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CODA – No Ritmo do Coração

Pequena joia cinematográfica conta como uma adolescente serve de elo de comunicação entre sua família surda e o mundo ao redor

Texto por Taís Zago

Foto: Amazon Prime Video/Divulgação 

Ruby Rossi (Emilia Jones) passou os seus 17 anos de vida em uma pequena cidade litorânea de Massachusetts com pouco mais de 30 mil habitantes chamada Gloucester. Como muitos outros adolescentes de sua idade, Ruby está no ultimo ano da high school, é uma aluna mediana e ainda não sabe direito o que fazer depois da formatura. Nunca pensou em se candidatar para nenhum college e nem possui muitos amigos, é uma underdog na sua escola. Além disso, ela pertence à uma família de pescadores e acorda todos os dias muito antes do sol nascer para sair de barco com o pai, Frank (Troy Kotsur), e seu irmão, Leo (Daniel Durant), para pescar em alto mar. Logo na primeira cena de CODA – No Ritmo do Coração (CODA, EUA/França/Canadá, 2021 – Amazon Prime) vemos Ruby separando peixes e cantarolando alegre “Something’s Got A Hold On Me”, de Etta James. Cantar é o que ela mais ama fazer quando não passa tempo com sua família, da qual também faz parte a sua mãe, Jackie (Marlee Matlin).

O titulo original do filme é um acrônimo para child of deaf adult(s), expressão que significa filho(a) de adulto(s) com surdez. E Ruby é uma dessas crianças, tanto seus pais Frank e Jackie como seu irmão mais velho Leo são surdos. A família se comunica com linguagens de sinais e, não raramente, dependem dela, que não possui problemas em sua audição, para a comunicação com o mundo ao redor. Desde pequena Ruby acumula, portanto, um grande leque de responsabilidades em relação a seus pais e irmão. 

O roteiro da também diretora Sian Heder é uma adaptação de La Famille Bélier (2014), onde a família em questão vive na zona rural e a menina também tem o dom musical. O diferencial aqui é o elenco. Enquanto no filme francês original os papéis dos personagens surdos são interpretados por atores que escutam (e que tiveram de estudar muito para aprender a comunicação), no americano, Sian optou por contratar atores que realmente possuem a deficiência auditiva, sendo a mais conhecida Marlee Matlin, que além de ter ganho o Oscar e o Globo de Ouro pelo filme Children of a Lesser God (1986), é uma ativista norte-americana pelos direitos dos surdos pela National Association of the Deaf. Essa se mostrou uma das melhores decisões dramáticas para o resultado final. O pai de Ruby, Frank, é esplendidamente interpretado por Troy Kotsur. Frank é livre e engraçado e o amor dele pela filha é comovente. Emilia Jones também está encantadora como Ruby, tanto por sua voz potente como pela ternura e a naturalidade de sua expressão corporal.

Em uma decisão quase inédita para norte-americanos – pois apenas The Sound Of Metal (2020) havia usado esse recurso – a Apple, produtora, decidiu lançar o filme com legendas fixas também para os diálogos fora da interpretação de sinais. Até então, nos cinemas, as pessoas surdas precisavam assistir a sessões com legendas ou usar óculos especiais para enxergá-las.

No Ritmo do Coração é um daqueles longas onde risos e lágrimas rolam quase ao mesmo tempo. Para alguns, inclusive, essa mistura adentrou o kitsch. A personagem Ruby carrega o mundo em suas costas desde os primeiros dez minutos de filme e essa insinuação, mesmo que não intencional, alimenta clichês sobre a dependência de pessoas com necessidades especiais de outras consideradas “totalmente funcionais” pela sociedade. Heder poderia ter sido mais sutil e indireta com algumas cenas que vão muito além do necessário para provar seu argumento. Mas pelo bem do drama já constatamos que diretores americanos não raramente optam por expor que os sentimentos e atitudes de forma enfática e exacerbada. E, claro, sempre vai ter aquela cena do tudo ou nada, onde todos protagonistas precisam se mobilizar e correr contra o tempo para aproveitar a última chance de realizar seus sonhos. 

Porém nada disso tira o brilho dessa pequena joia cinematográfica, que surpreendeu a todos no Sundance Festival de 2021 ao ser o primeiro filme concorrente a abocanhar ao mesmo tempo os prêmios de júri, publico, direção e o especial de melhor elenco. Em 2022, Troy Kotsur venceu o SAG Awards de melhor ator e os atores venceram na categoria Elenco. A lista de troféus é longa, mas a jornada de premiações de No Ritmo do Coração ainda parece longe de chegar ao fim. Além de indicações ao BAFTA britânico e ao Globo de Ouro, também concorre três vezes ao Oscar 2022 – ator coadjuvante, roteiro e filme. Temos aqui um daqueles filmes revelação daqueles de ter um cartaz cheio de medalhinhas e troféus. Do tipo que nos seduz enquanto zapeamos entre centenas de imagens buscando entretenimento de qualidade. Eu, pessoalmente, acho que os louros são muito merecidos.

