Movies

Nomadland

Vida nômade levada por muitos americanos é mostrada com sutileza pela diretora Chloe Zhao e coroa a carreira da atriz Frances McDormand 

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Fox/Disney/Divulgação

O burburinho das premiações crescia a cada dia nos últimos meses. Com o anúncio dos indicados ao Oscar 2021, as proporções desse debate tornaram-se astronômicas. Nomadland (EUA/China/Alemanha, 2020 – Fox/Disney/Divulgação) da diretora Chloe Zhao, foi um dos grandes nomes das premiações deste ano, tendo inclusive ganho as categorias de melhor filme e diretora no Globo de Ouro deste ano e três Oscar (filme, direção, atriz).

No roteiro, adaptado por Zhao do livro homônimo de Jessica Bruder, acompanhamos Fern (Frances McDormand), uma senhora que, desde a dissolução da cidade onde morava, viaja os Estados Unidos entre bicos e retiros, em um estilo de vida sem casa, mas não sem lar. A vemos com suas amizades, novas ou de longa data, seus breves conflitos com a família e a aceitação da proximidade da morte em seu entorno.

Por mais que seja centrado em uma longa viagem, Nomadland é bastante flexível e, assim, não se assemelha a um road movie mais emocional. Pelo contrário: é um estudo de personagem carregado de sutileza e, sobretudo, calma. Não há pressa em entender as camadas de Fern, cuja personalidade vai se revelando ao longo de toda a duração. A direção opta por trabalhar com um forte intimismo ao mesmo tempo que sempre significa o amplo horizonte da jornada de seus personagens, refletindo-o na profundidade de campo sem fim de suas cenas externas.

No entanto, há uma inconsistência tonal entre o começo e o restante da obra: enquanto os primeiros minutos soam como uma forte crítica ao capitalismo tardio e à precariedade do serviço social americano, o discurso opta por focar na automarginalização. A não ser Fern, parece que nenhum dos viajantes que moram em seus veículos foi cooptado pelo sistema a tomar essa decisão. Pelo contrário, em uma abordagem mais good vibes. Todas personagens a tomaram para aproveitar o restante da vida.

A partir dessa mudança de direcionamento, a trama volta aos eixos e se mantém coesa. A atuação de Frances McDormand é muito expressiva, de forma que uma verborragia somente viria a atrapalhar a bela jornada interpretada pelos silêncios e expressividade da atriz. Sua face, cada vez com uma expressão diferente, é utilizada até saturar, operando como um estabilishing shot da alma de Fern. (Estes são aqueles planos que introduzem a trama a uma nova locação, como as sequências aéreas da cidade toda vez que a novela da Globo foca em outro núcleo.)

Essa e outras pequenas repetições prejudicam o ritmo da obra, que ainda é muito direto e preciso. O aspecto contemplativo de roteiro e direção se encontram com a montagem – um produto da opção de Chloe Zhao por assinar as três funções. Seu corte dá espaço para a naturalista fotografia de seu comum colaborador, Joshua James Richards, e a ampla trilha sonora do veterano Ludovico Einaudi, que explora poucos temas com precisão milimétrica. 

Bem balanceado, Nomadland chegou ao Oscar com o peso e o prestígio de seis indicações baseadas no frescor na narrativa introspectiva de Fern e suas companhias. Um indicativo certeiro da potência dos futuros trabalhos de Chloe Zhao e mais uma coroa para a carreira de McDormand. 

>> Nomadland concorreu no dia 25 de abril ao Oscar 2021 em seis categorias: filme, direção, atriz, roteiro adaptado, montagem e fotografia

Movies

Alice Júnior

Longa-metragem curitibano acerta em cheio ao tratar sobre tolerância e diversidade sexual para o público-alvo de jovens e adolescentes

Texto por Janaina Monteiro

Foto: Divulgação

É lamentável que em pleno 2020 os termos sexismo, discriminação de gênero e transfobia ainda estejam tão em voga, mesmo depois da aparição de Roberta Close e Rogéria décadas atrás nos principais veículos de imprensa nacionais. Se por um lado o salto evolucionário tecnológico alcança Marte, o ranço conservador persiste no núcleo de muitas famílias e governos. Por isso um filme como Alice Júnior (Brasil, 2020) – que estreou em cinemas drive-in e agora chega à Neftlix, depois de também ficar disponível no YouTube e em outros serviços de VOD e streaming – é tão necessário. Ele abre a mente dos caretas e afaga o coração dos liberais, dando aquele gostinho de quero mais.

