Books, Movies

Ficção Americana

Escritor, professor e intelectual se vê confrontado pela realidade macabra da fetichização de estereótipos do negro na literatura dos EUA

Texto por Tais Zago

Foto: Amazon Prime/Divulgação  

Thelonious “Monk” Ellison (Jeffrey Wright) é um intelectual, professor e escritor. Vindo de família com recursos, ele obteve a melhor criação e educação acadêmica. Porém, todos os livros que publica não lhe geram renda, não recebem muita atenção e são confinados às prateleiras escondidas das livrarias. Monk vive frustrado com a pouca repercussão de seu dedicado trabalho e isso o faz estar sempre de mau humor e ruminando ressentimentos contra o mundo literário estadunidense. Um belo dia, ao assistir à um sarau em uma livraria, ele descobre o que “faz de errado”. A escritora em questão, Sintara Golden (Issa Rae), escreve sobre as dificuldades de mulheres pretas na sociedade e suas histórias de tristeza e superação. 

Ellison se dá conta, nesse momento, que está preso na estrutura dos editores, vendedores e leitores, que procuram em obras de autores negros apenas histórias que mostram pobreza, crime e dificuldades familiares. A repulsa de Monk é tão grande que ele decide tirar um tempo da vida acadêmica e visitar a família, a qual não via há mais de dez anos. Logo ao chegar é devastado por duas tragédias que o levam a precisar urgentemente de dinheiro. Em uma noite, regada a muito álcool, escreve os primeiros capítulos de um livro, onde oferece, de forma irônica e ácida, o que imagina que o público espere dele – um homem negro do gueto mergulhado no mundo do crime – e submete o resultado, em tom de brincadeira e sob pseudônimo, ao seu agente literário. Qual não é a sua surpresa quando a maior editora do ramo resolve publicar sua obra e pagar antecipadamente para tanto. Estimulado pelo seu empresário e por um desejo quase masoquista de ver até onde vai o racismo velado e institucional dos EUA, o professor leva a sua “brincadeira” adiante. Cria um pseudônimo e uma persona para o autor do dito livro – um fugitivo, procurado pela polícia e que se esconde de entrevistas e de aparições públicas.

Ficção Americana (American Fiction, EUA, 2023 – Amazon Prime) é dirigido e roteirizado por Cord Jefferson, que adaptou para as telas o livro Erasure (2001) do escritor Percival Everett. Mais conhecido por séries como Watchmen e Master Of None, Jefferson não poupa em humor e critica social ao mostrar a hipocrisia da branquitude no universo literário. Toda hora sentimos uma vergonha alheia (ou pessoal mesmo) das atitudes dos personagens caucasianos em cena. Temos um espelho diante de nós e do pseudo “bom branco” que mimetiza uma preocupação dita legitima com povos oprimidos, mas que no final está apenas em busca de blaxploitation como uma forma de representação de um sadismo profundamente enraizado e de um complexo de herói a ser alimentado com histórias trágicas. 

O premiado e sensacional Jeffrey Wright espreme com sua atuação até a última gota a hipocrisia e o comportamento artificial de mercado (e público) em forma de falsa condescendência. Sua atuação é lacônica, precisa e pontual e até por isso – e pelo contraste com os personagens ao seu redor – é hilária, muitas vezes absurda e comovente. Monk tem seus problemas familiares. São dramas de uma família de classe média alta, composta por médicos e intelectuais. A irmã Lisa Ellison (Tracee Ellis Ross) é responsável por quebrar, logo no início, a pose sisuda de Monk, com piadas e reminiscências de infância. O irmão Clifford “Cliff” Ellison (o excelente Sterling K. Brown, de This Is Us), no meio de uma crise de meia idade e descoberta da orientação sexual, é responsável por algumas das interações mais engraçadas mas também mais comoventes da trama. A química entre os atores é um ponto alto do filme: Wright, Brown e a namorada de Monk, Coraline (Erika Alexander), é a força-motriz da trama.

