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Oppenheimer

Cinebiografia do “pai da bomba atômica” traz três horas de grandiloquência e desafios autorais com a assinatura de Christopher Nolan

Texto por Abonico Smith

Foto: Universal Pictures/Divulgação

A biografia de Julius Robert Oppenheimer é uma das mais interessantes do último século. Nova-iorquino descendente de uma abastada família de origem germânica e judia, cresceu com os estudos bancados em uma conceituada escola particular chamada Ethical Cultural Society, algo bastante incomum para uma criança naquele início dos 1900. Logo manifestou interesse por áreas diversas, chegando a se formar em Matemática, Ciências e Literaturas Grega e Francesa. 

Apreciador também das artes, seu  negócio mesmo era estudar. Com afinco e muita dedicação. Terminou em 1925 a faculdade de Química em Harvard e logo se mudou para o Reino Unido. Como seu negócio não era ficar manuseando os equipamentos de um laboratório, partiu, na sequência, para fazer doutorado em Física na Alemanha. Pelo menos ali, o ambiente era de sua preferência: estar em contato com físicos renomados e mergulhar de cabeça nas mais trabalhadas e complicadas questões teóricas da área. Enquanto investigava processos em partículas subatômicas, já como professor de física repatriado aos Estados  Unidos, começou a se envolver em assuntos políticos que o preocupavam: a ascensão do fascismo na Europa, em especial o nazismo na terra natal de seu pai. Passou, inclusive, a financiar organizações contra a extrema-direita após herdar a fortuna da família e flertou brevemente com o partido comunista, o qual abandonou também após se decepcionar com o desdém da ditadura stalinista em relação à ciência. Até que, advertido por Albert Einstein e Leo Szilard sobre a ameaça de Hitler ter em mãos o pioneirismo de ter uma bomba atômica, passou a pesquisar como ter o urânio 235 a partir do mineral natural e foi contratado pelo governo norte-americano, em 1942, para chefiar o Projeto Manhattan e comandar uma equipe de cientistas para obter, em um megalaboratório secreto, a energia nuclear a fim de ser incluída em operações militares. Era contra o uso de toda e qualquer arma química como instrumento de guerra, inclusive chamava a indústria armamentista de trabalho demoníaco. Após o sucesso do grande teste realizado em 1945 no deserto de Los Alamos, no Novo México, demitiu-se da direção do projeto. Semanas depois, viu o mundo se aterrorizar com os dois cogumelos que dizimaram as regiões das cidades de Hiroshima e Nagasaki, escolhidas para serem o alvo de uma nação japonesa que ainda não havia se rendido na Segunda Guerra Mundial. Oppie – como era carinhosamente chamado – não só entrou para a História (contra a sua vontade e interesse) como “o pai da bomba atômica” como ainda caiu em desgraça em seu país, através de mentiras e manipulações políticas movidas pelo conservadorismo maccarthista que o levaram a julgamentos e destruíram sua reputação pública e a trajetória profissional.

Uma figura tão controversa e famosa só poderia ter sua biopic com a assinatura de outro nome do cinema com credenciais iguais: o diretor, roteirista e produtor Christopher Nolan. Eis que Oppenheimer (Reino Unido/EUA, 2023 – Universal Pictures) chega às telas com toda a grandiloquência possível. Primeiro, é uma biografia de três horas de duração, feita com tecnologia para ser exibida em telas IMAX (inclusive com a primazia de exibir, estilosamente, várias cenas em preto e branco). Depois, a data escolhida para o lançamento: em pleno verão lá de cima, período reservado para as estreias de blockbusters populares (como,por exemplo, Barbie, com quem luta pelas bilheterias neste fim de semana de estreia). Tem também o elenco recheadíssimo de estrelas: Cillian Murphy (o protagonista, em magistral atuação), Emily Blunt (a esposa), Florence Pugh (a amante), Robert Downey Jr (o antagonista), Kenneth Branagh, Matt Damon, Gary Oldman, Josh Hartnett, Matthew Modine, Benny Safdie, Rami Malek, Casey Affleck, Olivia Thrilby, Jason Clarke, James D’Arcy e outros mais em pontas ou papéis secundários.

