Com Elizabeth Moss atuando ao lado de Wagner Moura, nova série já está sendo considerada a grande obra das produções atuais da linha true crime
Texto por Taís Zago
Foto: Apple TV+/Divulgação
A nova série do streaming da maçã é uma adaptação do thriller literário publicado em 2013 e escrito pela sul-africana Lauren Beukes. E falar isso já é quase um spoiler para os mais atentos. A dificuldade maior aqui é exatamente resenhar decentemente uma obra, que de tão genial, não permite entregar quase nenhum fato de seu enredo sem estragar a experiência.
Iluminadas (Shining Girls, 2022 – Apple TV+) inicia como um true crime bastante tradicional: no ano de 1964 um sujeito com cara de psicopata aborda uma menina na frente de sua casa. Imediatamente soam os nossos alarmes de que um processo de grooming parece estar em andamento. Pelo comportamento desconfiado da menina, a investida parece ter sido infrutífera. Porém, o assediador não se mostra decepcionado com o resultado. Nós, espectadores, já ficamos com a pulga atrás da orelha.
Num pulo para 1992 – e aqui mais uma vez temos os anos 1990 como a grande tendência da escolha temporal nas produções atuais – reencontramos a menina Kirby, interpretada por Elisabeth Moss, e o abusador Harper Curtis, incorporado por Jamie Bell. Harper parece seguir seu longo caminho de abusador perseguindo e stalkeando possíveis vítimas, agora mulheres adultas. Já Kirby é apresentada como uma moça tímida e reservada que trabalha no arquivo do jornal Chicago Tribune – atividade, aparentemente, bastante protocolar e entediante. Ela parece viver com a mãe, Rachel (Amy Brenneman) uma espécie de Patty Smith noventista que vive da música. Kirby cuida da mãe, os papeis são invertidos. Ela também luta para superar as sequelas de um ataque que sofrera há seis anos, que quase custou sua vida e a deixou com uma aparente síndrome de estresse pós-traumático.
Até aqui não temos absolutamente nada de novo – todas as situações parecem a praxe em um drama ou suspense. Mas as aparências nos enganam e logo somos jogados em um espiral de situações que tiram o chão. A realidade de Kirby não tem nada de rotineira e monótona. Bem pelo contrário: no melhor estilo Russian Doll (série da Netflix), os acontecimentos se atropelam, os cortes temporais nos atordoam, as realidades se misturam e a cada cinco minutos parece que estamos diante de personagens diferentes em uma outra série. A confusão mental da protagonista vira a nossa confusão. Estamos perdidos dentro da história e assim continuaremos por um bom tempo. Isso faz de Iluminadas uma obra bastante difícil de ser acompanhada e que definitivamente não é daquelas que podemos assistir enquanto mexemos no celular ou com burburinho ao redor. É o tipo de obra que devoramos para que ela não nos devore.
Como se todos os lapsos e esquecimentos de Kirby não fossem suficientes para armar a bagunça, ela ainda encontra o seu perfeito parceiro de investigação no jornalista Dan, brilhantemente interpretado por Wagner Moura – com direito a diálogos em português e camiseta dos Mutantes. Dan é um pai solteiro com problema de alcoolismo e carreira fracassada dentro do jornal. Juntos, eles tentam descobrir a identidade do agressor de Kirby, e, aparentemente, de outras vítimas ignoradas pela policia local.
A química entre o trio Bell, Moura e Moss é sensacional. Resulta em um suspense/terror de primeira qualidade e que não economiza em detalhes bizarros, gore e excentricidades. O trabalho é minucioso, desde a caracterização dos cenários de acordo com a época, como as instalações do jornal Chicago Tribune. Mas seria muito injusto não sublinhar aqui o talento fenomenal de Elisabeth Moss. A atriz torna seus todos os papeis que interpreta de uma forma tão natural que não é possível separá-la da personagem. Ela ofusca e toma todo o espaço nas cenas em que atua, sendo bastante difícil nos concentrarmos nos outros dois apesar de, justiça seja feita, também executarem suas funções com maestria.
Iluminadas já está sendo considerada a obra derradeira do true crime atual, deixando pouco espaço para criações originais que venham a ser produzidas a partir de agora. E eu concordo com essa afirmação. A produtora e roteirista Silka Luisa (também da série Halo, da Paramount+, também de 2022) injetou no projeto muito de sua visão feminina focando no oculto e na violência sem apelo sexual exagerado. E se Moss e Leonardo DiCaprio estão na lista dos produtores executivos, a qualidade está garantida, portanto. Está aí uma série para mergulhar, discutir e questionar. Daquelas que nós, fãs do gênero, amamos e torcemos para que haja mais temporadas.
Neste último dia 13 de março foi anunciada a morte do ator William Hurt, aos 71 anos de idade, de causas naturais. O ator norte-americano deixou uma extensa trajetória com seu nome nos créditos de interpretação de 106 filmes.
Para os brasileiros, o mais conhecido e importante foi, com certeza, O Beijo da Mulher Aranha. Na produção de 1985, com produção dividida entre Brasil e Estados Unidos e cenas dirigidas por Hector Babenco em São Paulo, sua presença em cena foi tão esfuziante que arrebatou o Oscar de melhor ator daquela temporada.
