Misteriosa criatura que literalmente cai do céu transforma o dia a dia de um idoso rabugento em tocante drama de premissa sci-fi
Texto: Abonico Smith
Foto: Synapse/Divulgação
Na língua inglesa, o termo stranger designa tanto “estranha/o”ou “estrangeira/o”. Pode ser algo ou alguém que chega de outro lugar ou mesmo da própria região mas que não seja codificável de alguma forma para a gente. E é justamente esta ambiguidade de significados que faz esta palavra ser a grande norteadora de um filme como Nosso Amigo Extraordinário (Jules, EUA, 2023 – Synapse), que estreou nesta quinta-feira nos cinemas brasileiros.
Primeiro conhecemos Milton Robinson (Ben Kingsley), que representa o estranho. Aos 78 anos, ele vive sozinho em uma pequena cidade do oeste do estado da Pensilvânia. Viúvo, ele não fala com o filho por causa de divergências parentais do passado. A filha Denise, veterinária, é o seu único elo familiar, embora as conversas sejam poucas, praticamente por telefone e à base de algumas turras. A idade avançada ainda dá indícios de que desenvolve sinais de Alzheimer, como uma constante apresentação de repetições e esquecimentos. Sua vida consiste basicamente em ficar em casa assistindo a alguns programas de televisão e se reunir periodicamente com outros moradores da região em uma assembleia pública para sugestão de ideias que possam vir a causar algum tipo de benfeitoria para o município. Contudo, ninguém parece levá-lo muito a sério, sobretudo quando abre a boca para dizer alguma coisa.
O cotidiano de Milton começa a ganhar um novo sentido quando em uma noite, de uma hora para a outra, desaba um OVNI no quintal de sua casa e uma criatura alienígena se vê presa e perdida na Terra, sem poder fazer muito para voltar logo para casa. De aparência humanoide, cor cinzenta e temperamento pacífico e amigável, ela não emite qualquer som. Apenas se comunica com Robinson por meio de olhares expressivos e poucas movimentações corporais. Também não existe nela indicação de gênero sexual. Por isso, o batismo de Jules – dado por uma amiga de Milton que acaba descobrindo a/o “hóspede secreto” – lhe cai bem. Afinal, este nome de origem francesa é neutro, serve tanto para o masculino quanto o feminino.
Jules comanda uma revolução na vida do aposentado. Aos poucos, sua rabugice, em muito provocada pelo sentimento de solidão, transforma-se em amizade. Quem também experimenta a mesma sensação são duas amigas de mesma faixa etária (porém de pensamentos, progressista e conservador, completamente em oposição uma da outra).Elas não só descobrem o grande segredo do protagonista como também passam a dividir confidências de vida e nutrir amor pela criatura que literalmente caiu do céu. O ser alienígena passa a atuar como uma espécie de psiquiatra: dá ouvidos para as confissões e lembranças dos terráqueos e, assim, faz com que eles se sintam melhor ao passar a limpo tudo o que sentem com as pessoas e as coisas ao redor deles. Tudo porque agora já possuem uma companhia para conversar e que lhes dê a devida atenção.
Mais conhecido em Hollywood por outra função nos bastidores de Hollywood, a de produtor (no seu currículo estão longas como Pequena Miss Sunshine, Uma Vida Iluminada e o recente Um Lindo Dia na Vizinhança), o diretor Marc Turtletaub esbarra na tangente da ficção científica para conceber um bom drama sobre o comportamento humano. O roteiro dá umas capengadas, ainda mais na fase em que o governo americano, que procura esconder dos cidadãos a existência do disco-voador visto no céu da cidade, manda os policias locais investigarem (e depois invadirem) a casa de Milton. A trilha sonora assinada pelo alemão Volker Bertelmann, vencedor do último oscar da categoria por Nada de Novo no Front, também exagera nas pontuações do stacatto em demasia para demonstrar toda a tensão vivia pelos quatro personagens principais do ato final.