Claro que a cinematografia de Hoyte van Hoytema (parceiro de Nolan em vários outros filmes) é um luxo só. Não só em toda a sequência que culmina no momento de maior dramaticidade, o teste bem sucedido da megaexplosão em Los Alamos. Os muitos closes em Oppie e mais a fusão entre os delírios, os pensamentos e a realidade vivida por ele também reforçam a tensão que sempre o rondou por vários anos (o antes e o depois da “fama”). O desenho de som também impressiona – e ainda prega uma grande peça na hora H da tal explosão. Outro bom trunfo do longa é todo o  vai-vem da narrativa criada pelo próprio Nolan, que adianta e antecede no tempo o tempo todo, desorientando o espectador quanto a causas e consequências durante a trajetória do cientista.

Aliás, as três horas de duração também se tornam um grande truque imposto pelo cineasta ardiloso para o público. Uma sucessão de personagens aparecem e desaparecem da tela, muitos dados e conceitos teóricos (que vão de física e química a política e ética) embaralham a mente. Torna-se um grande desafio ficar imerso na poltrona do cinema por todo este tempo, ainda mais se a pessoa não tem muito conhecimento prévio da Segunda Guerra Mundial ou mesmo paciência para uma trama mais reflexiva e sem muitos efeitos visuais criados por CGI (o que é bem comum nos blockbusters apresentados em Imax e algo ausente em uma obra do diretor). Não será comum ver gente saindo do cinema reclamando que muito deste tempo poderia um pouco reduzido. Por isso mesmo, Barbie larga com amplo favoritismo na somatória das bilheterias do mundo todo.

Desta forma, Nolan continua sendo Nolan com toda pompa possível. Oferece mais um filme difícil, perfeccionista e impactante. E mais: ao recontar a história de Oppenheimer, brinca de mergulhar no passado para mexer com as entrelinhas do presente. Não será muito difícil fazer conexões mentais com fatos e pessoas do nosso tempo recente. 

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Não se Preocupe, Querida

Thriller psicológico com Florence Pugh e Harry Styles e sobre o american way life nos anos 1950 naufraga com roteiro raso e final insatisfatório

Texto por Carolina Genez

Foto: Warner/Divulgação

Tudo se passa nos anos 1950, quando acompanhamos  Alice Chambers (Florence Pugh), uma dona de casa que vive em uma comunidade experimental cercada por um deserto. Enquanto os homens da vizinhança saem para trabalhar no misterioso Projeto Vitória, também responsável pela região, as mulheres conversam, limpam a casa e cozinham vivendo uma vida previsível. Os dias passam até que Alice passa a se questionar sobre o local onde mora e com o que o marido Jack (Harry Styles) trabalha.

A história de Não se Preocupe, Querida (Don’t Worry Darling, EUA, 2022 – Warner) começa interessante, mostrando como é a vida de Alice. Imersa em um verdadeiro American Way of Life, faz café e se despede de Jack, arruma a casa, depois vai até a cidade fazer uma aula de balé e, por fim, volta para preparar o jantar e receber o marido. Apesar de pacata, essa vidinha a faz feliz: o marido a trata bem, ela tem amigas com quem conversa e fofoca constantemente, mora numa bonita e organizada residência enquanto Jack está na concorrência para uma nova promoção em seu trabalho. 

As coisas, porém, começam a desandar quando uma antiga amiga de Alice, Margaret (KIKI Layne) vai ao deserto, onde os moradores são constantemente alertados a não entrar. Lá ela também tece questionamento sobre a comunidade experimental e principalmente sobre o chefe do marido, Frank (Chris Pine). A partir dos alertas de Margaret, Alice observa mais aquela comunidade e vai percebendo que as coisas não são o que parecem.