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A Odisseia dos Tontos

Novo filme argentino com Ricardo Darín no elenco retrata os reflexos sofridos do povo quando planos econômicos impactam a nossa vida

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Texto por Janaina Monteiro

Foto: Warner/Divulgação

Um plano econômico quando é adotado num país não só confisca o dinheiro da poupança, “come” os zeros e altera o nome da moeda ou limita a quantia que você deve sacar do banco. Termina, sim, por confiscar os dias, devorar a saúde do povo, principalmente a dos idosos, mudar o sentido de justiça e limitar nossas forças diante da vida. Quantos traumas e suicídios a ministra Zélia Cardoso de Melo não endossou ao anunciar, há quase três décadas, o fatídico Plano Collor, do presidente caçador de marajás? Quantos aposentados não infartaram em 2001, quando foi instalado o “corralito”, o confisco dos depósitos bancários, fantasma que ainda persegue o povo argentino?

Pois este é o tema do mais recente filme estrelado pelo ator Ricardo Darín, que pela primeira vez atua ao lado do filho Chino Darín. O roteiro de A Odisseia dos Tontos (La Odisea de los Giles, Argentina/Espanha, 2019 – Warner), que estreou nesta quinta-feira no Brasil, é baseado no romance do escritor Eduardo Sacheri e feito em coautoria com o diretor Sebastián Borensztein, do fantástico Um Conto Chinês. Em vez de abordar o assunto de forma pesada, o tom da narrativa procura atenuar os reflexos sofridos pelo povo portenho com um bom humor inteligente presente em diálogos dinâmicos, repletos de ironia e palavrões colocados na medida.

Trata-se de uma comédia dramática leve, ao estilo sessão da tarde, porém sem deixar as críticas políticas de lado, como muitas citações ao peronismo e o anarquismo do russo Mikhail Bakunin. O filme usa aquela máxima de que o povo é sempre tratado como idiota, enganado pelo sistema. Como o próprio nome diz, a odisseia é a saga de moradores da província de Alsina (os “tontos”) que viram o desejo de montar uma cooperativa ir para os ares depois da crise, assim como a vida de pessoas queridas que também se esvaíram após o golpe. Mas o que desperta a grande revolta por parte dos locais é o fato de terem sido enganados pelo advogado Manzi (Andrés Parra), amigo do gerente do banco, que conseguiu informações privilegiadas e trocou, a tempo, os pesos argentinos por dólares.

Darín interpreta Fermin Perlassi, um ex-jogador de futebol que se transforma em Robin Hood e convoca os amigos fiéis a bolar um plano para recuperar o dinheiro do advogado malandro. Como todo bom argentino, faz da solidariedade o antídoto para combater a injustiça (e não a vingança, como no papel do mesmo Darín em Relatos Selvagens).

O filme traz ainda ótimas atuações de atores veteranos. Luís Brandoni, que faz um anarquista dono de uma oficina mecânica, chega a brilhar mais que próprio protagonista. Além de Rita Cortese, que aparece tímida no papel de uma empresária local.

Vale lembrar que o livro que deu origem a este longa-metragem foi escrito pelo mesmo autor da obra que originou O Segredo de Seus Olhos, que conquistou o Oscar de melhor produção em língua não inglesa em 2010. Depois disso, o trabalho de Darín alcançou outro patamar e ultrapassou as fronteiras do então país comandando por Cristina Kirchner, que volta à cena agora política como vice-presidente. Pois Darín, a prata da casa e sinônimo de cinema argentino, acertou na decisão de não se juntar aos americanos, recusando papeis secundários oferecidos por Hollywood. E, ainda, para alegria de seus fãs, inspirou o filho a trilhar a mesma profissão. Com apenas 30 anos de idade e oito de carreira, Chino já acumula um currículo extenso, tendo estrelado um punhado de excelentes filmes, entre eles As Leis da Termodinâmica (disponível na Netflix).

A Odisseia dos Tontos fica aquém de outras comédias estreladas pelo mais famoso ator do cinema argentino. No entanto, mesmo sendo um filme sem grandes pretensões, vale a pena ver o dono dos olhos azuis e cabeleira cada vez mais grisalha atuando nas telonas. A família Darín é sempre um bom convite para ir ao cinema e rir da tragédia. Pelo menos enquanto o fantasma retratado no filme está adormecido…