Em homenagem a Hurt, o Mondo Bacana enumera os oito trabalhos mais significativos de toda a carreira, marcada por uma série de grandes longas-metragens nos anos 1980, praticamente um emendado após o outro.
Corpos Ardentes (1981)
Lawrence Kasdan escreveu o roteiro de dois filmes marcantes do início dos anos 1980: O Império Contra-Ataca e Os Caçadores da Arca Perdida. O passo seguinte natural seria estrear como diretor e ele optou por fazer uma releitura de Pacto de Sangue, clássico filme noir dirigido em 1944 por Billy Wilder. Em Corpos Ardentes, acompanhamos o dia a dia de um advogado comum e sem ambições, Ned Racine, vivido por William Hurt. A vida dele se resume aos poucos clientes que defende e aos dois amigos com quem costuma beber no bar de uma quente cidade da Flórida. Certo dia, ele conhece Matty Walker, papel de estreia de Kathleen Turner, que diz para Ned: “Você não é muito esperto. Gosto disso em um homem”. Tem início um tórrido romance entre os dois que culmina na morte do milionário esposo de Matty. O diretor Kasdan, também autor do roteiro, revela um domínio absoluto de sua narrativa. Todo o elenco merece um destaque especial. Principalmente, Hurt e Turner, que exalam uma química arrebatadora quase sem igual no cinema. Preste atenção na participação de Mickey Rourke, em início de carreira. Corpos Ardentes é simplesmente imperdível.
O Reencontro (1983)
Em sua estreia como diretor, no drama noir Corpos Ardentes, Lawrence Kasdan tinha chamado a atenção da crítica. Ele resolveu, então, partir para uma história mais pessoal e introspectiva e realizou O Reencontro. O filme conta a história de um grupo de sete amigos que estudaram juntos na Universidade de Michigan. Dez anos depois da formatura, ele se reencontram em uma pequena cidade do interior da Carolina do Sul para o funeral de Alex, que se suicidou. Os outros seis: Sam (Tom Berenger), Michael (Jeff Goldblum), Nick (William Hurt), Harold (Kevin Kline), Chloe (Meg Tilly) e Sarah (Glenn Close) aproveitam o momento para fazer um balanço de suas vidas. Kasdan, que escreveu o roteiro junto com Barbara Benedek, inspirou-se em seus amigos dos tempos de faculdade. O Reencontro se desenrola praticamente todo em um mesmo cenário. As personagens falam sem parar e lavam bastante roupa suja. Parece filme francês, mas é americano. E dos bons. O elenco, hoje famoso, na época, em início de carreira, está excepcional. Duas curiosidades: 1) Kevin Costner fez o papel de Alex, mas as cenas de flashback foram cortadas na montagem final. Para compensar, o diretor o colocou em papel de destaque em seu filme seguinte, Silverado (1985); 2) Kasdan pediu ao elenco que ficasse junto antes das filmagens para que desenvolvessem aquela naturalidade comum em velhos amigos. O Reencontro foi indicado a três Oscar: filme, roteiro original e atriz coadjuvante (Glenn Close). Não ganhou nenhum. Ao invés disso, tornou-se cultuado por toda uma geração.
O Beijo da Mulher-Aranha (1985)
“Ela é… bem, ela é algo um pouco estranho. Isso é o que ela percebeu, que ela não é uma mulher como todas as outras. Ela parece toda envolta em si mesma. Perdida em um mundo que ela carrega fundo dentro de si”. É assim que Molina (William Hurt) começa a contar a história de uma mulher misteriosa para Valentin (Raul Julia). Ambos estão presos. O primeiro, é homossexual. O segundo, é um prisioneiro político. Molina adora cinema e para fugir daquela triste realidade, inventa enredos cinematográficos cheio de mulheres fatais, mistério e romance. Uma de suas heroínas é a Mulher-Aranha (Sonia Braga). Primeiro filme internacional dirigido por Hector Babenco, O Beijo da Mulher-Aranha é baseado no livro homônimo escrito pelo argentino Manuel Puig. Após o sucesso de Pixote (1981), Babenco teve as portas de Hollywood abertas e optou por uma trama próxima do universo narrativo com o qual ele estava acostumado. É curioso observar no desenrolar do filme a maneira como os estereótipos vão sendo trabalhados. Nem sempre o mais forte é o mais valente e muito menos o mais fraco se revela um covarde. Uma direção ao mesmo tempo seca e poética, característica marcante do cinema babenquiano. Além disso, estamos diante de um elenco estupendo e de William Hurt em estado de graça. Ele, que conquistou, merecidamente, o Oscar de melhor ator e também diversos outros prêmios de atuação naquele ano. Rodado em São Paulo, o filme teve uma excelente acolhida de crítica e público, o que possibilitou ao diretor outros trabalhos no exterior, mas sem o mesmo sucesso obtido por este.
