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The Boys In The Band

Reunião de amigos gays expõe de forma intensa e dramática barreiras de meio século atrás que ainda permanecem difíceis de serem quebradas

Texto por Maria Cecilia Zarpelon

Foto: Netflix/Divulgação

Desde a rebelião de Stonewall que o movimento LGBTQIA+ vem ganhando cada vez mais visibilidade nos espaços de discussão. Mas, apesar das várias conquistas que o grupo teve ao longo de todos esses anos, será que as coisas realmente mudaram? A segunda adaptação cinematográfica homônima da peça teatral escrita por Mart Crowley em 1968, ainda tem muito a dizer sobre as vicissitudes dessa comunidade nos dias atuais. Produzida por Ryan Murphy (das séries Hollywood e Ratched), a nova versão de The Boys In The Band (EUA, 2020 – Netflix) é uma obra relevante e provocativamente anacrônica. Pouco mais de meio século depois de ter sido criada, a trama segue ousada por trazer de forma tão crua as particularidades de uma comunidade que teve – e ainda tem – sua voz silenciada. 

O enredo do filme dirigido por Joe Mantello é simples: em uma noite de 1968, um grupo de amigos gays se reúne para comemorar o aniversário de um deles. O que era para ser apenas mais uma festa comum acaba, na verdade, aflorando mágoas e ressentimentos escondidos sob uma fina camada de falsa felicidade. Essa reunião aparentemente despretensiosa expõe temas delicados como amizade, homofobia e preconceito de forma fluida e áspera ao mesmo tempo.

O longa se passa em um local apenas, o apartamento novaiorquino de Michael (Jim Parsons, o Sheldon da série The Big Bang Theory). Ao contrário do que muitos podem pensar, em momento algum a história se torna monótona ou cansativa. Isso se dá graças às rápidas respostas e diálogos afiados preservados do roteiro de Crowley. Os longos papos sobre autoaceitação e discriminação que permeiam o apartamento são inesperadamente potentes. 

Enquanto os homens vão esmiuçando os problemas latentes que eles negam existir entre si, a tensão que se arquiteta no ambiente chega a ser sufocante. À medida que os espectadores – assim como os personagens – sentem que não existe para onde ir, a inquietação se intensifica. Um ótimo recurso para criar esse clima claustrofóbico –  que passa quase despercebido – é o confinamento do grupo dentro da pequena sala do apartamento, uma vez que começa a chover na cidade. 

Aos poucos, o público descobre que Michael é um homem inquieto, que carrega um desejo quase extremo de agradar as pessoas e nunca saiu do armário completamente. Ele, com a ajuda do ex-namorado Donald (Matt Bomer), organiza uma festa para o sarcástico aniversariante Harold (Zachary Quinto, o Spock atual da franquia cinematográfica Star Trek), com quem mantém uma relação complicada. Entre os convidados estão Larry (Andrew Rannells), que mesmo não acreditando no conceito de monogamia, mora junto com Hank (Tuc Watkins), que acabou de deixar a família para ficar com o amado. Além deles, estão presentes o performático e animado Emory (Robin de Jésus), e Bernard (Michael Benjamin Washington), o mais tímido do grupo.

Tudo fica ainda mais angustiante quando a chegada de Alan (Brian Hutchison), um velho amigo da faculdade de Michael, revela que a cumplicidade entre os amigos é mais frágil do que parece. Resultado das personalidades dissonantes, os embates, por vezes engraçados, chegam ao ápice quando Michael é confrontado com a homofobia (não tão) velada de Alan, fazendo com que sua raiva há muito reprimida emerja. Nos absurdos, na petulância e na dor que preenchem a performance de Parsons é que reside o momento mais dramático do filme.

As inconstâncias, desejos, medos e alegrias dos personagens permeiam as duas horas do longa sem que pareça um “espetáculo exótico” para ser admirado. Pelo contrário. Sob esse novo The Boys In The Band paira um olhar atento e próximo que denuncia que as barreiras que deveriam ter sido quebradas há muito tempo seguem firmemente de pé.

