o próprio rancor e sentimento de vingança que a consome.

O elenco numeroso e as diversas tramas paralelas centradas em diferentes personagens tornam os já eloquentes 161 minutos de Wakanda Para Sempre insuficientes para trabalhar tanto material. Por isso mesmo, várias discussões interessantes acabam exploradas de maneira superficial, alcançando um nível muito raso de debate. É o caso, por exemplo, da tão alardeada (ao menos nos materiais de divulgação!) liderança feminina, que ganha pouca substância. Outros temas trabalhados com pouca profundidade neste exemplar afrofuturista da Marvel são justamente a questão racial e o imperialismo americano. Há muita coisa acontecendo na tela e, ainda assim, o roteiro peca ao não se aprofundar em nenhuma delas: a tentativa de focar em Shuri, as introduções de Namor e Riri Williams e o plot envolvendo o agente Everett Ross (Martin Freeman). Todas essas tramas socadas em um único longa tornam o enredo desequilibrado.

Entendo que Wakanda Para Sempre ocupa uma posição difícil na franquia dos Vingadores. O longa tinha a ingrata função de “substituir” o herói de forma nobre, sem ferir seu legado. Mas toda essa construção aliada à introdução de duas personagens importantes transforma o longa em um bolo de noiva e é justamente o desenvolvimento de Shuri que acaba ofuscado. É até irônico, pois, mesmo sem querer, a personagem já acenava para essa possibilidade desde o ritual de desafio no primeiro longa. A pedra angular deste longa-metragem deveria ser a preparação do terreno para que, aos poucos, Shuri ganhasse protagonismo.

Há um momento em que a princesa pergunta a Namor o porquê de estar lhe contando tudo isso. E eu não resisti e respondi mentalmente: porque filmes hollywoodianos têm a mania de serem expositivos demais e contar origens por meio de flashbacks manjados. A insistência da indústria em subestimar a inteligência do público se baseia na crença de que o espectador não vai ser capaz de acompanhar uma história na tela se tudo não for devidamente explicado.

Se já não bastasse o excesso de tramas que incham o longa, a montagem vacila em diversos momentos, especialmente ao mostrar os desdobramentos de lutas tão definitivas, intercalando ambas e tirando o impacto do desfecho das duas. Como tradição dos filmes do estúdio, este não foge à regra de apresentar embates corporais repletos de cortes secos e abruptos. O design de produção continua primoroso e as cenas pirotécnicas que se desenrolam tanto em terra firme como no mar são empolgantes, embora o longa peque pela falta de contrastes, especialmente nas cenas que se passam no reino de Namor, Talokan. A trilha sonora é composta de vários temas interessantes, mas o conjunto da obra é deveras saturado. Há todo um cuidado em retratar a cultura dos wakandanos, explorando seus costumes e a mitologia dos povos que ocupam aquele território. O mesmo não acontece com os talokans. Mas nem vou reclamar nesse quesito, porque, além da certeza de que Namor regressará, isso só tornaria a produção ainda mais longa e modorrenta. Por falar nisso, a guerra entre as duas nações é maniqueísta e bidimensional, abusando de um artifício muito raso para deflagrar o conflito.

O filme que encerra a fase mais criticada do MCU também é um reflexo da mesma, composta de filmes muito apoteóticos em suas intenções, mas inchados ou apáticos em seus resultados. Wakanda Para Sempre é emocional em diversas passagens, especialmente ao rememorar T’Challa. É conceitual, ao abordar o luto cinematograficamente, mostrando como cada figura do elenco lida com a morte do personagem, do ator e do amigo. Mas não é funcional, não possui um fim, um objetivo. Um demérito irreparável quando nos referimos a obras cinematográficas. Eis um tributo a Chadwick Boseman que não faz a devida justiça a seu homenageado. 

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Ataque dos Cães

Protagonistas fogem do passado para tentar aceitar o presente ao seu redor em faroeste dirigido pela veterana neozelandesa Jane Campion

Texto por Luca Passos

Foto: Netflix/Divulgação 

Há, no cinema estadunidense atual, uma onda revivalista de diversos movimentos passados. Com o faroeste não é diferente, mesmo que este gênero seja considerado, ainda que um tanto injustamente, baluarte de um classicismo temático conservador. As paisagens semi-inóspitas, os casarões de madeira e saloons voltaram a abrigar as figuras arquetípicas que, de uma maneira ou de outra, moldaram a sociedade que agora volta seus olhos ao seu próprio passado, porém trazendo muitas questões de seu presente.