Nos Bastidores da Notícia (1987)
Se James L. Brooks tivesse apenas produzido Os Simpsons, só isso já seria suficiente para que ele tivesse seu nome marcado na história da TV americana. Brooks, entretanto, fez muito mais do que isso. Ele é a mente criativa por trás de outras séries populares como Mary Tyler Moore e Taxi. Paralelo a seu trabalho na televisão, ele escreveu, produziu e dirigiu alguns filmes para cinema. Um deles trata justamente de um lugar que ele conhece muito bem: uma emissora de TV. Em Nos Bastidores da Notícia acompanhamos um triângulo amoroso-profissional que se estabelece entre as personagens de Tom (William Hurt), Jane (Holly Hunter) e Aaron (Albert Brooks). O filme é uma comédia romântica. Porém, mesmo sem se aprofundar nas questões propostas pelo roteiro, provoca uma discussão sobre ética jornalística e a espetacularização da notícia. Brooks é um ótimo roteirista e um excelente diretor de atores. É fácil comprovar isso pela maneira como o trio principal é apresentado no prólogo e a forma harmoniosa de interação em cena de todo o elenco.
O Turista Acidental (1988)
Existem aqueles que adoram viajar. Outros precisam por conta do trabalho. Alguns até viajam, mas gostam de se sentir em casa quando estão fora. Para este último grupo existe o guia do “turista acidental”. Este é o caso de Macon Leary (William Hurt), que detesta viajar e fazer qualquer coisa fora de sua rotina já programada. No entanto, o trabalho de Macon o “obriga” a viajar continuamente. Ele escreve guia de viagens para quem não gosta de viajar. Baseado no livro de Anne Tyler e adaptado e dirigido por Lawrence Kasdan, esse é o mote inicial de O Turista Acidental. Macon é metódico e vem de uma família igualmente metódica. Sua vida vira de cabeça para baixo quando uma tragédia familiar modifica completamente sua vida e motiva a separação de sua esposa, Sarah (Kathleen Turner), que não entende a aparente indiferença do marido. Um pequeno acidente doméstico faz com que ele conheça Muriel Pritchett (Geena Davis, no papel que lhe rendeu um Oscar de atriz coadjuvante). Kasdan, que iniciou a carreira como roteirista, sabe muito bem como estruturar uma história e faz isso com maestria neste tocante drama que tem seus bons momentos de “respiro” de humor, seja com a figura extrovertida de Muriel ou com a excêntrica família de Macon. E o elenco é de primeira.
Um Golpe do Destino (1991)
É comum ouvirmos dizer que os médicos se sentem como deuses. Muitos deles parecem insensíveis e não costumam estabelecer qualquer tipo de relação mais próxima com os pacientes. Pode até ser verdade, mas, em alguns casos, trata-se de um mecanismo de defesa. O doutor Jack MacKee (William Hurt) se enquadra perfeitamente nos dois grupos citados: sente-se um deus e sem compaixão alguma. Tudo, porém, muda em sua vida quando ele descobre-se um paciente também. Este é o mote deste filme dirigido em 1991 por Randa Haines. O roteiro, escrito por Robert Caswell, baseia-se no livro homônimo de Ed Rosenbaum. A diretora conduz sua narrativa “transitando” em uma tênue linha. Daquelas que têm todos os elementos para cair em melodrama carregado de clichês. Haines consegue escapar das armadilhas e tem em seu elenco o suporte necessário para manter a trama nos trilhos. Um Golpe do Destino fala de mudanças e superações. No entanto, o faz de maneira convincente, sem “forçar a barra”.
Cortina de Fumaça (1995)
“Se você não puder dividir seus segredos com seus amigos, então que tipo de amigo é você?”, pergunta Auggie para Paul. Este responde: “exatamente… a vida não valeria a pena”. Cortina de Fumaça tem como cenário principal uma tabacaria. Muitos dos diálogos do filme giram em torno de cigarros e charutos. Mas isso, como o próprio título nacional já anuncia, isso é apenas uma distração. O filme, dirigido por Wayne Wang, um chinês radicado nos Estados Unidos, a partir de um roteiro do escritor nova-iorquino Paul Auster, é uma ode à amizade. Auggie Wren (Harvey Keitel), é gerente de uma tabacaria no Brooklyn, em Nova York. Seu melhor cliente é o escritor Paul Benjamin (William Hurt), alterego de Auster. Ao redor dos dois orbitam diversas outras personagens e histórias. Auggie, todos os dias, no mesmo horário, bate uma foto da esquina de sua loja. Ele faz isso há anos. Paul precisa escrever um conto de Natal para uma revista e pede ao amigo que lhe conte uma história. É difícil descrever um longa como Cortina de Fumaça. As coisas acontecem de maneira sutil e envolvente. Sem pressa, o roteiro de Auster e a direção de Wang nos conduzem pelas vidas dessas pessoas que, de início, não conhecemos. Quando o filme termina, eles se tornaram nossos melhores amigos. Diálogos inspirados e personagens bem construídas são uma combinação infalível. De cara, você já aprende como medir o peso da fumaça. E no final, ao som da bela “Innocent When You Dream”, cantada por Tom Waits, somos brindados com um belo conto de Natal. E olha que ainda toca uma das melhores versões de “Smoke Gets in Your Eyes”, na voz de Jerry Garcia. Vencedor do Urso de Prata do Festival de Berlim de 1995, Cortina de Fumaça é daqueles filmes para se ter em casa e rever e rever e rever, sempre. Em tempo: logo após as filmagens, Paul Auster dirigiu junto com Wayne Wang, a partir de improvisos dos atores e de alguns outros convidados, uma continuação chamada Sem Fôlego (1995), que é legal, mas não tem o mesmo brilho. O DVD lançado no Brasil pela Editora Europa traz os dois filmes.