A parte de terror da trama é muito bem executada, deixando o espectador sentir todo o nervosismo passado por Alice, já que ela não só indaga a comunidade como também passa a ser taxada como lunática pelos moradores. As cenas de tensão são muito bem dirigidas e planejadas de fato sufocando os espectadores. Parte disso acontece muito por conta da trilha sonora, que além de contar com músicas da época faz com que os sons incidentais transmitam aquela sensação estranha quando colocados no contexto certo. Aqui ainda há a composição de John Powell, que remete a sons de respiração justamente ajudando a aumentar o sufoco vivido por Alice.

O filme tinha muito potencial. Sua ambientação é maravilhosa e imersiva, de fato jogando os espectadores para 1950 com os figurinos e penteados da época e também mostrando um subúrbio colorido e alegre, similar a um conto de fadas, ao estilo das propagandas de revista do american way of life. Parte disso acontece graças à maravilhosa fotografia de Matthew Libatique ,que se aproveita das paisagens para criar bonitos planos e ainda dos aspectos coloridos dos cenários. Tudo isso para a sensação de vida perfeita.

Porém, Não se Preocupe, Querida não consegue atingir seu propósito como um todo. O roteiro é um dos grandes vilões, entregando uma narrativa que acaba decepcionado com resoluções nada satisfatórias e explorando o mínimo boa parte dos personagens. Apesar do público conseguir se conectar com Alice, até por seguir e ir descobrindo a trama junto com ela, todos os outros são muito mal aproveitados, já que não são exploradas as motivações deles, soando caricatos e desinteressantes. 

Em relação às atuações, o elenco pode não impressionar mas ainda assim consegue convencer o público com performances medianas. Uma das grandes perdas é o não aproveitamento de Chris Pine: seu personagem parece ser interessante, mas acaba sendo mal utilizado, servindo apenas para sorrisos falsos e ameaças passivo agressivas. Gemma Chan também não agrega muito. Já Harry Styles, um dos grandes chamativos de público do filme, é ok. 

A maravilha fica por conta de Florence Pugh, que vem de uma sequência de impecáveis performances com Midsommar e Adoráveis Mulheres. Em Não se Preocupe, Querida não é diferente. Novamente mostrando ser uma das grandes promessas de Hollywood, a atriz entrega uma humana e muito realista com sua dona de casa que passa por diversas sensações de horror e pânico e que vai ganhando confiança conforme o filme se desenvolve. Na pele de Alice, consegue passar com perfeição toda sua angústia e agonia, de maneira que se torna extremamente fácil do lado de cá da tela torcer por ela. Pugh tem presença marcante e puxa a atenção em qualquer cena que participe. Comunica-se com o espectador apenas com olhares e expressões corporais. Talvez sua performance a leve a algumas indicações ou prêmios da temporada.

O roteiro se prolonga em aspectos desnecessários, complicando mais ainda a narrativa. Pior é quando chega a autossabotagem lá pelo meio, quando uma reviravolta fraca e previsível não condiz com os primeiros 40 minutos. Até há a tentativa de trazer críticas sobre o machismo e a própria vida que as mulheres do filme vivem, porém estas são colocadas de forma rasa e acabam se perdendo no meio das muitas informações presentes. Aí tudo chega ao final de forma aberta, anticlimática.

Dirigido por Olivia Wilde, esse foi um dos títulos mais aguardados e também polêmicos de 2022 (por conta de diversas tretas e brigas nos bastidores). As expectativas estavam altas pela promessa de thriller psicológico com um mistério conduzido pelo estranhamento. Entretanto, apesar de ambicioso e de parecer original à primeira vista, não consegue suprir as expectativas conquistadas em seu desenrolar. Talvez por isso mesmo venha agora, com sua chegada às telas, uma enorme desilusão. 