Uma coisa, porém, é inegável: a grande atuação de Jade Quon como Jules. Debaixo de uma caprichada maquiagem de rosto e corpo (que levava horas e horas para acabar e precisou ser feita trinta vezes no total durante as filmagens), a atriz, de traços e ascendência asiática, um metro e meio de altura e que também é mais conhecida em Hollywood por outra função, a de dublê, se mostra soberba nos olhares e nos gestos econômicos, sutis. Somando-se à experiência e ao talento de Kingsley, provoca uma bela química na tela e mostra que nem sempre o uso de CGI é tão necessário assim para um filme de premissa sci-fi.
Nosso Amigo Extraordinário é obra pequena no orçamento e nas pretensões, mas grande no resultado e nas emoções despertadas em quem a assiste. Pena que o título em português soe tão deslocado (e óbvio demais) ao perder a ambiguidade e o mistério do nome original. Certas vezes, para o bem desta obra, torna-se recomendável manter os trunfos de um idioma estrangeiro e achar estranho que o público brasileiro possa vir a entender.
Projeto documental acompanha uma das lideranças das ocupações realizadas por estudantes gaúchos durante o ano de 2016
Texto por Leonardo Andreiko
Foto: Galo de Briga Fimes/Divulgação
Em 2016, centenas de escolas de ensino médio foram ocupadas ao redor do Brasil. Nossa modesta Primavera Árabe, aquela chamada Primavera Secundarista, inseriu-se no contexto arisco da defesa da presidente Dilma Rousseff contra o golpe que sofria por parte do Congresso Nacional, de Michel Temer e demais setores dos três poderes – “Com o Supremo, com tudo”, como imortalizou Romero Jucá.
Nesse contexto, mas também reivindicando mais atenção às políticas públicas de educação, o Brasil foi tomado pelo breve protagonismo da juventude. Se o corajoso movimento não rendeu muitos frutos, afinal a democracia atual se encontra sob ataques muito mais graves que o neoliberalismo do governo Temer, ainda nos propicia uma série de reflexões.
Observando de perto a movimentação das ocupações gaúchas, Hamlet (Brasil, 2022 – Galo de Briga Filmes) é um projeto documental que acompanha Fredericco Restori, uma das lideranças dos ocupantes de uma grande escola de Porto Alegre. A narrativa dispersa é muito mais uma coleção de momentos – plenárias, assembleias, reuniões entre ocupantes, palestras e até a hora do videogame – que uma representação ampla e didática do período da ocupação.
Num primeiro momento, a câmera errática dirigida por Zeca Brito parece incerta do que quer filmar. O registro histórico se inicia numa grande plenária, em que já desponta a presença de Fredericco. Embora este seja nosso protagonista desde a primeira cena do longa-metragem, Brito parece muito mais interessado na coletividade dos ocupantes do colégio, um conjunto de sem nomes que insiste na “horizontalidade democrática”, por assim dizer, e nunca é gravada só.
O foco constantemente desregulado, a princípio, parece sintoma de uma operação de câmera ansiosa em capturar a essencialidade do momento, mas logo se denuncia em seu exagero: ao compor as sequências cotidianas da ocupação, assim como suas seções mais dialógicas, Zeca Brito escancara seu próprio processo de formalização, ainda que busque escondê-lo sob um fino véu de naturalismo. Partimos do “parece ser” para o “quer parecer ser”, um movimento que não é ruim em si mesmo, mas interessante por nos lembrar que documentário não é realidade – é cinema.
Num segundo momento, esteticamente mais interessante, Hamlet assume seu discurso mais narrativo que repórter, utilizando ligações telefônicas de Fredericco como meio para a exposição de seu conflito interno, que também é refletido em sequências subjetivas. A bem da verdade, esse estatuto da obra sempre esteve presente, já que o filme se inicia, antes do registro histórico das ocupações, com uma conversa entre Fredericco e um homem mais velho tecendo comparações entre sua condição de liderança e a dúvida central de Hamlet: “ser ou não ser, eis a questão”.