Ataque dos Cães (The Power Of The Dog, EUA/Canadá/Austrália/Nova Zelândia, 2021 – Netflix), dirigido e com roteiro adaptado do livro de 1967 escrito por Thomas Savage pela veterana neozelandesa Jane Campion se passa em Montana, estado no noroeste dos Estados Unidos, no ano de 1925. A trama retrata a relação de dois irmãos, Phil (Benedict Cumberbatch) e George Burbank (Jesse Plemons), que há 25 anos são vaqueiros e donos de um rancho no rincão de lá. A interação dos dois durante o início do filme é de uma incompreensão mútua: Phil é um homem do passado, duro, porém orgulhoso de lembrar de seu falecido mentor, “Bronco” Henry, sempre que tem a oportunidade; enquanto George é retraído, contempla soturnamente as paisagens ao seu redor e vive num entretempo de presente e futuro, um vulto que tenta ser moderno em meio à aspereza de seu ambiente.

Durante uma das conduções que a dupla faz de seu gado pelas redondezas, George conhece a viúva Rose (Kirsten Dunst), dona da estalagem em que seu grupo se abriga e que logo se casará com ele. Ao mesmo tempo, o filho de Rose, Peter (Kodi Smit-McPhee), é apresentado já em clara oposição ao “bronco” Phil: um jovem sensível e ingênuo que quer estudar medicina. O centro dramático é montado quando esse quadrado de protagonistas é forçado a conviver na casa dos Burbank durante as férias de Peter. 

Portanto, o filme se desenrola nas fraturas e possíveis adequações das diferenças dos quatro, com pontuais interações com outros personagens, que, por sua vez, fazem apenas o trabalho de moldar a psique de cada um dos protagonistas. Campion trabalha essa construção lentamente, sem, porém, deixar o ritmo cair a uma contemplação exagerada e auto-condescendente – apenas exige que o espectador preste atenção em pequenos detalhes, nas vestimentas, no uso ou não das palavras, nas reações silenciosas de cada personagem. O clima de tensão aumenta nessa soma de pequenos atritos ou enlaces entre os personagens, em conjunto com a trilha sonora ansiosa de Jonny Greenwood (integrante do Radiohead) que, por vezes, passa por cima de um intimismo que fica apenas desejado – vale lembrar que o livro-base foi uma das inspirações para outro faroeste revivalista, Brokeback Mountain.

A solidão de cada personagem, seja ela virtual ou real, é uma faca de dois gumes: ao mesmo tempo que evita a abertura da barragem de sentimentos de forma piegas, fortemente verbalizada, também pesa sobre os atores, que devem passar emoções que, por vezes, podem até não ser captadas ou nunca expressadas em palavras. Entretanto, todos os quatro nomes principais são capazes de entregar atuações convincentes, mesmo que o casal interpretado por Plemons e Dunst tenha um tempo diminuído de desenvolvimento em relação à dupla de Cumberbatch e Smit-McPhee. Isto, aliás, acaba deixando seus problemas muito mais abstratos e impenetráveis, chegando ao ponto de haver, no ato final, uma ruptura entre a intensidade de suas ações e suas pretensas justificativas. 

É provavelmente nessa ambiguidade relacional entre os personagens, porém, que o filme se sai melhor com a dupla Peter e Phil, onde a trama caminha numa suspensão em que a flor da intimidade deles vai aos poucos sendo desabrochada. Seus espaços intocados, os passados, acabam sendo invadidos sutilmente enquanto Campion e a diretora de fotografia Ari Wegner se deleitam em captar o entorno da casa dos Burbank, com suas colinas e esparsas árvores, em composições belíssimas – evidente herança do tempo em que a diretora foi estudante de Artes Visuais.