Em uma das cenas mais simbólicas, uma jurada branca de um prêmio literário afirma, com uma falsa comoção na voz, em meio a uma reunião do grupo de jurados que “deveríamos estar ouvindo às vozes negras nesse momento”, ao mesmo tempo em que ela ignora completamente a avaliação dos colegas jurados pretos presentes na sala. Indicado a cinco categorias do Oscar, Ficção Americana é repleto de momentos assim, onde o discurso não corrobora as atitudes no mundo real, e abre uma enorme discussão, muito necessária, sobre hipocrisia e o racismo velado que parece sempre descobrir novas formas de se manifestar na sociedade. O que deveríamos, entre outras tantas coisas, era exaltar obras como esta, que esfregam em nossa cara preconceitos que ainda se mantém em pleno 2024.

TV

O Livro de Boba Fett

Personagem “ressuscitado” em The Mandalorian volta ao Universo Star Wars em nova série feita para o streaming

Texto por Tais Zago

Foto: Disney+/Divulgação

Como sou uma fã (às vezes) controlada do Universo Star Wars, eu estava guardando a série O Livro de Boba Fett (The Book Of Boba Fett, 2021 – Disney+) para devorar inteira quando chegassem todos os capítulos. E foi somente quando o sétimo episodio foi ao ar, em 9 de fevereiro, eu imediatamente peguei minha bacia de pipoca e um litrão de guaraná e estacionei na frente da TV para uma longa maratona. 

O personagem Boba Fett, criado por George Lucas, recebeu seis minutos (e uns quebrados) de espaço na trilogia “original” de Star Wars. Apareceu primeiro em Episode V – The Empire Strikes Back (1980), prendeu Han Solo, teve umas quatro falas e foi devorado pelo verme gigante Sarlacc durante Episode VI – Return Of The Jedi (1983). Antes disso, apareceu brevemente no especial para a televisão feito em 1978. Mas o personagem não é apenas o que os filmes brevemente mostraram – um mero bounty hunter crime lord com uma armadura de Mandalorian e a serviço de Jabba The Hutt. A história do jovem Boba começa a ser mostrada em Episode II – Attack Of The Clones (2002), onde ele é um menino, um clone de Jango Fett, criado e treinado como seu filho. Após o filme, sua história continuou sendo contada na animação feita para TV Star Wars: The Clone Wars (2008).

Em 2010, Lucas já planejava uma série para detalhar alguns dos planetas apresentados na primeira trilogia e seus personagens. O projeto somente tomou forma em 2019 com a parceria com o ator, produtor e diretor Jon Favreau, que resultou no sucesso The Mandalorian, o primeiro live action do USW criado pela Lucasfilm para a plataforma de streaming Disney +. Temporalmente, os acontecimentos tanto em The Mandalorian como The Book Of Boba Fett ocorrem cinco anos após Episode VI – Return Of The Jedi. Portanto, entre os episódios 6 e 7 dos filmes da saga.

Favreau “ressuscitou” o mercenário Boba no final da segunda temporada de The Mandalorian (2020). Supostamente, ele sobreviveu à “digestão” do Sarlacc e se juntou à tribo dos Tusken, onde viveu por cinco anos no deserto. Interpretado por Temuera Morrison (que também fez Jango Fett), Boba ressurge das cinzas para colaborar com o mandaloriano Din Djarin, personagem de Pedro Pascal, junto a uma sidekick e também (ex-)bounty Hunter chamada Fennec Shand (Ming-Na Wen). O spin-off já estava planejado e quem assistiu até o encerramento dos créditos do último episódio da segunda temporada de The Mandalorian sabia disso – ali descobrimos que Boba e Fennec continuariam sua parceria.

Finalmente paz entre os mundos. Boba assume o posto de Jabba The Hutt em Tatooine e tem Fennec como sua fiel escudeira. No começo, ele é recebido com receio e desconfiança pela população, mas aos poucos se fortalece. Seria tudo perfeito se não fosse pela corrupção dos outros senhores do crime do planeta, em sua condescendência enquanto traficantes usam Tatooine como rota de Spice, uma substância ilícita, com aparência de um pó dourado e requisitada em toda a galáxia. 

