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A Baleia

Darren Aronofosky volta a incomodar com um espetacular Brendan Fraser como um professor em desenfreada busca pela não existência

Texto por Taís Zago

Foto: Califórnia Filmes/Divulgação

Samuel D. Hunter escreveu A Baleia tendo sua própria vida e trajetória como inspiração. Nascido em Moscow, Idaho, ele foi compelido a se assumir gay já na adolescência, sofreu com a homofobia provinciana e suas mazelas emocionais refletiram em um ganho rápido de peso durante os anos de universidade. Então, Samuel cria em A Baleia um “e se…” caso ele tivesse continuado o caminho que estava posto diante de si. Darren Aronofsky assistiu à peça em uma de suas muitas apresentações e rapidamente vislumbrou no roteiro material rico para um longa-metragem.

Para os que estão familiarizados com a obra cinematográfica de Aronofsky não é segredo algum que o diretor, roteirista e produtor se expressa, não raramente, usando os extremos dos comportamentos humanos. Ora aborda o vício em drogas em obras como A Vida Não É Um Sonho (2000), ora as profundezas da alma humana como em Cisne Negro (2010). Também não é raro em seu oeuvre uma jornada de modificação corporal baseada na busca de aceitação e fama que acaba por deteriorar lentamente seus personagens, como em O Lutador (2008). O ponto convergente de sua obra é uma visão desiludida do humano, o que não raramente nos arrasta a lugares incômodos e quase insuportáveis dentro de nossas cabeças.

Em A Baleia (The Whale, Estados Unidos, 2022 – Califórnia FIlmes), Aronofsky e Hunter trabalharam juntos para transpor dos palcos para o cinema toda a gama de sentimentos de Charlie, interpretado brilhantemente por Brendan Fraser, um homem solitário que vem seguindo um caminho sem volta de deterioração física, emocional e psicológica desde a perda de seu grande amor e companheiro de vida. Charlie é um excelente professor universitário de ensaios literários, ministra suas aulas via EAD, mas nunca permitiu a seus alunos que o vissem pela câmera. Há muito tempo Charlie não sai de casa, não cuida da saúde, não vê muitas pessoas. Uma de suas grandes dores foi o seu afastamento compulsório da filha, na época com 8 anos de idade, por ele ter assumido uma relação homoafetiva com um de seus estudantes. Tudo em Charlie é machucado. Apesar do foco em sua aparência como alegoria para a ruína, a parte mais evidente da tremenda dor que carrega é revelada pelos olhos e pela voz. Ao seu lado, tem a fiel amiga Liz (Hong Chau), uma enfermeira que o acompanha e tenta fazer os seus dias o mais confortável possível sem criticar com clichês e sem esmiuçar os motivos. Liz os conhece bem, mesmo que no fundo ela não queira aceitar o caminho escolhido por ele.

O filme, mesmo antes de ser lançado, gerou uma onda de críticas em relação à patologização da obesidade e do uso das chamadas fat suits (trajes de gordura) que os atores vestem para interpretar pessoas gordas e que muitas vezes já contribuiu para o estigma do grupo com representações em filmes de gosto duvidoso – como O Professor Aloprado (1996), com Eddie Murphy interpretando diversos personagens usando fat suits como uma característica depreciativa, ou em comédias românticas como O Amor É Cego (2001) com Gwyneth Paltrow, onde, bem, o titulo em português é autoexplicativo. Não foram raras as alegações de crueldade e de voyeurismo da obesidade. Aronofsky não é famoso pela sobriedade de suas representações. Ele procura sempre o limite, o que, às vezes, pode beirar uma caricatura de mau gosto. Tanto que A Baleia foi classificada como uma espécie de fat horror por uma ala da crítica. 

Sabendo isso de antemão, apelei para um artifício ao assistir A Baleia – reduzi a luminosidade da minha tela, diminuindo assim a importância e o impacto da apelação visual e concentrando apenas nas vozes, e, algumas vezes, nos olhares. E só pude chegar a uma única conclusão: Brendan Fraser é espetacular. Desconectando a caracterização, o que nos resta é uma alma partida de alguém que perdeu completamente o interesse de continuar vivendo. O que sentimos é um ser humano em rota de colisão irremediável e desesperançada. E nesse caminho pouco importa o figurino, a maquiagem ou o método escolhido para se alcançar o objetivo, quer seja ele por meio de drogas, comida, ausência de comida, sexo ou qualquer outra forma de se obter o resultado desejado – a não existência.

A dor de Charlie é profunda demais para ser remediada. O luto diário que mantém pelo seu amor perdido de forma violenta é insuperável, a ausência da filha e a culpa que o ronda de forma repetitiva o oprimem. Charlie tanto ruminou suas dores que se entregou a elas. O ponto de retorno já foi há muito abandonado. A depressão retirou a luz quase que completamente de sua rotina. E é exatamente nessa reta final de sua jornada que ele faz um último esforço desesperado para reatar o contato com sua filha Ellie (Sadie Sink), uma adolescente, que segundo as palavras da própria mãe (Samantha Morton, em aparição relâmpago) é simplesmente uma menina má. Charlie se nega a acreditar nisso. Mesmo em toda a escuridão em que vive, ele ainda nutre a esperança na luz de Ellie. Da mesma forma acolhe Thomas (Ty Simpkins), jovem que escolheu pregar a palavra de Deus como sendo a forma irrefutável da salvação humana.