Por fim, tomando o gancho, é a herança que faz Ataque dos Cães ser o que é. Campion tem consciência disso. Os personagens se montam a partir de sua aceitação (quase prisão) ou fuga do passado (seja num carro ou numa garrafa de bebida). Tudo remonta ao que não podemos mais ver. Um relógio de pulso, o fraquejar da mão, um olhar perdido, uma corda, uma sela, todas as coisas são símbolos. Mais que isso, são objetos que gravitam do que foi para o que é, uma presença viva do que está morto (há coisa mais viva que as cenas de Phil na floresta?). Mesmo que algumas partes fiquem enevoadas, a atmosfera está lançada e isso se reflete no próprio filme enquanto um faroeste.

Os westerns, além de um gênero altamente popular nos Estados Unidos, são o mito de criação desse país, o contar ininterrupto de uma história que mexe tanto com o passado de uma nação quanto com seu presente. E não é à toa que Campion coloca na boca de Phil a comparação dos irmãos com Rômulo e Remo, gêmeos míticos fundadores de Roma. Além de ter parte na criação de uma nação por meio da narração, também foram os faroestes que ajudaram a sedimentar uma imagem de homem que segue certos preceitos dos “machos” encapsulados por figuras como John Wayne e Gary Cooper e que atualmente vem sendo desmitificada –  processo do qual o longa-metragem de Campion faz parte, junto com outros desta mesma ainda curta década, como o fascinante Cry Macho, de Clint Eastwood, promotor central e agora desconstrutor da “imponência masculina” do oeste profundo.

O poeta Walt Whitman, orgulhoso fruto dos Estados Unidos do século 19 e que lembra o Phil de Cumberbatch por seu afastamento intencional da sociedade moderna e alto nível intelectual, comenta, muito melhor do que eu poderia, essa relação central que permeia Ataque dos Cães. “O que é o presente além do crescimento do passado?”, pergunta. O sentimentalismo do filme, com seu fascínio pelos desejos proibidos, por uma história marginal, é também um crescimento do passado, de uns certos homens e mulheres que não passaram nas telas nas décadas de 1940, 1950 e 1960, e que reclamam, por meio de relíquias, seu lugar nas criações de suas nações e do cinema. Tudo, afinal, termina com o sacrifício de um amor no momento histórico em que começarão a ser criados os mais clássicos faroestes. Um enterro duplo.

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Cruella

Live action inspirado na clássica animação 101 Dálmatas conta a trajetória da vilã com embates fashionistas e estética punk rock

Texto por Janaina Monteiro

Foto: Disney/Divulgação

Duas Emmas travam um embate fashionista retrô com fundo de vingança e estética punk rock na mais nova versão da vilã Cruella (EUA, 2021 – Disney). Ao contrário do que possa parecer, não há plumas no filme adaptado do clássico 101 Dálmatas, escrito pela britânica Dodie Smith em 1961, exibido nos cinemas abertos mundo pandêmico afora e agora chega à plataforma de streaming Disney+. 

O tecido que envolve a silhueta da trama mescla poliéster e algodão. É sustentável e as peles são sintéticas. Pode-se dizer que Craig Gillespie acertou a mão com sua câmera ágil para costurar a origem de Cruella. A protagonista surge como a garotinha Estella (Tipper Seifert-Cleveland), dona de uma personalidade fragmentada – rebelde e genial – refletida no tom de seus cabelos bicolores. Sua metade preta traz à tona a raiva, o ódio, o desejo de vingança. Sua metade branca revela uma menina inteligente, criativa e, por que não, doce. Essa dualidade pode até significar uma resposta ao debate filosófico entre Rousseau-Hobbes-Locke sobre a natureza humana. Afinal, o ser humano já vem ao mundo egoísta; nasce bom e somos corrompidos pela sociedade; ou chegamos aqui como uma folha em branco, a tal tábula rasa? E a genética, qual sua parcela de “culpa”?

O roteiro evoca esse dilema moral/científico da protagonista –  lembrando por vezes Coringa – durante toda a trama, destacando ora o lado “estelar” da vilã, ora o lado cruel. Na infância, a desajustada Estella/Cruella, que sonha em ser estilista de moda, é expulsa da escola. E não foi por conta do seu Converse All Star, não. Estella aprendeu desde cedo a revidar ofensas, a não deixar quieto e levar desaforo pra casa. 