Um enredo simples, mas também com espaço para absolutamente tudo acontecer (e os diretores, junto com Jon Favreau, não fazem segredo disso). Estamos diante de um space western da melhor qualidade com a digital clara de Robert Rodriguez. Uma mostra disso são os três (1/3/9) episódios dirigidos por ele nessa primeira temporada. Rodriguez adora o absurdo e o exagero do badass, do mocinho com atos espetaculares que beiram o caricato, gosta de cor, tem senso de humor. Robert não é um dead serious devoto da sagrada saga, apesar de ser fã confesso. Ele já tinha sucumbido à tentação de dirigir um episódio de The Mandalorian e depois de negar muitos convites se rendeu ao poder do canal de streaming

Para nossa grande satisfação, somos agraciados com antigos e novos personagens, novos monstros, VFX de qualidade e uma trilha sonora maravilhosa. Já as atuações são medianas, o que na balança final conta pouco diante do tanto de peso estético. Como nada é perfeito, temos a polêmica em torno do episódio onde Luke Skywalker aparece “rejuvenescido” digitalmente com o uso de deepfake, um dublê de corpo e uma voz produzida no Respeecher. O nome de Mark Hamill aparece nos créditos mas é discutível aqui o caminho que se traça ao atender à nostalgia dos fãs sacrificando o trabalho do ator nesse processo.

Fora isso, The Book Of Boba Fett, assim como The Mandalorian é um entretenimento de primeira, muito bem pesquisado, com todos os elementos que gostamos do conhecido USW e com o plus da grana da Disney. Portanto, o céu não é mais o limite onde a aventura percorre o infinito do universo com outlaws como (anti-)heróis. Ah! E pra quem sentiu saudades tem Pedro Pascal nos dois últimos episódios, tem Grogu e até The Machete, Danny Trejo (em uma participação num episódio dirigido pelo Robert Rodriguez, claro!). The Book The Mandalorian se desenrolam paralelamente, o que abre aqui a possibilidade de troca-troca entre personagens de uma ou outra serie. É um truque já bem antigo, mas efetivo, pra fazer o fã-clube consumir tudo do multiverso SW. E as próximas series já apontam no horizonte: Obi-Wan Kenobi já entrou em pós-produção e Ahsoka também está encaminhada. E ainda teremos a terceira temporada de The Mandalorian em 2022. Mais uma caixa de pandora foi aberta.

Movies

Falling – Ainda Há Tempo

Viggo Mortensen estreia na direção com uma tocante história baseada em sua própria experiência com a demência em família

Texto por Abonico Smith

Foto: Califórnia Filmes/Divulgação

Ver um filme pode ser uma experiência catártica, sobretudo se a história for um grande drama. Muitas vezes, por se identificar bastante com quem o protagoniza, sua história, seu sofrimento e seus percalços, espectadores descarregam tudo em lágrimas ou gatilhos interiores acessados. Só que fazer um filme também pode significar a mesma coisa. Viggo Mortensen que o diga com seu Falling – Ainda Há Tempo (Falling, Reino Unido/Canadá/Estados Unidos, 2020 – Califórmia Filmes), no qual assina direção, roteiro mais boa parte da trilha sonora, além de interpretar um dos dois protagonistas.

Boa parte da história começou a ser escrita logo após o funeral de sua mãe. Ela, assim como também o pai de Viggo, passou alguns anos sofrendo de demência. Algumas das histórias sobre a doença e o convívio entre a/o paciente e os familiares que a/o cuidam, ouvidas pelo ator naquele momento, não saíram mais de sua cabeça até sua estreia como diretor se concretizar para ser exibida nas grandes telas.