A Vila (2004)
Nem sempre é bom quando um artista chama muito a atenção em seus primeiros trabalhos. Quando o cineasta americano de origem indiana M. Night Shyamalan realizou O Sexto Sentido (1999), foi apontado como gênio e por conta da grande surpresa daquele filme criou-se uma enorme expectativa em relação aos seus trabalhos seguintes. De certa forma, Shyamalan, que é um diretor de muito talento, ficou estigmatizado. Não foi diferente com A Vila, lançado cinco anos depois. Aqui, acompanhamos o dia a dia de uma pequena e isolada aldeia que vive sob a contínua ameaça de criaturas que habitam seus arredores. Existe uma espécie de pacto entre os aldeões e os seres estranhos que moram na floresta. Um dos jovens moradores da vila, Lucius Hunt (Joaquin Phoenix), decide explorar a região além da floresta e essa ação provoca uma ruptura no tênue acordo existente. Mais uma vez Shyamalan desenvolve sua história como uma parábola e faz desta história um espelho da sociedade americana. Munido de um elenco dos sonhos, o diretor-roteirista-ator (ele faz uma ponta no filme!) discute, metaforicamente, a violência urbana e questões como segurança, relações familiares e choque de gerações. Conduz sua trama com habilidade e sutileza e nos reserva boas “surpresas”, que funcionam muito bem. Principalmente se o espectador não criar expectativas grandes demais e esperar ver um novo O Sexto Sentido.
Homem-Morcego volta às telas interpretado por Robert Pattinson e persegue Pinguim e Charada ainda em seu início de carreira mascarada
Textos por Andrizy Bento e Leonardo Andreiko
Fotos: Warner/Divulgação
Lendária criação dos quadrinistas Bob Kane e Bill Finger para a editora DC Comics no longínquo ano de 1939, Batman é daqueles personagens que sobrevivem ao teste do tempo, constituindo seu próprio multiverso – ou, melhor, o seu batverso. Não à toa, já passou por reboots em sua mídia de origem, os quadrinhos, sendo reimaginado por roteiristas e desenhistas em outros universos e linhas temporais alternativas; além de já ter ganhado inúmeras releituras e adaptações para formatos distintos, como filmes, séries, jogos e animações.
No que diz respeito às adaptações live action, podemos citar uma lista respeitável de atores que já vestiram o manto do morcego, alguns mais bem sucedidos do que outros: Adam West, Michael Keaton, Val Kilmer, George Clooney, Christian Bale, Ben Affleck e Robert Pattinson – este, o atual, que está no filme Batman (The Batman, EUA, 2022 – Warner) que chega oficialmente aos cinemas na próxima quinta-feira, dia 3 de março, mas já tem sessões pagas de pré-estreia nesta terça de carnaval. E apesar do descrédito dos detratores e do receio dos mais céticos, o ator britânico é um ótimo Batman. Aliás, está melhor como Batman do que como Bruce Wayne… Mas Pattinson na pele do Homem-Morcego está longe de ser o único destaque do longa de Matt Reeves.
O diretor se pronunciou diversas vezes em entrevistas, não apenas sobre quais histórias estreladas pelo herói serviram de base para composição de seu filme, como também sobre quais seriam suas grandes influências no território cinematográfico. Reeves é um grande fã de Dennis O’Neil, um dos roteiristas fundamentais de Batman nos quadrinhos, especialmente quando ele estava à frente da fase “detetive” do herói. Além disso, o trabalho deste é marcado pelo caráter mais sombrio conferido ao personagem e por tratar de temáticas mais realistas, cotidianas e urbanas em suas tramas. Além da era O’Neil, as clássicas histórias Ano Um, Terra Um e O Longo Dia das Bruxas (com especial destaque para a última) também serviram de referência para Reeves compor seu Batman, bem como os filmes French Connection, Taxi Driver e longas noir em geral produzidos na década de 1970 – não podendo ser esquecidos os trabalhos mais antigos de David Fincher. Para completar, Reeves é um excelente realizador e soube equilibrar elementos narrativos e referências visuais de cinema e quadrinhos, jamais se distanciando brutalmente de nenhuma das duas linguagens, dosando-as com impressionante destreza na tela. O resultado é um feliz encontro de um filme policial no melhor estilo noir com os melhores anos do Morcego nos quadrinhos.
Batman é um longo conto do Morcego de aproximadamente três horas de duração. Muito mais um filme sobre o herói encapuzado do que sobre o homem por trás da máscara, Bruce Wayne, o longa dispensa o caráter introdutório, trazendo o vigilante noturno já atuante em Gotham City desde as sequências iniciais, mas ainda em começo de carreira. Não, não temos a já saturada cena da execução dos pais de Bruce na saída do teatro ou do cinema (já exaustivamente utilizada em outras adaptações) e nem o herdeiro de Thomas e Martha Wayne desenvolvendo seu uniforme e seus famosos bat-apetrechos. O roteiro parte do princípio de que o espectador disposto a conferir o filme já sabe o básico da essência do Cavaleiro das Trevas, conhecendo de antemão alguns dos traços de sua personalidade e elementos mais característicos de sua mitologia.