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Viúva Negra

Depois de alguns adiamentos por conta da pandemia, a heroína vingadora ganha seu primeiro filme solo tanto nos cinemas quanto no streaming

Textos por Andrizy Bento e Leonardo Andreiko

Fotos: Marvel/Disney/Divulgação

Previsto para estrear originalmente em abril de 2020, Viúva Negra (Black Widow, EUA, 2020 – Marvel/Disney) sofreu adiamentos devido à pandemia de covid-19, que obrigou as salas de cinema e vários outros estabelecimentos a fecharem as portas temporariamente a fim de evitar aglomerações e, portanto, preservar a saúde e segurança da população. A ansiedade resultante dos constantes reagendamentos da estreia fez com que as expectativas dos fãs com relação ao longa se tornassem cada vez mais altas, já que eles mal podiam esperar para conferir uma das integrantes originais dos Vingadores ganhar o tão merecido protagonismo. Todas essas situações de adiamento e espera poderiam ser fatores prejudiciais para seu desempenho nas telas (o filme poderia não corresponder às expectativas projetadas pelos fãs), mas ainda havia outro complicador: o timing de lançamento dentro da cronologia do MCU, independente de pandemia, parecia inadequado após o desfecho trágico de Natasha Romanoff em Vingadores: Ultimato.

Entretanto, esse ainda se tratava de um aspecto contornável – bastava que os produtores e roteiristas tivessem acertado na tônica e abordagem assumidas pela produção. Viúva Negra seria um tributo à heroína abatida, com um provável sabor agridoce de encerramento do arco da vingadora? Ou exploraria sua origem e legado, de modo a dar continuidade com outra personagem assumindo seu posto, considerando que Natasha foi uma das várias meninas treinadas na Sala Vermelha no Programa Operação Viúva Negra? As perguntas são devidamente respondidas no filme que segue, sabiamente, pelos dois caminhos.

Como ainda estamos atravessando um momento pandêmico, a solução para Viúva Negra enfim ganhar as telas, foi lançá-lo simultaneamente nos cinemas e na plataforma Disney+; claro que no streaming ele ainda não está disponível para todo e qualquer assinante, podendo ser conferido por um valor adicional. Dessa forma, aqueles que não podem ir ao cinema e não se rendem aos meios ilegais, têm de desembolsar alguns reais a mais para ter o acesso premium. É o modo que a casa do Mickey encontrou de não sair no prejuízo.

Para quem já conhece um pouco do background da personagem, o filme protagonizado por ela é facilmente entendível e não necessita de muitas exposições, escapando do caráter didático de grande parte das produções solo de origem. Para quem não se lembra do momento em que ela revela brevemente seu passado em Vingadores: Era de Ultron, basta ter em mente que Natasha foi treinada na Sala Vermelha (programa desenvolvido por uma organização da União Soviética), juntamente com outras jovens órfãs para o combate e espionagem. Lá também foi biológica e psicotecnologicamente aprimorada. Bem como as demais garotas, ainda teve de passar por um procedimento invasivo de histerectomia, de modo a evitar distrações e “obstáculos” em seu trabalho como espiã.

Tornando-se o “projeto” mais bem-sucedido desenvolvido pelo Programa Operação Viúva Negra, ela passou a figurar como uma ameaça à segurança global e entrou no radar da S.H.I.E.L.D. Para matá-la, Nick Fury enviou o agente Clint Barton, conhecido pela alcunha de Gavião Arqueiro, mas reconhecendo seu potencial, habilidades e destreza, Clint recuou em sua missão e aconselhou Fury a integrá-la à SHIELD. Trabalhando juntos, Natasha e Barton desenvolveram um vínculo poderoso de cumplicidade e uma ótima dinâmica de equipe, o que os levou a uma missão em Budapeste, citada primeiramente no longa original dos Os Vingadores (2012) e finalmente explicada no filme solo da Viúva Negra. Aliás, no primeiro longa da equipe, pudemos testemunhar a trajetória de Natasha de agente da SHIELD à vingadora.