Se o filme não esconde a condição de líder que caracteriza Fredericco, sua ideologia juvenil, a princípio, recusa-se a aceitá-la. Ao longo de Hamlet, sua posição vai de “precisamos manter a horizontalidade para não tornar este um movimento fascista” para “eu queria ser líder, e era líder, mas não tinha coragem de admitir”. A ingenuidade da mobilização secundarista permeia todos os acontecimentos do filme – desde a rusga desmobilizada com entidades de base da categoria, como a UBES e a UNE, até a escuta atenta aos ensinamentos do grande crítico e cineasta brasileiro Jean-Claude Bernadet sobre a conjuntura política.
Justamente por essa inerente ingenuidade, alguns dos momentos aqui retratados conferem ao filme um curioso frescor: um “vai chorar” que vaza na captação sonora durante um protesto; o canto “Bololo ha ha, quero ver desocupar”, eco da relação entre política e cultura que é muito única a cada geração que a vive; a incessante descoordenação da massa durante momentos de tensão, em que o silêncio é um episódio raro que, quando acontece, é muito efêmero.
Contudo, se esses momentos evocam no espectador não mais que a curiosidade e, quando muito, um sorriso de canto de boca, igualmente não se sente o peso que se propõe em Fredericco. A deslocada comparação com Hamlet, que pretende dar tom ao filme, só se dá com clareza na última cena, numa fraca articulação entre o concreto (a ocupação) e o abstrato (as conjecturas posteriores sobre a relação entre vida e arte) que não oferece material suficiente para se realizar. De fato, às vezes a vida imita a arte, assim como a arte imita a vida. Mas nem sempre.
Oito filmes fundamentais para relembrar a carreira deste grande nome da dramaturgia nacional, que faleceu aos 84 aos de idade
Textos por Abonico Smith e Marden Machado (Cinemarden)
Fotos: Divulgação
Foi anunciada no começo da noite de 11 de agosto de 2021, uma quarta-feira, a morte do ator, diretor e roteirista Paulo José, um dos mais importantes nomes da dramaturgia brasileira das últimas décadas. Com 84 anos de idade, o gaúcho estava internado havia 20 dias em um hospital do Rio de Janeiro e não resistiu a uma pneumonia.
Em 1993 ele foi diagnosticado com o Mal de Parkinson, doença degenerativa que afeta o sistema nervoso central e não possui cura. Mesmo com a gradativa debilitação da saúde, Paulo José seguiu trabalhando normalmente até quando pôde. Em 2014, inclusive, interpretou na novela Em Família, da Rede Globo, um personagem que também tinha Parkinson. Há três anos foi lançado o documentário Todos os Paulos do Mundo, que revê a sua carreira a partir dos filmes dos quais fora o protagonista.
Sua trajetória artística começou em meados dos anos 1950 em Porto Alegre. Na capital gaúcha, foi um dos criadores do Teatro de Equipe, ao lado de nomes como Paulo César Pereio, Lilian Lemmertz e Ítala Nandi. Como ator e diretor, participou de montagens de peças baseados em tetos de Maquiavel, Sartre, Molière, Brecht e Gianfrancesco Guarnieri. Também dirigiu e atuou na montagem carioca do clássico musical Arena Conta Zumbi. Na televisão, participou de muitas séries, minisséries e novelas de sucesso da Rede Globo. Eis alguns dos títulos que contaram com o nome de Paulo José no elenco: Véu de Noiva (1969); Assim na Terra Como No Céu (1970); O Primeiro Amor (1972); Shazan, Xerife & Cia (1972); Super Manoela (1974); Gabriela (1975); O Casarão (1976); O Tempo e o Vento (1985); Armação Ilimitada (1985); Roda de Fogo (1986); Tieta (1989); Vamp (1991); Engraçadinha, Seus Amores e Seus Pecados (1995); Por Amor (1997); A Muralha (2000); Senhora do Destino (2004); Um Só Coração (2004); JK (2006); Capitu (2008); Caminho das Índias (2009); Morde e Assopra (2011); e Em Família (2014).