Com uma atmosfera realista, soturna, repleta de embates violentos que abrem mão de coreografias pomposas e modesto no que diz respeito a pirotecnias, Batman traz uma proposta bem diferente dos filmes de super-heróis da atualidade, não se preocupando em inserir momentos de humor e leveza em sua narrativa ou abusar de cores vibrantes e um visual estilizado para fisgar um público mais abrangente. Não que o longa-metragem seja conduzido com mão pesada ou projete-se como altamente denso, complexo e maduro tal qual Coringa de Todd Phillips. Trata-se de um ótimo entretenimento, com argumento interessante e assertivo ao harmonizar o drama e a ação. Confesso, ainda, que em meio a tantos longas de super-heróis que soam por demais episódicos, passando a impressão de serem grandes teasers para um filme-evento posterior, é muito bom ver uma produção do gênero que se fecha em si mesma e que, por mais que tenha sequências futuramente, ainda poderá ser vista como um filme independente da cronologia na qual está inserido. Temos uma trama com início, meio e fim. Como eram os filmes antigamente.
Dentre as cenas e aspectos marcantes ofertados pelo novo longa do Homem-Morcego, temos a sequência inicial, na qual Charada mira em seu primeiro alvo; a perseguição automobilística envolvendo Batman e Pinguim; o fato de o bom-mocismo de Thomas Wayne ser questionado, mostrando o personagem como um sujeito passível de falhas irreparáveis; e a evolução e o amadurecimento de Bruce como o misterioso herói mascarado, que começa a compreender as linhas borradas entre a vingança e a justiça. Reeves é perspicaz ao trabalhar o conceito de fumaça e espelhos nessa história de Batman. Visualmente, além de conferir uma aura soturna funcional à trama e ao estilo do personagem, a ideia de optar por cenas bastante sombreadas e imagens, muitas vezes, turvas e nevoentas ajudam a atenuar a violência – uma decisão inteligente no que concerne a manter a classificação indicativa no PG-13 (equivalente ao 14 anos no Brasil).
Todo o elenco está muito bem, composto por nomes que emprestam suas carismáticas estampas a personagens emblemáticos dos quadrinhos e apresentam uma química explosiva na tela. Além de Pattinson, Zoë Kravitz é uma das melhores em cena, conferindo a sagacidade e a sensualidade exata à sua Selina Kyle. Colin Farrell (irreconhecível na foto acima!) e Paul Dano surgem se divertindo além da conta nos papéis de Pinguim e Charada, respectivamente. Para completar, temos Jeffrey Wright cumprindo direitinho o dever de casa na pele do incorruptível Jim Gordon. Andy Serkis como o mordomo e tutor de Bruce, Alfred Pennyworth, e John Turturro, interpretando Carmine Falcone, completam o elenco estelar.
Infelizmente, a produção não é desprovida de deméritos. Ótima ideia a de investir em uma trama detetivesca que remete às origens do personagem nos quadrinhos como um grande investigador. O problema é que nem a resolução da charada chega a surpreender e nem Bruce Wayne/Batman se mostra assim tão dotado do brilhantismo e intelecto que se espera daquele que em sua mídia original foi considerado um dos maiores detetives do mundo.
A caracterização de Pattinson como Bruce Wayne também é bastante discutível. Primeiro porque o visual o aproxima mais de Terry McGinnis (o Batman do futuro) do que do Wayne clássico. E, pelo menos neste filme, não vemos Robert incorporar aquela figura charmosa, arrogante, sedutora e orgulhosamente bilionária tão típica de Bruce quando não está trajando seu uniforme e combatendo o crime pelas ruas de Gotham. Na verdade, em Batman, Bruce se mostra bem desinteressado de relações pessoais e eventos sociais, mantendo uma postura mais arredia e reservada, nem mesmo contribuindo como filantropo em sua decadente cidade natal. Mais melancólico do que de costume, o famoso órfão de Gotham alçado ao patamar de celebridade devido à herança e sangue, é uma lacuna não preenchida neste filme. Entendo que, com um ator no auge dos 35 anos, a ideia era que Pattinson passasse a impressão de um pobre garoto rico, imaturo e aborrecido e que jamais pudesse passar pela cabeça de alguém que ele seria capaz de se converter em Batman. Ainda que por vias tortas, Batman acerta nesse quesito.
No geral, o filme se distancia bastante da concepção de Christopher Nolan com seu O Cavaleiro das Trevas. O problema é que o que aproxima as produções é justamente um de seus fatores negativos: o excesso de explicações e didatismos. Por vezes, vemos os personagens narrando aquilo que já estamos vendo acontecer na tela. Outra característica incômoda é a forma como o protagonista se movimenta, especialmente em cenas de crime – sempre de modo muito lento e solene. Ok, pode ser que o peso do traje contribua para isso, o que seria mais um exemplo de que Reeves erra tentando acertar (!!!). Além disso, a direção de fotografia abusa de close-ups e planos detalhe, o que torna algumas cenas um tanto cansativas.