Nem vou entrar no mérito de que uma personagem tão fascinante e que, para completar, foi intensamente ativa e onipresente em filmes pregressos do MCU, merecia um longa individual muito antes. Pois teria de considerar as perspectivas mercadológicas de bem poucos anos atrás, quando executivos de estúdios eram terminantes em afirmar – sem nem ao menos fazer alguma tentativa – que filmes solo de heroínas (ainda mais uma relativamente desconhecida do público que não consome HQs) não seriam capazes de render altas cifras como as produções protagonizadas por personagens do gênero masculino e já familiares ao público, a exemplo de Homem de Ferro, Thor e Capitão América. Antes tarde do que nunca, pelo menos.

Viúva Negra agrada e empolga quem curte a fórmula da Marvel Studios e surpreende quem assiste de maneira descompromissada. O longa protagonizado por Scarlett Johansson consegue ir um pouco além de apenas um bom entretenimento de fim de semana, com uma trama sólida, ritmo fluido, resultando em uma eficiente tradução da heroína dos quadrinhos para as telas.

A narrativa começa em 1995, quando Natasha e sua “irmã” Yelena têm suas infâncias interrompidas, ingressando forçosamente em uma iniciação cruel que visa transformá-las em assassinas perfeitas. O prólogo se concentra na falsa família infiltrada em Ohio, composta pela jovem Natasha Romanoff, a irmã caçula Yelena Belova, o pai Alexei Shostakov (conhecido como o Guardião Vermelho) e a ex-viúva negra Melina Vostokoff, que assume o papel de mãe das garotas. Esses minutos iniciais já deixam aparente que Natasha tem conhecimento de que aquele núcleo familiar no qual está inserida é fake. Mas Yelena, de apenas seis anos, não faz a menor ideia. Posteriormente, durante os créditos iniciais, temos lampejos do treinamento e da rotina brutal aos quais Natasha, Yelena e outras órfãs são submetidas, destacando que a missão das jovens mais aptas é converterem-se em espiãs e assassinas, enquanto as demais são friamente executadas. O começo sombrio é embalado por um cover inusitado de “Smells Like Teen Spirit”, clássico do Nirvana, interpretado por Malia J em uma toada bastante melancólica que corresponde perfeitamente às imagens mostradas na tela.

Vinte e um anos depois, vemos Natasha escapando dos homens do General Ross, que a acusa de violar o Tratado de Sokovia e ferir o rei de Wakanda. A vingadora é bem-sucedida em sua fuga e retira-se para um lugar isolado a fim de permanecer reclusa por um tempo. No entanto, seus planos não saem exatamente como ela desejava e seu caminho se cruza novamente com o de Yelena e de seus pais adotivos, aos quais ela deve se unir a fim de executar uma nova missão: ir atrás de uma figura aterrorizante de seu passado do qual ela acreditava já ter se livrado há anos. Ninguém menos do que Dreykov, o chefe da Sala Vermelha que, para surpresa de Nat, continua ativa. O filme narra o que houve com Natasha durante esse período em que permaneceu afastada dos Vingadores e foi para Budapeste confrontar seus fantasmas – situando-se entre os eventos de Capitão América: Guerra Civil e Vingadores: Guerra Infinita. Sem muitos spoilers: a localização da Sala Vermelha é um achado e todo o plano para derrotar o responsável pelo programa é bem orquestrado na tela.

A produção é recheada de sequências de explosões, tiros, perseguições por terra e ar e muita pancadaria para deleite dos fãs do gênero. As cenas de ação são bem conduzidas e, apesar de toda a pirotecnia e situações surreais e inverossímeis, não apenas funcionam como conseguem soar bastante plausíveis dado o acuro da direção de fotografia, do desenho de produção e do preciso emprego dos efeitos especiais. Se há algum demérito no departamento visual, está no fato de a Marvel Studios insistir em apresentar cenas de luta com demasiados cortes, o que tira um pouco da “magia” desse tipo de sequência. O espectador tem a ciência de que os embates corporais ilustrados na tela tratam-se de pura coreografia e são resultantes de um árduo trabalho de montagem, não transmitindo a sensação de legitimidade esperada. Todavia, o clímax ágil e eletrizante mais do que compensam essa deficiência.