A premiada produção que brotou da “República de Curitiba” é dirigida pelo paranaense Gil Baroni e tem roteiro assinado por Luiz Bertazzo e Adriel Nizer Silva. No bate-papo com os jornalistas do coletivo Jaccu (Jornalistas Autônomos Culturais de Curitiba), veiculado no YouTube do Canal Pausa Dramática (assista ao episódio e escute o podcast nos links abaixo), Bertazzo – que também é ator e DJ – revelou que teve o insight de rodar um filme com a temática trans durante uma festa. O roteirista compartilhou sua ideia a Baroni, que prontamente disse querer dirigir a história. E assim surgia Alice Júnior, nome da protagonista interpretada pela recifense Anne Celestino Mota.

O próximo passo, então, seria justamente encontrar uma atriz trans que se enquadrasse na proposta para conferir veracidade à trama sem que soasse caricata como muitos Crôs por aí. Com o apoio da mãe, Anne, que já atuava como YouTube, soube do teste de elenco e… #partiuCuritiba. Após ser sabatinada por Baroni e Bertazzo, a jovem foi escolhida para o papel e, de quebra, fazer história no cinema brasileiro. Por conta disso, o roteiro sofreu uma série de intervenções, incorporando experiências vividas e observadas por ela. 

Ao tratar um tema sério de um jeito leve, o longa-metragem conquistou a plateia de importantes festivais (como Berlim) e Anne levou o candango em Brasília. Uma emoção semelhante àquela vivenciada pelo ator Silvero Pereira, o cangaceiro queer Lunga de Bacurau, que vem abocanhando prêmios e desfilou pelo tapete vermelho de Cannes montado como o alterego Gisele Almodóvar.

Assim como Lunga, Alice não vive no País das Maravilhas. Pelo menos não é pobre e tem o apoio e afeto do pai, fato que não ocorre com muitas jovens trans. Na história, o viúvo francês Jean Genet (Emmanuel Rosset) é bioquímico e foi contratado por uma indústria de perfumes para inventar uma nova fragrância. O único porém é que a tal fragrância é encontrada numa longínqua e conservadora Araucárias do Sul (esta seria um alterego de Curitiba?) e Alice precisa acompanhar temporariamente o pai na nova empreitada. Aqui ainda fica evidente a ironia implícita no roteiro que alude a símbolos tipicamente curitibanos: Jean é francês, assim como vários conterrâneos seus que vieram trabalhar numa montadora de veículos na região metropolitana da capital paranaense, onde também foi erguida uma famosa fábrica de perfumes. 

Em Recife, Alice já havia batalhado para conquistar amizades mais um crush em quem estava prestes a dar seu primeiro beijo, além de ter saído vitoriosa num reality show e desfilado para um estilista famoso. No Sul, a garota precisa enfrentar novamente tortos olhares de preconceito, risadas maliciosas e muito bullying para conquistar seu espaço, assim como acontece com dezenas de adolescentes como ela. Contudo, em vez de se vitimizar e ficar chorando pelos cantos, a protagonista encara como um rolo compressor o período de adaptação à nova escola, onde passa a desfilar com o queixo erguido e ganhar, pouco a pouco, a simpatia de todos. No fim das contas, a garota trans empoderada (que é o termo da moda, aliás!) torna-se um exemplo de autoestima não só para o universo LGBTQ+ mas para todos que já sofreram algum tipo de discriminação, independentemente de gênero ou orientação sexual, origem geográfica e classe socioeconômica.

Como Anne já atuava como vlogueira, houve o prerrequisito da aproximação do olhar do diretor ao mundo digital, o que acaba deixando tudo mais atraente para o público-alvo de produtos populares como Malhação. Indispensável ainda é a trilha sonora deste filme teen. O fato de Bertozzi ser DJ colaborou bastante para a escolha do repertório, que traz nomes não muito costumeiros em soundtracks de obras nacionais, como Karina Buhr, Barbara Eugênia, a banda Verónica Decide Morrer e a cantora curitibana Surya Amitrano. No filme, aliás, Surya interpreta uma das novas melhores amigas de Alice. E  também soma-se ao elenco da história Katia Horn, da tradicional família curitibana de artistas de mesmo sobrenome, fazendo o papel de uma divertida mãe bicho-grilo.

Agora é esperar que Alice Júnior e toda a sua diversidade nos mostre que existe esperança de um mundo mais tolerante no fim do arco-íris. Enquanto isso fica a torcida de que a gente, de alguma maneira, já esteja bem perto de onde ele termina.