A produção, entretanto, é composta de mais acertos do que erros. A quebra de expectativa ao finalizar uma cena exuberante de voo do Homem-Morcego com um pequeno acidente só nos faz ter mais simpatia tanto pelo personagem quanto por seu realizador. Para os fãs de filmes de ação, as emblemáticas sequências de perseguições em alta velocidade, explosões e lutas violentas estão todas lá, intercaladas por diálogos objetivos e afiados, excelentes dinâmicas entre os atores e momentos dramáticos que passam bem distante de qualquer pieguice. A despeito de suas quase três horas, o longa jamais perde o ritmo e é exemplar em manter o interesse do espectador. Para completar, a trilha sonora combina Nirvana com o tema musical do herói que nos faz lembrar de imediato da popular série animada do Batman, produzida no início dos anos 1990 e exibida por aqui na TV aberta. Outro enorme acerto em uma lista de mais prós do que contras.
Batman é, sim, um grande filme. Talvez não seja o melhor do Cavaleiro das Trevas, mas merece um lugar de destaque na lista das adaptações cinematográficas de quadrinhos de super-heróis. (AB)
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É seguro dizer que estamos falando de um dos filmes mais aguardados dos últimos anos. Batman (The Batman, EUA, 2022 – Warner) foi anunciado por Ben Affleck quando ele ainda assumia o manto do Homem-Morcego e sofreu muitas reviravoltas até parar nas mãos de Matt Reeves (diretor dos capítulos 2 e 3 da nova saga de O Planeta dos Macacos). Seu herói, não mais Affleck, seria Robert Pattinson, popularmente conhecido como o vampiro Edward, de Crepúsculo, mas com maior e maior reconhecimento com o passar dos anos.
Reeves, além de dirigir o longa, escreveu seu roteiro com Peter Craig. Nele, o vigilante mascarado investiga uma série de assassinatos brutais cometidos pelo Charada (Paul Dano), que também se esconde por trás de uma máscara e deixa mensagens crípticas para o protagonista em cada cena do crime. Esse Batman, então, é mais detetive que lutador – o mistério é parte essencial de sua trama. Mais do que um mero filme de super-herói como os mais de trinta que vimos nas últimas décadas, Batman é um bom thriller.
Como tal, ele se estabelece na tênue linha entre tensão e medo. A angústia crescente dos momentos que podem acontecer, não dos que acontecem. Ao mostrar o Charada (foto acima) em ação antes de explicá-lo à audiência, ocupando as sombras como nosso herói, Matt Reeves constrói um suspense atemorizante, manipulando nossas expectativas. Se Batman emerge à tela nas sombras e as habita, seu antagonista faz o mesmo. Não há descanso, portanto, em um filme que se passa majoritariamente na noite de Gotham.
Parte central da mitologia do Homem-Morcego, a cidade é um grande tema de debate nas inúmeras adaptações dos quadrinhos à tela. Com o controle criativo de praxe da DC nos últimos anos, o diretor articula uma Gotham que não peca pelo realismo nova-iorquino como a que Christopher Nolan construiu, mas também não deixa de fundar sua ação, horror e mistérios sobre uma selva de pedra escura, suja e perigosamente verossímil. As luzes transformam a jornada num noir, alçando as composições arrojadas e envolventes de Reeves. Em mais um ótimo trabalho, o diretor de fotografia Greig Fraser (do novo Duna) brilha com dinamismo e inventividade. Seu uso de lampejos, chiaroscuro e, principalmente, do absoluto “sangrar” da tela em vermelho fazem desta uma abordagem requintada do personagem mascarado. Há um charme mórbido em todas as ambientações da cidade, muito disso causado pelo belo trabalho conjunto de direção e fotografia.
Inclusive, o diretor, que vem demonstrando sua sobriedade e controle nos últimos O Planeta dos Macacos, não comete o terrível erro esterilizante que assola os filmes de super-herói das últimas décadas. Sem enquadramentos que gritam aos quatro ventos “isso aqui é tela verde!”, Reeves faz da linguagem audiovisual sua maior aliada na construção simbológica da história. O espectador lembra constantemente o peso alegórico das personagens nas posturas, silhuetas e interações.
Contudo, longe de uma abordagem mais contida e meramente reflexiva das tramas do vigilante, aqui a ação também tem peso. Quem luta respira, sente a porrada e se machuca. Parte desse êxito se dá pelo controle do diretor da câmera, que não se move de cá pra lá sem nexo, entrecortando takes tremidos como se fossem atirados num liquidificador. A outra parte vem da incrível corporalidade de Pattinson e Zoë Kravitz (foto acima), que parecem habitar os corpos de suas personagens há muitos e muitos anos.
No caso do Homem-Morcego, se essa é uma versão mais garota, enraivecida e dotada de um moralismo ainda ancorado na decadente figura de seu pai “cidadão de bem”, não poderia ser diferente a caracterização de um Bruce Wayne claramente perturbado, de poucas aparições e palavras. A atuação de Pattinson é estelar, capaz de construir com o olhar angústia tamanha em seus silêncios como Bruce, temores tais em seus silêncios enquanto Batman – ou, melhor, Vingança.
Enquanto isso, Kravitz propõe uma Selina Kyle diferente das que já vimos em tela – e seu arco distancia-se de uma egoísta ladra rumo a uma interpretação mais compreensiva e bondosa com a futura Mulher-Gato. A atriz é a âncora emocional da relação entre Batman e a anti-heroína. Sendo assim, carrega com primazia a intensidade dramática dessas cenas e sequências.