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Rocketman

Musical surrealista aborda os intensos conflitos por trás da persona que tornou-se astro do rock sob o nome de Elton John

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Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Paramount/Divulgação

O nicho das cinebiografias sofreu um baque recentemente, pro bem ou pro mal, com Bohemian Rhapsody. Dexter Fletcher, o diretor chamado para apagar o incêndio de Bryan Singer no “filme do Queen”, também é responsável pela realização de Rocketman (Reino Unido/EUA, 2019 – Paramount), a ficção em torno da história do cantor e compositor Elton John. Talvez por isso os filmes compartilhem muitas similaridades.

A estrutura narrativa é, de certa forma, muito parecida. Elton conta sua história para um grupo de reabilitação, rememorando situações boas e ruins de sua trajetória. A infância difícil, o estrelato meteórico e o abuso de drogas e sexo são grandes temas da trama, todos tratados com maior densidade do que em Bohemian Rhapsody. Ainda assim, as comparações desta resenha não passam daqui – Rocketman é uma obra completamente independente de Bohemian Rhapsody e deve ser tratada como tal.

O surrealismo com o qual Fletcher trata a construção de camadas do filme é uma surpresa ótima. Artista e plateia flutuando; extensas e bem coreografadas cenas musicais; devaneios em tela, quase como alucinações. Estes são meros exemplos, dos quais o mais divertido é, por sua metalinguagem, Elton John transformando-se num foguete. Desta forma, o longa se propõe a adentrar a história do astro tornando clara sua capacidade ficcional – a inspiração na vida dele não faz deste um filme puramente factual. Assim, o roteiro de Lee Hall tem maior abertura para seu dinamismo. Hall trafega por diversos momentos da história de Elton, explorando principalmente a relação entre astro e mero humano (Reginald Dwight, seu eu anterior à fama), com fluidez. Ainda assim, o filme parece por vezes ter pressa em alcançar seu ponto de maior conflito, o fundo do poço do artista, ainda que funcione.

O principal vetor, no entanto, que conecta os episódios temporais do longa com eficiência é seu elenco, com atuações de tirar o chapéu. Matthew Illesley e Kit Connor interpretam Reggie em sua infância e pré-adolescência, ambos satisfazendo o personagem, mesmo com pouco tempo em tela. Resta a Taron Egerton transmitir os traços mais desafiadores de Reginald/Elton. E ele o faz com maestria. Sua ótima atuação torna-se ainda melhor quando contracena com Jamie Bell (que interpreta brilhantemente o parceiro letrista Bernie Taupin injetando camadas de maneira muito verossímil) ou com Richard Madden (que performa o subaproveitado empresário/namorado John Reid, extraindo do personagem um vilão satisfatório). Bryce Dallas Howard e Gemma Jones, o núcleo familiar do filme (fazem a mãe e avó de Reggie, respectivamente), também entregam majestosamente suas personagens.

Porém, por conta da já mencionada inquietação do roteiro, o longa-metragem é musical demais e, evitando comparações, torna-se cansativo ao apresentar montagens “inventivas” somente para avançar a trama temporalmente. Ou seja, existem poucos momentos de diálogos entre uma peça musical e outra – todas as montagens citadas são mescladas nelas. Claro, a música é de Elton John, o que torna o ritmo repetitivo menos entediante.

Rocketman insiste em apresentar o lado humano de Elton John (ou o Reginald Dwight por trás da persona criada pelo astro), transparecendo todas as facetas do personagem em suas duas horas de duração. Seu protagonista borra a linha cinza entre o certo e o errado, fato que o filme entrega sem moralismo algum. Dessa forma, a excelente trilha sonora embala a apressada história, que por sua vez se sustenta pela majestosa atuação de todo seu elenco, acompanhada de uma boa dose de surrealismo, para desprender o filme de seu inspirador. Ficção é ficção. A “história como de fato aconteceu” não protagoniza nem documentários, quem dirá este Rocketman.