Além de contar com bons acréscimos ao elenco, cuja presença que mais se destaca é a de Florence Pugh que interpreta Yelena, além de nomes como Rachel Weisz e David Harbour, a inserção do personagem Taskmaster (traduzido como Treinador nas HQs em português), agrada aos fãs de quadrinhos, ainda que apareça no longa com identidade e background bem distintos das de sua contraparte na mídia original. E, obviamente, há numerosas referências aos Vingadores.

Embora seja um espetáculo visual e sonoro, o que realmente se sobressai em Viúva Negra é o fato de o filme humanizar a protagonista. O roteiro explora muito mais do que seu lado vingadora, propondo um mergulho em sua psique e deixando bem aparente os esforços descomunais que ela faz em ordem de manter seu emocional estável, ainda que este esteja comprometido. Contudo, não deixa de manter alguns de seus sentimentos nebulosos, considerando que o mistério é parte essencial do charme da personagem. Ao introduzir o plot da família de Natasha, mesmo que esta se trate de uma família fake, temos acesso à intimidade da heroína de um modo que ainda não havíamos tido a oportunidade em longas que o precederam na cronologia do MCU. E, felizmente, é um plot que não soa artificial.

De forma bastante sutil, pontual e orgânica, a produção ainda lança luz sobre questões pertinentes e atuais, como o papel da mulher na sociedade, o insistente controle sobre nossos corpos, comportamentos e os questionamentos diante de nossas condutas, o quão valiosa é nossa autonomia e poder de escolha, bem como a representação das super-heroínas na cultura pop. O longa até se permite um momento de autossátira, como quando Yelena zomba da pose de Natasha para lutar – o modo característico de jogar o cabelo para trás em câmera lenta, que se trata de pura estética, mas tornou-se algo emblemático da personagem, visto pela primeira vez no hoje longínquo Homem de Ferro 2, lançado em 2010. O melhor? Aborda pautas fundamentais com relação ao espaço e representação da mulher, mas passando bem longe do discurso panfletário.

O resultado é um bom thriller de espionagem e ação, que coloca em evidência temas de hoje e bem relevantes, e retrata na tela tanto o que faz de Natasha Romanoff uma lutadora poderosa e perspicaz, quanto uma pessoa sensível e, por vezes, vulnerável. Dirigido, roteirizado e protagonizado por mulheres, o longa de Cate Shortland, escrito por Jac Schaeffer é um filme feito especialmente para os fãs da heroína, mas não se reduzindo a uma “carta de amor” destinada a eles.

Há um anacronismo na origem da espiã – aspectos de sua história que conflitam com o que já foi apresentado sobre ela em filmes predecessores da estrutura MCU – para o qual é difícil fazer vista grossa. E o longa também tem aquele jeito de “meio do caminho” como a maioria esmagadora das produções da Marvel Studios – a aventura isolada que não faz tanta diferença no todo. Assim são também os outros filmes solo dos heróis da Marvel, como os do Thor, Homem-Aranha e mesmo os longas protagonizados pelo Homem de Ferro. No entanto, Viúva Negra tem um enredo muito mais consistente do que os filmes do Homem-Formiga ou da Capitã Marvel, para citar alguns exemplos. De qualquer forma, apesar das falhas, o conjunto da obra é bastante agradável.

Para completar, a trilha sonora é outro de seus atrativos. Inclui, além da citada cover do Nirvana, a versão original de “American Pie”, de Don McLean, que garante alguns momentos de leveza em meio ao caos que se desenrola ao redor de Natasha e sua família.