Nas telas de cinema, a partir de 1966, traçou também um caminho de glórias, acumulando fascinantes interpretações como protagonista de diversas histórias e ainda arrebatando prêmios em vários festivais por sua atuação. Quando não aparecia no ofício de ator, abrilhantava algumas produções com sua voz guiando fortes e peculiares narrações. Abaixo, o Mondo Bacana destaca oito filmes fundamentais da carreira Paulo José Gómez de Sousa. (ARS)
Todas as Mulheres do Mundo (1966)
Ator, dramaturgo e diretor de teatro, cinema e televisão, o carioca Domingos de Oliveira se formou em Engenharia e nunca exerceu a profissão. O Brasil perdeu um engenheiro, mas, em seu lugar, ganhou um cronista de olhar apurado e sensível. Seu primeiro longa parte de uma experiência real de relacionamento. No caso, a do casamento do próprio Domingos, que também escreveu o roteiro, com sua ex-mulher e atriz maior do filme, Leila Diniz. Aqui, acompanhamos a personagem de Paulo, vivido pelo ator Paulo José. Ele passa os dias a paquerar belas mulheres na zona sul do Rio de Janeiro. Até conhecer a professora Maria Alice, papel de Leila Diniz. A narrativa se estrutura em flashbacks resultantes de uma conversa entre Paulo e seu melhor amigo, Edu (Flávio Migliaccio). Retrato preciso da vida carioca na segunda metade dos anos 1960, Todas as Mulheres do Mundo é, antes de tudo, uma comédia de costumes sem igual na cinematografia brasileira. Isso já torna obrigatória uma conferida no filme. No entanto, existe um motivo ainda mais importante para justificar essa obrigatoriedade: Leila Diniz. Atriz de carisma incontestável e espírito livre, ela morreu prematuramente em um acidente aéreo no ano de 1972. (MM)
Macunaíma (1969)
Primeiro veio o livro, Macunaíma – O Herói Sem Caráter, escrito por Mário Andrade, em 1928. Quatro décadas depois, o cineasta Joaquim Pedro de Andrade (nenhum parentesco com o escritor!) resolveu adaptar a obra e transformá-la em filme. Estávamos no auge do movimento do Cinema Novo e Andrade queria explorar um texto que fosse genuinamente brasileiro e que lidasse com nossa mitologia e nosso folclore. Encontrou tudo isso em Macunaíma. Seria ele realmente a encarnação de um autêntico herói brasileiro? Uma pessoa preguiçosa, safada e sem caráter algum. A personagem é interpretada por dois atores: Grande Otelo e Paulo José. Ele nasce negro no meio do mato e desde pequeno revela seus “talentos” para a vagabundagem. Quando vai embora e chega na cidade grande, de repente, fica branco. Mas os talentos continuam os mesmos. Macunaíma talvez seja o filme mais popular do Cinema Novo. Diferente dos outros trabalhos realizados no período, Andrade conseguiu dialogar com o público através da exagerada alegoria de sua personagem principal. Não por acaso, muitos estudiosos defendem existir diversos paralelos entre os movimentos do Modernismo e do Cinema Novo. Há aqui a preocupação de se fazer uma obra verdadeiramente nacional, sem ligação ou influência alguma do exterior. O culto que se criou em torno do filme é prova incontestável de que este objetivo foi alcançado. (MM)
O Rei da Noite (1975)