Muito bem pode ser tido de todo o elenco coadjuvante, mas cabe ainda estender aplausos ao trabalho aterrorizante de Paul Dano. Seu vilão opera pelo medo e, mesmo com a veia terrorista, afasta-se muito do caos pelo caos que consagrou o eterno Coringa de Heath Ledger. Sua aura justiceira e obsessão pela verdade por trás da propaganda, que o tornam uma figura com seguidores (para manter a trama mais vaga possível), são, talvez, as dimensões mais “reais” de todo esse conflito.
Matt Reeves é sutil em localizar a trama em uma série de discussões bastante atuais sobre os perigos da era da informação. Tematicamente, Batman trata (entre outras coisas, é claro) da transformação das redes sociais e fóruns em armas psicológicas de terror, do “culto” à violência enquanto meio para um fim supostamente puro e, ainda nesse campo da moral, as implicações de vingança e justiça que pautam a maneira com que Bruce Wayne vê sua atividade como o Batman com o passar da trama.
Muito poderia ser dito desses e outros conflitos que se traduzem do universo fílmico para o universo real, ilustrando a potência do cinema, bem como de toda arte em geral, em tecer comentários sociais que se fazem eficientes dentro de um discurso maior. O filme, para muito além da adaptação, é um thriller com muita solidez, tensão e suspense. Sem esquecer a ação, a montagem de William Hoy e Tyler Nelson estabelece um ritmo engajante e convidativo nas quase três horas de duração do longa-metragem. Se é verdade que há muita coisa acontecendo em Batman, definir um tempo de tela tão extenso confere o certo respiro a cada uma das partes da complexa e intrincada narrativa.
Resta afirmar que essa versão do Homem-Morcego me parece uma das mais concretas e monumentais da personagem. O mesmo pode ser dito da interpretação bastante distinta de Wayne sem sua máscara. Com uma densa e crua atmosfera, Matt Reeves é capaz de conferir a intensidade temática dos conflitos de terror e máfia sem desvincular Batman da verve criativa do cinema. (LA)
Elementos típicos das obras do diretor Gullermo del Toro fazem deste remake com elenco estelar um eye candy com reflexão
Texto por Taís Zago
Foto: Fox/Disney/Divulgação
O misterioso Stan se junta a um Carnival ao fugir de seu passado rural no meio-oeste norte-americano. Ele sonha com um recomeço recheado de fama e dinheiro. Ao encontrar na ingênua Molly a parceira ideal, inicia sua carreira como mentalista e médium.
O material que Guillermo del Toro escolheu para seu mais recente filme, O Beco do Pesadelo (Nightmare Alley, EUA/México, 2021 – Fox/Disney) não é novidade. Na produção de 1947 (que no Brasil ganhou o título de O Beco das Almas Perdidas), Tyrone Power incorporou com sucesso o personagem Stanton Carlisle. Para muitos, isso bastou como perfeita dramatização do romance escrito por William Lindsay Gresham. Então, por que a necessidade de mais uma versão?
Talvez porque caiu nas mãos certas. Del Toro domina como ninguém o mundo dos monstros (reais e imaginários), o que já provou em obras como O Labirinto do Fauno (2006) e o encantador A Forma da Água (2017). Temos aqui a atmosfera neo-noir já bem conhecida do diretor e roteirista. Tem romance, traição, suspense, figuras bizarras e inusitadas, geeks e bebês com deformidade em conserva de formol. Tudo com muita cor (ênfase nos amarelos e vermelhos circenses), texturas e filtro esverdeado, escuridão e até vignette fade out. Elemento bastante presente na obra do diretor, de novo a abordagem dos anos de guerra faz um contraponto entre os acontecimentos além-mar e os dramas locais dos personagens.
Como se isso tudo já não pagasse o ingresso, o filme ainda tem um elenco de superestrelas da primeira linha hollywoodiana. Alguém sentiu saudades de ver Cate Blanchet e Rooney Mara em um mesmo filme de novo? Tem. Willem Dafoe rompendo a fronteira entre a simpatia e a psicopatia? Tem. Toni Collette como figura maternal? Tem. Bradley Cooper sendo malandro? Tá na mão. Ron Perlman carrancudo com coração mole? Tem também. É um casting perfeito até nos menores papéis, o que muitas vezes faz pensar em desperdício dos talentos, embora não chegue a tanto.
Porém, as figuras, digamos, pitorescas, do Carnival, os cenários e a fotografia ficam em segundo plano nessa obra, apesar da esperada opulência visual estar presente. Del Toro adora enfiar o dedo na ferida e fazer seus (anti-)heróis sofrerem, geralmente provando do próprio veneno, mesmo quando doce.
Stanton (Bradley Cooper), como todo con man, é autoconfiante, sonha alto e aposta mais alto ainda. Junto à parceira de ilusões (e cama) Molly (Rooney Mara), subestima a inteligência de todos ao seu redor. Stan compõe um perfeito retrato do típico narcisista e Molly é a moça ingênua e de temperamento dócil que junta seus cacos. Durante uma das apresentações de Stan e Molly surge Lilith Ritter (Cate Blanchet), que acaba por formar a ponta que faltava no triângulo de trambiqueiros. A partir daí, mesmo que nas entrelinhas, inicia uma interessante queda de braço entre superstição e ciência. Entre o médium e a doutora em psicologia. Como é esperado, em um bom noir, Lilith e Stan sentem uma atração imediata e irresistível um pelo outro. Blanchet sabe ser sedutora e misteriosa como ninguém. Cooper morde mais do que consegue mastigar. E ele não é o maior tubarão nesse novo tanque da cidade grande.