Lançado tardiamente, Viúva Negra não só cumpre o esperado, como supera expectativas e não desaponta os fãs. É o filme ideal para inaugurar a Fase 4 do MCU nas telonas. (AB)

***

Um Universo Cinematográfico, em especial de proporções tão grandiosas quanto o da Marvel, impõe uma série de limitações a seus filmes e em especial às aventuras solo, em virtude de seus épicos crossover e de uma narrativa geral que se estende por anos. Nesse caso, as constrições narrativas são muitas: a protagonista cuja morte já está anunciada; a necessidade de uma trama simples o suficiente para passar despercebida no tempo em que se insere (entre Guerra Civil e Guerra do Infinito), mas espalhafatosa o bastante para caber na fórmula Marvel; a introdução de uma nova protagonista, sua história e o anúncio de sua próxima participação. Justamente por isso, esse não é tanto um filme da Viúva Negra, Natasha (Scarlett Johansson), como é de Yelena (Florence Pugh).

Assim, Viúva Negra (Black WIdow, EUA, 2020 – Marvel/Disney) retrata o reencontro das irmãs para enfrentar o abusivo vilão que as transformou em Viúvas, Dreykov (Ray Winstone), superagentes com as mesmas aptidões da heroína. Para isso, precisam recuperar contato com sua família “adotiva”, com quem estiveram por alguns anos como disfarce para uma missão de Melina (Rachel Weisz) e o Guardião Vermelho (David Harbour).

Conduzido como qualquer blockbuster da Marvel, o enredo é fraco e serve somente como cola gasta entre cenas de ação “engajantes”, cuja lógica interna comete inúmeras adaptações convenientes às protagonistas (a já conhecida armadura de enredo ou plot armor). Se havia alguma tentativa de estudo emocional ou psíquico de Natasha, ela não sobrevive ao ritmo constantemente quebrado por piadocas e alívios cômicos fora de hora.

A princípio, o que descrevo pode ser a análise de muitos longas multimilionários de super-heróis e heroínas dos últimos anos. Tal sensação não se distancia de um diagnóstico já esperado: de fato, este é somente um entre tantos lançamentos desprovidos de um discurso profundo. Costuma-se admitir um bom filme do gênero quando há um conflito interessante. Por exemplo, Thanos é um bom vilão porque somos capazes de entender suas motivações.

No entanto, Dreykov, além de não interagir com a trama até seu clímax, é plástico e unidimensional, providenciando ao longa um pretenso embate moral confuso e politicamente complicado. Líder estratégico da União Soviética, ele se refugia numa base espacial após um atentado de Natasha que supostamente o mata. Embora ecoe o estereótipo de crueza moral do regime socialista aos olhos do Ocidente, acompanhado da estética soviética mesmo que tenha se refugiado nos ares após o fim do regime, o patético plano de dominação mundial do antagonista o concede “o poder de manipular o preço de petróleo, água e afins” – um controle absoluto do capital, portanto, mas nunca utilizado ou sequer percebido pelas agências de inteligência do Universo Marvel. Confuso, não?

Ao mirar no repetitivo artifício de entregar riscos astronômicos ao conflito vigente buscando conferir-lhe legitimidade ao público, ou seja, buscando a empatia e atenção dos espectadores, Viúva Negra comete o mesmo erro que diversos filmes de seu gênero, e alcança seu mesmo resultado: o desinteresse. Parece-nos então que, ciente da fraqueza do roteiro que lhe é entregue, a diretora Cate Shortland foca sua atenção – além das longas e repetitivas batalhas e fugas – na interpretação de seu quarteto estelar. Contudo, não há bons personagens sem um bom roteiro. Os diálogos travados e as já comuns interrupções para alívio cômico resultam em quase-personagens dramáticos, com pouquíssimo impacto e traços caricatos, como o sotaque russo forçado das três novas adições ao UCM.

Sendo assim, a personagem mais surpreendente é Alexei, o Guardião Vermelho, a quem é dada a menor expectativa narrativa e o papel mais simples: atenuar o tom pretensamente dramático com uma personalidade deslumbrada e atrapalhada. David Harbour está extremamente confortável no papel, assim como todas as atrizes com quem contracena. É de se supor que, caso o elenco não tivesse nomes de tamanha força, as dobradinhas entre Natasha e Yelena, além de toda a dinâmica familiar frustrada, não teriam sido ruins, mas desprezíveis.