A mãe da garota decide, então, ir a Londres para tentar uma vida melhor e proporcionar um futuro digno para a filha. Antes, porém, é preciso acertar as contas com a Baronesa (Emma Thompson), a estilista mais arrogante e conceituada da paróquia (chega a ser mais arrogante que a Miranda de O Diabo Veste Prada). Durante a parada, no meio do caminho, Estella é “atropelada” por uma tragédia. 

“Acidentes” mudam a vida, diz a anti-heroína. Da noite para o dia, a garota se vê órfã. Sozinha diante da fonte do Regent’s Park com seu único amigo: um cachorro. Aqui já temos uma diferença na construção da personagem. A vilã assume uma postura, digamos, mais politicamente correta do que aquela interpretada por Glenn Close nos anos 1990, que adorava desfilar com seus casacos de pele de dálmata. 

A história, então, segue seu momento Oliver Twist, quando Estella passa a conviver com dois guris, batedores de carteira, Jasper e Horace. Joel Fry e Paul Walter Hauser entregam boas interpretações, apesar de algumas piadinhas sem graça bem ao estilo inglês (culpa do roteiro). O longa, aliás, é sustentado pela ótima escolha dos coadjuvantes, como John McCrea que interpreta o dono de brechó cuja androginia se inspira em David Bowie. 

Estella e seus amigos vivem de furtos e conseguem sobreviver por conta própria. Mas num salto de dez anos, somos apresentados à protagonista em sua fase adulta. O cabelo bicolor se esconde sob uma peruca ruiva. A nossa anti-heroína usa seu dom para criar modelitos usados nos mais diversos delitos. Quando consegue emprego na boutique mais chique de Londres, sua vida se transforma: vira empregada da todo-poderosa esnobe Baronesa e, aos poucos, à medida que as reviravoltas acontecem, a persona Cruella de Vil vai se manifestando.

Por isso, nada melhor que a estética punk dos anos 1970 para narrar a origem dessa personagem às novas gerações que, se não conheciam Blondie ou Stooges, agora conhecem. Essa é uma das razões, aliás, pelas quais os remakes são feitos: adaptar clássicos à contemporaneidade.

A trilha retrô, assinada pelo premiado Nicholas Britell é repleta de canções das décadas de 1960 e 1970, incluindo Supertramp, Bee Gees, Doors, Nina Simone e, claro, os punks por natureza Clash. A inserção sonora acaba dando a impressão de que as sequências se transformam em videoclipes. Se para os ouvidos parece uma overdose, para os olhos o filme é um deleite. O tom noir (o cartaz de Cruella até lembra Sin City) glamouroso é fascinante especialmente para quem se interessa por moda: o figurino excêntrico, com seus vestidos de cetins e lamês; a maquiagem carregada sobretudo nos batons cor de carne, e os penteados extravagantes são, de fato, impecáveis. É uma organza total!

Emma Stone está de parabéns ao incorporar sua personagem estilosa que referencia Vivienne Westwood (a estilista do punk!). A atriz não precisa botar um ovo na boca para inventar seu sotaque britânico e consegue a proeza de pilotar uma motocicleta com salto 12. Genuinamente inglesa, Emma Thompson também brinda o espectador com uma antagonista que há muito tempo estava nos seus planos interpretar. As duas Emmas deverão ainda se reencontrar num futuro não muito distante. Bem ao estilo Marvel, o final dos créditos sugere uma nova adaptação de 101 Dálmatas em formato live action. Mais um spin off à vista!

Movies

Jojo Rabbit

Com humor e sensibilidade história sobre o nazismo é centrada em garoto de dez anos de idade que tem o Führer como amigo imaginário

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Texto por Ana Clara Braga

Foto: Fox/Divulgação

Ser criança é um estado de inocência que infelizmente não é eterno. Por isso, Jojo Rabbit (Nova Zelândia/República Checa/EUA, 2019 – Fox) utiliza-se da ótica infantil para contar uma história sobre nazismo, amor e liberdade. Menos controverso do que parece, o filme é uma delicada imersão em um mundo que não devemos esquecer que existiu para jamais repetir.