Parece uma história que já vimos mil vezes? Sim. Inclusive com direito a justiça poética no desfecho. Mas isso não é, neste caso, um demérito. O remake de O Beco Do Pesadelo foi feliz em suas escolhas, acertou no tom, na direção, no elenco e na estética. É um eye candy, sem dúvida. Mas com conteúdo para reflexão.
História do militante revolucionário que lutava contra a ditadura militar brasileira chega, enfim, aos nossos cinemas
Texto por Leonardo Andreiko
Foto: Paris Filmes/Divulgação
Embora tenha sido jogado ao mundo em fevereiro de 2019 durante o Festival de Berlim, Marighella ainda não viu a luz do dia em telas brasileiras. Porém, esse atraso não é tão controverso quanto os nomes que assinam a produção.
É notória e assumida a cooperação da Rede Globo com as forças golpistas desde 1964 até o final da ditadura militar, o que justifica a surpresa da comunidade cinéfila ao saber que sua produtora (Globo Filmes) financiou um filme sobre o inimigo número um do Brasil no período. Soa estranho, não?
Contudo, Marighella (Brasil, 2019 – Paris Filmes) é um filme cuja antecipação vai muito além dessa conjuntura, que pode ser frutiferamente discutida em outro momento. Filme de estreia de Wagner Moura na direção, ele é escrito pelo consagrado ator e por Felipe Braga, adaptando o livro de Mário Magalhães sobre o político brasileiro. Sua narrativa aborda a participação do deputado constituinte na formação e queda da ALN, célula revolucionária conhecida pela luta armada durante a ditadura militar.
Mas Moura e Braga optam por apresentar uma narrativa um tanto mais horizontal do que se espera de um filme biográfico, dando espaço para todos os personagens que revolvem Carlos Marighella (Seu Jorge), um pequeno grupo de jovens comunistas e seu parceiro de longa data, Branco (Luis Carlos Vasconcellos). Se, por um lado, a decisão permite abordar temas mais amplos e estabelecer um discurso que ultrapassa o personalismo, acaba por impedir a investigação profunda da história e psique do personagem-título.
Como consequência, Marighella é descaracterizado, pois o conhecemos somente como guerrilheiro expulso do PCB, ignorando (pois há pouca ou nenhuma menção no filme) seu passado como deputado constituinte e também preso político da era Vargas. Da mesma forma, o delegado responsável por sua caça e morte, Sérgio Fleury, é substituído por um personagem fictício, interpretado por Bruno Gagliasso. Assim também ocorre com os guerrilheiros que integram a ALN.
Limitado pelo descompasso histórico, o longa decide retratar uma organização revolucionária empregando uma lógica antirrevolucionária – um filme que boicota seu protagonista. Com a angústia da Aliança em primeiro plano, o que felizmente permite que o filme não descambe em mera ação pela ação, Moura mantém a esperança dos guerrilheiros em evidência, a despeito de toda a desgraça e traição da narrativa.
Em um desespero constante, o núcleo de guerrilheiros não faz mais que cair, mesmo que, cena após cena, os diálogos de Braga e Moura insistam em frases de efeito e chavões cafonas e esperançosos que reduzem os atos da célula a um ideologismo míope. É, inclusive, escabrosa (e aqui busco dar o mínimo de spoilers possível, mas caso prefira entrar na experiência sem saber nada, pule este parágrafo agora) a divisão narrativa que ocorre após uma emboscada matar dois colegas de Marighella. Na cena, o protagonista encara diretamente a câmera – em clara referência do cinema de Spike Lee – e assume que “se é terrorismo que eles querem, é terrorismo que terão”. As ações que seguem pouco justificam a cena, tornando-a dispensável, embora o efeito de “extremizar” a atuação das personagens seja muito bem telegrafada.
Este não é o único aceno à filmografia de Lee, que parece compor junto à caótica câmera na mão de Fernando Meirelles o rol de referências de Wagner Moura, que não consegue imprimir uma forte autoralidade na obra. É evidente que a cadência que o diretor busca estabelecer tem a intenção de apresentar a figura histórica a uma audiência ampla, mas acaba por gerar problemas de ritmo que se originam na quantidade elevada de arcos narrativos – cuja maioria funciona bem e entrega o peso emocional pretendido, mas rapidamente perde impacto por já termos de lidar com outra linha narrativa.
De projeção polêmica, Marighella é um retrato da opressão militar a um movimento revolucionário que acaba por reiterar a atmosfera antirrevolucionária e, principalmente, contrária à luta armada de seus protagonistas. Tem bons aspectos técnicos, envolvente trilha sonora e atuações potentes (a despeito da insistência de Seu Jorge de entoar cada sílaba de maneira plástica e novelesca), mas entrelaça suas partes com um pano opaco que, naturalmente, levanta dúvidas sobre seu teor biográfico.