Viúva Negra é um filme esquecível que se propõe à difícil tarefa de construir camadas a um personagem falecido e, claro, introduzir uma nova (anti?)heroína ao panteão da Marvel. Sofrendo todos os sintomas do corporativismo exagerado da Disney, não oferece uma história convincente ou qualquer discurso que não se resuma a maniqueísmo barato embrulhado em ação antilógica e explosões aleatórias. (LA)

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Midsommar: O Mal Não Espera a Noite

Diretor de Hereditário traz inovação para o gênero do horror ao apostar em rituais, traumas e uma trama clara e impactante como o sol da meia-noite

midsommar2019mb

Texto por Ana Clara Braga

Foto: Paris Filmes/Divulgação

O desconhecido e o diferente podem ser aterrorizantes sem muito esforço. Juntando esses fatores a um relacionamento arruinado e férias frustradas o aumento da adrenalina parece justo. Midsommar: O Mal Não Espera a Noite (Midsommar, EUA, 2019 – Paris Filmes), o novo filme do jovem diretor Ari Aster é um conto de horror em que o medo não se esconde atrás de portas esperando para dar um susto. Ele é claro e impactante como o sol da meia-noite.

Quando cinco jovens viajam para a Suécia para participar de um festival local de verão, inicialmente o mais estranho parece ser o sol que nunca se põe e os hábitos da pequena comunidade. Com o decorrer da história, os rituais, os maneirismos e tudo o que é desconhecido passa a ser temido. Florence Pugh vive o papel de Dani, uma jovem com uma carga de traumas passados, que embarca de última hora na viagem para acompanhar seu namorado (Jack Reynor).

O relacionamento dos dois personagens já está fadado ao fracasso e isso fica cada vez mais evidente a cada interação. Os atores conseguem passar o desconforto de duas pessoas que ainda estão juntas, mas já não se amam ou confiam uma na outra. A crise no namoro é um ponto central para o desenvolvimento da trama e alguns de seus pontos mais tensos.

O visual de Midsommar é atípico para um longa de terror. A claridade conflita com a violência gráfica, deixando tudo mais absurdo e difícil de digerir. É um filme ambicioso que se apropria de diversos elementos que se desenrolam lentamente nas quase duas horas e meia de duração. Aster já havia determinado padrão diferenciado com seu filme de estreia e agora impõe algo novo. Enquanto Hereditário (2018) continha truques tradicionais do gênero, seu mais novo trabalho distancia-se da maioria dos outros títulos, confundindo quem foi ao cinema esperando por uma história linear e recheada de momentos intensos.

A transição de Dani da sala para o banheiro do avião é um rápido e bom resumo do sentimento que o filme traz: o de confusão. Nunca dá para saber exatamente o que está acontecendo. Por partes pelo uso de alucinógenos pelos personagens e por nunca se saber quais os limites dos rituais do até então desconhecido vilarejo sueco. As belas paisagens, as lindas roupas, as flores coloridas, a estética contrasta a todo momento com os horrores vividos pelos personagens.

O terror é um gênero que costuma colocar mulheres em evidência. Aqui não é diferente. Na reta final, Midsommar surpreende (ainda mais) ao escolher um caminho diferente e catártico para sua personagem principal. Dani assume um papel de relevância no local e tem uma epifania, talvez o desconhecido não seja tão esquisito assim, até sueco descobre que consegue falar. Esse inédito sentimento de pertencimento guia a personagem a cena final do longa.

A ambição de Ari Aster é valiosa. Midsommar, que acaba de ser disponiblizado em streaming pela Amazon Prime Video, não é sua melhor obra, mas tem grande importância ao tentar quebrar barreiras de um gênero que implora por novos ares. Com seu segundo filme, o diretor consegue estabelecer um tipo de horror que amedronta. Não por dar sustos, mas, sim, por lidar com sentimentos.