O argentino naturalizado brasileiro Hector Babenco já morava em São Paulo havia quase dez anos quando decidiu fazer um filme. Até aí, tudo bem. Afinal, ele já havia dirigido um documentário, O Fabuloso Fittipaldi, em 1973. Fora isso, sabia muito pouco sobre cinema. Apesar de iniciante, com a ajuda do amigo Orlando Senna, escreveu o roteiro e com ele em mãos, conseguiu reunir um elenco respeitável. Este filme, lançado em 1975, é O Rei da Noite. A história começa em 1920, quando o jovem Tezinho (Paulo José) tem de se afastar de seu grande amor por conta de um sério problema de saúde. Tempos depois, ele se envolve com três Marias: das Dores (Cristina Pereira), do Socorro (Isadora de Freitas) e das Graças (Vic Militello). Tezinho também é um homem que sempre teve tudo o que quis. Porém, tomou alguns caminhos não tão corretos. Isso o fez abraçar a noite. Foi quando conheceu Pupe (Marília Pêra), uma cantora de tango. Na verdade, tudo isso são lembranças de um homem de passado glorioso que no tempo presente da narrativa sobrevive como vendedor de loterias. O ritmo do filme é episódico e, às vezes, falha em sua estrutura narrativa. Babenco, realmente, ainda não dominava o ofício. No entanto, é visível a vontade dele em acertar e conseguir contar uma história. E como é bom ver um grande artista nascer. (MM)
Eles Não Usam Black-Tie (1981)
Escrita por Gianfracesco Guarnieri e encenada em 1958 com grande sucesso de bilheteria para a época, a peça teatral trazia reflexões sobre problemas universais do ser humano transportadas a uma história centrada no duro cotidiano do operariado brasileiro. A trama é centrada no jovem Tião, que se vê, rapidamente, entre greves, piquetes, assembleias da classe trabalhadora, a gravidez inesperada da namorada também operária, a violência desmedida da polícia e o descontentamento profundo provocado em seu pai líder sindical e ex-preso político. O alto teor social foi mantido na versão cinematográfica de 1981, dirigida por Leon Hirszman, levando o filme a receber prêmios em alguns festivais internacionais, inclusive o de Veneza. O autor do texto, Gianfrancesco Guarnieri encabeça um elenco de poder dramatúrgico supremo, que conta ainda com Fernanda Montenegro, Lélia Abramo, Carlos Alberto Riccelli, Milton Gonçalves, Bete Mendes, Nelson Xavier, Francisco Milani e Paulo José (no papel do padre). (ARS)
Faca de Dois Gumes (1989)
O cineasta carioca Murilo Salles começou sua carreira no final dos anos 1960, quando dirigiu seu primeiro curta. No início dos 1970, ele se consolidou como diretor de fotografia, até estrear na direção de um longa, em 1984, com Nunca Fomos Tão Felizes. Sua segunda obra, Faca de Dois Gumes, foi feita dois anos depois. Baseado no livro homônimo de Fernando Sabino, o roteiro foi escrito pelo próprio diretor, junto com Leopoldo Serran e Alcione Araújo. Neste drama policial, algo raro na cinematografia brasileira, acompanhamos a história de Jorge Bragança (Paulo José), um advogado famoso. Ele descobre que sua amada esposa o está traindo com seu sócio e melhor amigo e planeja, então, vingar-se dos dois e arma um plano perfeito. Porém, não há como se prever o imprevisível. Faca de Dois Gumes prova que existem boas tramas policiais faladas em português e Salles conduz sua narrativa com muito suspense e uma tensão constante. Destaque especial para o excepcional Paulo José, um ator sutil e inteligente que consegue transmitir todo o conflito interior de sua personagem. (MM)
Ilha das Flores (1989)
Inspirado pelos filmes de Alain Resnais e os livros de Kurt Vonnegut, o gaúcho Jorge Furtado lançou mão de muito humor ácido e linguagem quase científica para contar neste pseudodocumentário uma breve história que mostra como a economia gera relacionamentos desiguais entre os homens. Com a rapidez e a fragmentação da edição típica de um videoclipe, este curta-metragem relaciona conflitos não apenas econômicos, mas também sociais, ambientais e culturais para mostrar como os efeitos do capitalismo na sociedade podem ser díspares quando o poder provocado pelo dinheiro aparece como peso principal na busca pela liberdade tão sonhada