E Viggo consegue transmitir delicadeza mesmo em tempos difíceis entre uma relação mantida às turras entre pai e filho. Na verdade, o pai Willis nunca mudou o jeito bronco de ser. Fazendeiro do norte do estado de Nova York, satisfaz-se em ser desagradável a todos ao redor somente pelo fato de ser desagradável, de contrariar pedidos e expectativas alheias, desde que seus dois filhos (John e Sarah nasceram). Não aceita as transformações sociais trazidas com o tempo, torce o nariz para a homossexualidade do filho (e também para o seu casamento de anos com o pai de sua enteada), tem rejeição pelo fato de Barack Obama ter sido o primeiro presidente preto eleito pelos Estados Unidos para governar a Casa Branca e não pensa duas vezes antes de provocar confusões com verborragias e atitudes. Ao mesmo tempo, Willis não entende que, por causa do avanço da demência, precisa ser (pacientemente) cuidado pelo primogênito John. Não quer mudar-se para a “progressista” Califórnia por ali ser “uma terra de bichas”. Não aceita a morte da dedicada e pacata Gwen (a mãe dos meninos) ao passo que tem alucinações sexuais com a segunda esposa Jill, aparecendo sempre em sua mente como uma voluptuosa ruiva seminua mesmo em meio de uma nevasca ao ar livre. Por tudo isso, o veterano Lance Henriksen (cujo currículo traz filmaços históricos como Um Dia de Cão O Exterminador do Futuro) entrega uma performance intensa e monstruosa como o indomável octogenário.

O vai e vem do passado, aliás, é um trunfo constante da narrativa e vai ajudando o espectador a montar o quebra-cabeça da conturbada relação entre pai e filho. Desde pequeno, John (Mortensen, que a princípio relutava em atuar em seu próprio filme) é criado por Willis a ser um típico exemplar de macho como ele. O menino – que aparece em distintas fases de sua infância e adolescência – já aprende, bem cedo, que as situações devem ser dribladas com pacifismo, condescendência e, sobretudo, muita, muita paciência. O que poderia se tornar uma armadilha para a trama, porém, revela-se um ganho para Viggo. Não somente esses flashbacks se misturam como lembranças abruptas de uma parte quanto de outra, como também pequenos sinais externos às cenas de ontem e hoje vão sendo delicadamente distribuídos ao espectador para que ele faça a sinapse e descubra de quem é aquele lampejo naquela hora do aqui e agora.

Quando chega ao final, o “novato” diretor também revela outros dois pontos altos de seu filme. Primeiro é a engraçada (se é que durante todo o drama intenso poderia, de fato, haver espaço para algo com um ligeiro toque de humor) participação especial de David Cronenberg. O cultuado cineasta – dono de uma obra marcada pelo horror corporal – aqui é um mero médico que vai realizar o temido (pelo machão Willis, claro) exame de próstata. Por fim, quando começam a subir os créditos, Viggo mostra ao mundo a aposta nas multi-istrumentistas irmãs postiças que formam o Skating Polly, uma fofíssima dupla (trio se contar a participação do irmão de uma delas na bateria e na guitarra) formada por elas em 2009, então aos 9 e 14 anos de idade, e que conta com (já) cinco álbuns de carreira e apadrinhamento de grandes ícones do rock alternativo americano, como Exene Cervenka (vocalista da lendária punk X e primeira esposa de Mortense), Flaming Lips, Babes In Toyland, Band Of Horses, Veruca Salt, Deerhof, Mike Watt e Garbage. A canção “A Little Too Late” não só gruda de imediato na cabeça como é uma incrível força lírica e melódica que anda faltando por aí nas programações das rádios, playlists de internet e escalações de grandes festivais.

Ao realizar todas as etapas de Falling – Ainda Há Tempo, o ator, roteirista, músico e diretor Viggo Mortensen também parece ter exorcizado toda a dor passada durante seus dramas familiares – tanto que dedica o filme a seus dois irmãos mais novos, com quem dividira a turbulência enfrentada duas vezes contra a demência. Por ser um projeto autoral/pessoal em demasia, acaba se tornando uma peça verdadeira de arte e ainda imprime maior veracidade àqueles espectadores que porventura possam vir a se identificar com o sofrimento vivido por John e Sarah desde o nascimento até a meia-idade. Exibido publicamente pela primeira vez no festival de Sundance em 2020, o longa-metragem chega agora aos cinemas brasileiros, com um certo atraso provocado por causa da pandemia da covid-19. Aos mais desavisados, pode até ser algo chocante de se ver e duro de se acompanhar. Entretanto, não deixa de ser uma obra de extrema sensibilidade e que passa bem longe de tender ao tom melodramático.