Jojo (Roman Griffin Davis) é um garoto de dez anos vivendo na Alemanha nazista e que sonha em ser da guarda pessoal de Hitler. Ele entra para a juventude hitlerista junto de seu melhor amigo Yorki (Archie Yates). Aliás, segundo melhor amigo: o primeiro lugar está reservado para o Führer e enquanto não conhece o verdadeiro fica com o imaginário. Interpretado pelo próprio diretor, Taika Waititi, o ditador de faz de conta é uma consciência expandida de uma criança criada em meio ao fascismo. Jojo, porém, acaba se vendo dividido ao entre a cruz e a espada ao perceber a presença de uma judia em sua própria casa.

O cineasta adaptou o roteiro do livro Caging Skies. Com boas doses de humor, o filme faz graça de situações absurdas como queimas de livros e crianças mexendo com granadas. As hipérboles bem colocadas não deixam de ser uma boa reflexão. O exagero é engraçado, mas fora das telas é assustador.

Rosie (Scarlett Johansson), mãe de Jojo, é uma personagem que leva o filme a outro patamar. Trajando verde diversas vezes, ela evoca os melhores sentimentos que essa cor traz, a esperança e a liberdade. Johansson entrega uma bela atuação de uma mulher fiel às suas ideologias e uma mãe devota a seu filho.

Os ator mirim Roman Griffin Davis é surpreendente ao longo da história. Suas emoções são palpáveis durante todo o filme, deixando muito fácil amar seu personagem. Suas cenas com seu amigo Hitler imaginário rendem diálogos divertidos e psicologicamente interessantes. A cabeça das crianças é algo fascinante e o modo como o filme encontra de mostrar o raciocínio nem tão lógico de um menino de dez anos é incrível.

Nem só de risadas, entretanto, vive Jojo Rabbit. Em sua segunda parte, o longa explora as dores e as maravilhas do amor e o preço de ser livre. Seja no desenvolvimento da relação entre Jojo e sua nova hóspede, na falta do pai ou nos sapatos (sim, nos sapatos!) o filme consegue passar bastante emoção. Taika Waititi brilha de novo ao construir uma narrativa que gera um misto de riso e choro, espanto e identificação. Mais leve que outros filmes que já abordaram o nazismo, este ganha justamente por sua suavidade.

Music

Morrissey – ao vivo

Ídolo britânico presenteia os fãs com repertório multifacetado e performance inspirada em São Paulo

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Texto por Abonico R. Smith e Silvia Macedo

Foto: Fernando Pires/Ultimate Music/Divulgação

Qual Morrissey é o que você quer ver? A maioria de quem já passou dos 40 anos de idade certamente prefere manter na memória aquele jovem topetudo do tempo dos Smiths, que cantava palavras de dor e sofrimento emolduradas pela luxuosa combinação entre batida e dedilhado das cordas da guitarra de Johnny Marr? Tem também aquele horroroso monstro, desprovido de escrúpulos e forrado de preconceitos, que volta e meia veículos corporativos sobre música pop (incluindo aqueles que outrora era independentes e hoje pertencem a grandes grupos de comunicação) andam pintando por aí, como se frases de impacto negativo corressem soltas em sua boca. Tem ainda um impávido senhor quase sexagenário, sagaz, perspicaz e muito bem-humorado, que não perde a chance de brincar com quem está na sua frente e fazer declarações pelas quais escorrem ironia e sarcasmo. Tem também o ídolo decadente, para quem ele parou de fazer algum álbum de boa qualidade faz tempo – as mesmas pessoas, aliás, que procuram sempre ouvir os mesmos discos mais antigos e esperam que os recentes sejam um ctrl C + ctrl Vdas mesmas coisas de sempre. Tem os que se deliciam a cada boa novidade que chega, ao notar que a atual banda está cada vez mais afiada e o acréscimo de parceiros musicais (quatro dos cinco músicos que o acompanham) só resultou em um genial painel de diversidade na sua literatura sonora.