A Baleia, em parte por ser uma dramaturgia adaptada do teatro, é encenada com poucos personagens, tendo como única locação a casa de Charlie e, na maioria das cenas, apenas sua sala de estar. A fotografia é escura em quase sua totalidade, em parte para cooperar com os esforços de tornar a caracterização física mais verídica, mas também como alegoria da profunda depressão do protagonista. A música segue o mesmo caminho, assim como a edição. Tudo nos conduz para a melancolia e para a desesperança. Aronofsky sendo Aronofsky, portanto.

A Baleia é uma tragédia humana real sendo arrastada para o macabro, uma câmara de vácuo e ausência de luminosidade, um palco trágico, uma jornada de redenção e purificação por meio do sofrimento e do sacrifício. Poderia não ser assim, como aponta Samuel ao falar de seu roteiro, mas foi. Brendan Fraser recebeu o merecidíssimo Oscar de melhor ator, preenchendo todos os requisitos que Hollywood busca: um protagonista que retorna das cinzas após ser massacrado e abandonado pela indústria cinematográfica; um roteiro tenso, teatral e dramático; e um personagem que requer modificações físicas complexas da parte do ator para ser interpretado.

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Embarque!

Natureza dos afetos e relações dos jovens durante a temporada do verão é o foco principal deste longa francês

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Belas Artes/Divulgação

Há algo de particular nas viagens de verão. O sol forte, roupas frescas, o contato com gente de todos os cantos e aquele barzinho para passar a noite. Para quem vive na fria Paris, ainda por cima, a experiência de deixar a chuva pra trás soa ainda melhor. Pelo menos é o que parece quando se assiste a Embarque! (À L’Abordage, França, 2020 – Belas Artes), novo longa-metragem de Guillaume Brac.

Nele, a viagem de verão é particularmente curta e de intuito muito bem definido: Felix (Eric Nantchouang) acabou de conhecer Alma (Asma Messaoudene) e, já apaixonado, decide surpreendê-la em sua viagem com a família para o interior francês. Ele e o melhor amigo Chérif (Salif Cissé) conseguem uma carona com Edouard (Édouard Sulpice), um filhinho da mamãe que rapidamente se incomoda com o tom jocoso dos caroneiros. 

Presos num camping devido à quebra do carro de Edouard (de sua mãe, na verdade), o grupo é forçado a estar junto. Daí surge uma qualidade peculiar do roteiro de Brac e Catherine Paillé, que remete à natureza leve e livre do veraneio que abre esse texto. Apesar da odisseia de Felix tentando conquistar uma nada interessada Alma conferir a trama ao longa, esse não é, propriamente dito, um filme de enredo. As cenas que se constroem optam deliberadamente por uma investigação muito sutil e bem-humorada sobre a natureza dos afetos – e é nos pequenos momentos em que eles se solidificam.

Somos convidados a acompanhar Chérif, deixado para escanteio pelo apaixonado Felix, em seus pequenos momentos aproximando-se de Helena (Ana Blagojevic) e Nina, sua filha bebê. Enquanto o apaixonado protagonista disputa Alma com o arrogante salva-vidas Martin (Martin Meisner), Edouard consegue conectar-se com Nicolas (Nicolas Pietri), o ansioso amigo do “vilão” do romance de Felix, e, como quem não quer nada, acaba com um dos mais significativos arcos narrativos do filme.

Essa natureza pacata sem deixar de lado a leveza e a diversão permite que as personagens respirem e interajam sob uma fotografia bastante naturalista, em que a claridade que o sol emana dificilmente deixa a tela. O que poderia conferir um visual “chapado” à obra (ou seja, sem dimensões e profundidades) é o que lhe garante a dramaticidade tão sutil.

Embarque!, que extrai seu nome de uma cena em que o trio de protagonistas, sem ter o que fazer, assiste a uma apresentação de comédia infantil no centro da cidade, convida-nos justamente a um embarque despretensioso nas relações afetivas que se formam, seja na ausência de expectativas e intencionalidades, seja no empacamento que elas são capazes de gerar. Ao fim do longa de Brac, não apenas nos intimizamos com cada uma das personagens em tela, mas estamos prontos para deixá-las ir em paz. Uma relação leve como as amizades de verão.

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Matrix Resurrections

Sequência da trilogia protagonizada por Keanu Reeves é um amargo autorretrato do longa que deu origem à franquia

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Warner/Divulgação

Em dado momento do primeiro ato de Matrix Ressurections (The Matrix Resurrections, EUA, 2021 – Warner), a empresa de jogos de Thomas Anderson (o Neo de Keanu Reeves preso à Matrix) é obrigada pela Warner Bros. (a produtora desse longa) a fazer uma sequência à trilogia de jogos Matrix, que nada mais é que a experiência de Neo nos três filmes anteriores. A montagem de brainstorms, pesquisas de mercado e interpretações do que realmente é Matrix é uma jocosa maneira de significar todo o impacto que os filmes das irmãs Wachowski tiveram na cultura pop, mas se transforma num autorretrato amargo do próprio longa.