pelas pessoas. Em seus treze minutos, o filme provoca ainda reflexões sobre individualidade, sonho, opressão, desperdício e exagero. Com a locução de Paulo José comandando a narrativa extremamente dinâmica, Ilha das Flores é um dos marcos do cinema brasileiro. Item sempre presente em todos os cursos acadêmicos de Comunicação e Cinema espalhados por todo o país, a obra de Furtado foi eleita em 2019 pela Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) o melhor curta brasileiro de todos os tempos. Quatro anos antes, a mesma entidade a listou entre os cem melhores títulos da história do cinema nacional. (ARS)
Benjamim (2003)
Muitos conhecem apenas a carreira musical de Chico Buarque e não sabem que ele também é autor de romances. Alguns deles foram adaptados para o cinema. Benjamim, publicado em 1995, virou filme em 2003 sob a direção de Monique Gardenberg, autora também do roteiro, junto com Jorge Furtado e Glênio Póvoas. Tudo gira em torno de Benjamim Zambraia, vivido pelos atores Paulo José (presente) e Danton Mello (passado). Ele viveu em meados dos anos 1960 um intenso romance com Castana Beatriz. Nos dias atuais, trabalhando como modelo fotográfico, conhece casualmente a corretora de imóveis Ariela Masé (Cléo Pires), que parece ser a reencarnação de seu grande amor. Talvez até seja a filha desaparecida dela. O Benjamim do filme, assim como o Benjamim do livro, parece viver preso a um tempo que não existe mais e enxerga o tempo que passou de uma maneira só sua. Gardenberg conduz sua narrativa às vezes errática, às vezes brilhante. Algumas escolhas de figurino, música e elenco não funcionam muito bem. O grande destaque fica mesmo para o sempre eficiente Paulo José e, principalmente, para a então estreante em longas Cléo Pires. Antes, ela havia feito apenas uma pequena participação na minissérie Memorial de Maria Moura, na qual interpretou a versão jovem de Glória Pires, sua mãe. (MM)
O Palhaço (2011)
Selton Mello é um dos mais talentosos e versáteis atores de sua geração. Começou a carreira ainda menino, junto com o irmão Danton, trabalhando em novelas. Quando adulto, se aproximou mais do cinema e na TV passou a ser cada vez mais criterioso na escolha dos papéis. Em 2008, escreveu e dirigiu seu primeiro longa, Feliz Natal, um intenso drama familiar. O Palhaço é seu segundo filme como diretor. O roteiro, que ele escreveu junto com Marcelo Vindicato, conta a história de Benjamin (interpretado por ele) e seu pai Valdemar (Paulo José). Os dois formam a dupla de palhaços Pangaré e Puro Sangue, do fabuloso Circo Esperança. A ação acontece no início dos anos 1970 e carrega um forte sentimento de nostalgia e melancolia. Benjamin é o responsável pela manutenção do circo, que antes era administrado por Valdemar. Ele enfrenta alguns problemas bem concretos: precisa comprar um ventilador e um sutiã novo para uma das artistas. Além disso, existe um problema maior ainda: ele acredita ter perdido a graça e decide começar uma vida normal, com identidade, CPF, comprovante de residência e emprego fixo. O Palhaço é um filme que vai te pegando aos poucos. Com personagens bem construídas, encontra na dupla Selton Mello/Paulo José uma química rara. Sem contar as hilárias, bem colocadas e surpreendentes participações especiais, com destaque para Moacyr Franco, que faz um delegado preocupado com o destino de seu gato Lincoln. Drama e humor se misturam aqui nas doses certas e fazem de O Palhaço um espetáculo delicado e especial que retrata uma cultura popular circense que vem se perdendo. Preste atenção no plano-seqüência (uma cena sem cortes) que fecha o filme. (MM)