Todos estes Morrisseys eram esperados, de uma forma ou de outra, por quem esteve em 2 de dezembro no Espaço das Américas, em São Paulo. Tinha até aquele fã mais desesperado e obcecado, formando fila na casa desde a manhã daquele domingo com o objetivo de pegar aquele lugar privilegiado à beira do palco, junto à grade da frente da Pista Premium. Tinha também quem não era nem nascido quando o poeta de Manchester irrompeu no cenário musical britânico à frente de sua primeira banda, entre os anos de 1982 e 1987. Mas o Morrissey que subiu ao palco era apenas um: a pessoa inspirada e de bem com a vida, desfrutando de novo período de intensa fertilidade criativa, gravando um disco após o outro, fazendo longas turnês no intervalo entre as sessões de estúdio e sem nenhum grande protesto por ora, interessado apenas em fazer aquilo que faz de melhor, que é cantar.

E como canta! Às vésperas de completar 60 anos, Morrissey canta hoje muito mais e melhor do que já cantava, sem abrir mão de estilo, técnica, doçura e interpretação das palavras. Sua performance também está mais tranquila, sem os arroubos de antes, mas ainda intimamente ligada a seus fãs mais histéricos, como aqueles que levam vinis para o ídolo assinar em plena ação no palco (e ele, bem simpático, fez isso!) ou disputam a tapas pedaços das camisas que ele tira do corpo, rasga e arremessa à plateia.

Antes da subida do sexteto ao palco a já tradicional seleção de repertório em audiovisuais feita a dedo pelo próprio vocalista. Desta vez, começou o punk dos Ramones e culminou com o glam de David Bowie em “Rebel Rebel”. Depois foram cem minutos de intenso bom humor e  boa forma de Morrissey. Quem queria um reencontro com faixas dos Smiths ganhou três delas de presente (“William It Was Really Nothing”, “Is It Really So Strange?” e “How Soon Is Now”). Quem queria novidades ficou com outras três do mais recente trabalho, o álbum Low In High School, lançado no final do ano passado (“Spent The Day In Bed”, “Jacky Is Only Happy When She’s Up On a Stage”, “I Wish You Lonely”). Quem queria o resgate de faixas que havia tempos não apareciam no repertório dos shows também pode saborear preciosidades como “Sunny”, “Jack The Ripper”, “Hold On To Your Freinds”, “Break Up The Family e “Hairdresser On Fire”. Teve o novíssimo single ainda inédito em álbum, a cover de “Back On The Chain Gang”, dos Pretenders (aliás, ele pediu aos fãs que comprasse o trabalho de regravações que lançará no início do ano que vem). Quem procurava por raridades também ganhou “Dial-a-Cliché” (do primeiro pós-Smiths, Viva Hate, de 1988, e até a atual turnê latino-americana nunca cantada em shows) e b sidesde compactos como “If You Don’t Like, Don’t Look At Me” e “Munich Air Disaster 1958”. Também teve hitsda primeira fase solo (“Alma Matters”, “November Spawned a Monster”, “Everyday Is Like Sunday). Por fim, uma breve espanada pelos bons trabalhos mais recentes (“Life Is a Pigsty”, “The Bullfighter Dies” e uma inesperado “First Of The Gang To Die” para encerrar o bis e jogar mais uma camisa na direção dos fãs).

Steven Patrick Morrissey incorpora tantos Morrisseys – tanto em seu dia a dia quanto no imaginário de seus fãs e detratores ou ambos ao mesmo tempo – que ele ainda se dá ao luxo de usar no show uma camiseta estampada com seu próprio nome e rosto (daquelas oficiais à venda foi a que se esgotou mais rapidamente, deixando muita gente a ver navios após o show) e por isso mesmo se torna a cada dia ainda mais fascinante. Desta vez ao menos, todos devem ter saído contentes do show. Sem reclamações.

Set list: “William, It Was Really Nothing”, “Alma Matters”, “I Wish You Lonely”, “Is It Really So Strange?”, “Hairdresser On Fire”, “November Spawned a Monster”, “Break Up The Family”, “Back On The Chain Gang”, “Spent The Day In Bed”, “Sunny”, “If You Don’t Like Me, Don’t Look At Me”, “Munich Air Disaster 1958”, “Dial-a-Cliché”, “The Bullfighter Dies”, “How Soon Is Now?”, “Hold On To Your Friends”, “Life Is a Pigsty”. “Jack The Ripper” e “Jacky’s Only Happy When She’s Up On The Stage”. Bis: “Everyday Is Like Sunday” e “First Of The Gang To Die”.