A estrutura narrativa do roteiro de Lana Wachowski (sem a companhia de Lilly desta vez, mas com David Mitchell e Aleksandar Hemon) espelha o primeiro capítulo da saga, reintroduzindo um Neo aprisionado pela Matrix que precisa ser liberto. A decisão cumpre duas funções: fazer o mesmo com os novos espectadores da franquia e explicar ao público já maturado os avanços dessa nova era. Tal como ele foi ressuscitado após os eventos de Matrix Revolutions (2003), Trinity (Carrie-Anne Moss) está viva e a nova equipe do protagonista precisa resgatá-la.

São algumas as distinções narrativas entre este episódio e o restante da franquia, como a irmandade entre humanos e alguns “sentientes”, como são chamadas as máquinas. Assim como o universo interno da obra, as discussões em seu exterior também foram alteradas pelo tempo – os primeiros episódios da saga são marcados por discussões filosóficas que muito têm a dizer sobre sua realidade político-cultural. Contudo, esse capítulo não parece tão interessado em trazer o conflito de ideias para o centro de sua trama. Ao contrário, ele a reduz a um resgate repleto de ação permeado aqui e ali por referências ao centro temático de Matrix, o livre arbítrio.

É dessa maneira que se descarta o Oráculo sob uma justificativa que parece não atingir inimigos anteriores de Neo, como o Merovíngio e os Gêmeos, assim como modifica-se drasticamente o papel de Morpheus nessa história (embora este seja um novo personagem, mas que carrega o nome e o simbolismo da encarnação de Laurence Fishburne). Ainda, as sequências de ação que tornaram Matrix (1999) e Matrix Reloaded (2003) tão memoráveis são substituídas pelos entrecortes rápidos e genéricos que escondem a forma de socos e pontapés. O mesmo pode ser dito da estética monocromática e, especialmente dentro da simulação, munida de sobriedade e rigidez tão ímpares que agentes e protagonistas parecem igualmente robóticos. Em Matrix Resurrections, a atmosfera esverdeada da Matrix é substituída por uma coloração mais saturada e “natural”, enquanto os tons frios de fora da rede são mais anuviados e encontram mais contraste (neste caso, um ponto que pode-se considerar positivo).

Essas duas alterações-chave parecem destituir de Resurrections o que torna Matrix Matrix. Junto à abordagem pouco indagadora do roteiro sobra pouco da originalidade e autenticidade que a própria produção admite ter tornado a saga tão especial em sua sequência metalinguística que comentei no início desse texto. Da mesma forma, o confronto no terceiro ato escora-se num Deus ex machina (facilitação narrativa em que uma solução ao conflito surge do nada) que é admitido pelo próprio roteiro e, logo em seguida, transforma-se em um genérico conflito do grupo de mocinhos contra um enxame de não personagens. A redução do estilo de direção, fotografia e mise en scène transforma este num mero filme de ação, carregando o mesmo exagero em escopo que fez de Revolutions um fracasso.

Há, contudo, atuações que se provam adições interessantes ao panteão mitológico desse universo. A personagem de Jonathan Groff é conduzida com o frescor necessário à retomada de uma franquia sci-fi, assim como a diferente personalidade desse novo Morpheus (Yahya Abdul-Mateen II). Carrie-Anne Moss e Neil Patrick Harris também performam muito bem, nas diferentes medidas que suas personagens lhes possibilitam. Já Keanu Reeves se mantém como a monótona persona que se ama ou odeia.

Se, para fazer uma sequência bem sucedida, todo o necessário fosse apenas referências e humor autorreferente, Matrix Resurrections definitivamente estaria no caminho certo. Fan service à parte, contudo, esse parece mais um degrau de distância entre o primeiro Matrix e o restante da saga. O que agora é um ativo que vale milhões para a Warner, com a ironia de um novo videogame prestes a ser lançado, tem uma abordagem muito mais mercadológica que autoral – um sintoma da eminente universalização dos empreendimentos cinematográficos, que precisam mais e mais condicionar lançamentos futuros, spin offs em redes de streaming e demais produtos. 

Não basta, para finalizar o argumento que introduz essa crítica, a mera autoconsciência do filme enquanto produto vendável para que as decisões tomadas com esse viés deixem de prejudicá-lo. Ao fingir o controle criativo de Wachowski ao referenciar seu controle inescapável, a Warner acaba por representar justamente tal controle, desesperada por soar mais que a busca por cifrões e valor de marca, seja nas telonas ou nos consoles. A risada que deveríamos ter às custas da postura da empresa é senão ela mesma rindo do público, que aceita com facilidade o empilhamento de referências num roteiro fácil e garante seu faturamento explosivo. O que é isso senão a Matrix que O Analista criou, que utiliza sentimentos humanos para manter suas mentes encarceradas?