Com Bruna Marquezine no elenco, DC aposta no primeiro filme de seu herói latino de poderes genéticos vindos de um inseto
Texto por Carolina Genez
Foto: Warner/Divulgação
Após se formar na faculdade, o jovem latino Jaime Reyes volta para casa e encontra sua família em difíceis condições financeiras. Sua vida vira de ponta cabeça, porém, quando entra em contato com escaravelho de origens alienígenas. A história de origem foi contada nos quadrinhos em 2006, sendo ele o terceiro personagem a assumir o manto do Besouro Azul.
Agora o herói ganha os cinemas. Só que ainda é um mistério onde Besouro Azul (Blue Beetle, México/EUA, 2023 – Warner), com direção do portorriquenho Angel Manuel Soto, pode se encaixar no novo universo DC, se ele faz ou não parte dessa nova fase. Um dos grandes diferenciais (e o grande incentivo da divulgação para nós, brasileiros) é ele trazer o primeiro super-herói latino às grandes telas. Antes passamos por criaturas de outras etnias como a própria Miss Marvel, onde sua cultura se destacava não só na sua vida pessoal, mas também em seu traje de super-heroína. Aqui em Besouro Azul, a cultura é representada pela família, suas dinâmicas e no que ela representa para o protagonista, sendo um dos pontos de destaque do filme, já que é essencial para nos ajudar a criar identificação com aqueles personagens.
Nesse sentido o filme é muito positivo. Ele é o que se propõe a ser para a cultura latina e consegue trazer alguns bons momentos de identificação, principalmente na relação entre o Jaime (Xolo Maridueña) e a irmã Milagro (Belissa Escobedo), uma das melhores personagens. Lógico, Reyes é um personagem latino e traz bastante da cultura mexicana, o que nem sempre pode render uma plena identificação a quem é do Brasil, mas ainda assim tem momentos legais (e, claro, o elenco conta com Bruna Marquezine trazendo um pouco do nosso país). A representação da família de Jayme e Milagro também consegue trazer um teor mais emotivo já que, embora tudo seja muito rápido e conheçamos os parentes bem por cima, a atuação dos atores e química entre eles é bem autêntica.
O roteiro traz uma história de cunho genético e muito similar à de outros heróis (como o Homem-Aranha): um garoto inteligente e sem grana que, do dia para a noite, ganha poderes inimagináveis garantidos por um inseto. Apesar dos clichês, a fórmula funciona dentro do longa justamente para que se crie uma conexão com Jaime e torçamos por ele. Suas novidades também são bem interessantes já que o escaravelho se conecta a Jaime, tornando-se um só e tendo como principal objetivo protegê-lo. Tudo bem que poderia ser melhor explorada a origem do animal, já que no filme é apenas dito que o tal escaravelho veio do espaço. O traje é estiloso apesar de ter suas fraquezas. E a história rende ótimas cenas de conversa entre o Jaime e o besouro.
Talvez o maior erro do roteiro seja a falta de um vilão mais “pessoal” com o próprio Jaime. Na trama este cargo é ocupado pela Victoria Kord, tia da personagem de Marquezine e a gananciosa e zero empática dona da Kord Industries. Kord é bem caricata e pouco desenvolvida, sendo basicamente… malvada. Analisando por esse lado, Besouro Azul remete bastante aos filmes do Homem de Ferro, onde temos a Stark Industries, que fabricava armas até que Tony Stark volta para casa após ser sequestrado e decide cessar a produção bélica, um pouco similar à personagem de Marquezine. Além disso, a ideia de Victoria é criar um exército com os poderes do escaravelho, algo meio parecido com o vilão de Homem de Ferro 2. Além da empresária, há seu capanga que, assim como ela, é pouco desenvolvido: tem um passado traumático que só é relembrado em determinado ponto da projeção.
Fora os dois vilões, o restante dos personagens são bem interessantes e cheios de personalidade – em principal Milagro, Jaime, Jenny Kord (a personagem de Bruna Marquezine) e Rudy (o tio de Reyes, interpretado por George Lopez). Os atores também fazem um ótimo trabalho, todos bem dentro da premissa do filme. Bruna é um verdadeiro alívio, tem protagonismo e vai além do interesse amoroso de Jaime. Sua Jenny é forte, inteligente e muito determinada e talvez em futuros filmes acabe ganhando mais destaque.
Os efeitos especiais deixam a desejar em alguns momentos. A ambientação é um dos piores quesitos: não existe grande esforço para fazer aquela cidade parecer real. Nos momentos internos passados na casa dos Reyes a situação melhora, mas quando se vê a cidade com prédios e arranha-céus, a sensação é a de artificialidade. Sobre as cenas de ação, existem sequências interessantes mas nada muito fora do comum, trazendo muito daquilo que já estamos acostumados em obras do gênero.Besouro Azul tem pontos positivos, porém ele peca ao não explorar a fundo em nenhum dos aspectos mais diretos do protagonista (poderes, representação familiar). Acaba por apostar no seguro, em uma fórmula genérica e já batida de filmes de super-herói. Isso já vimos um monte nas telas.
A aparente fragilidade de Milton Nascimento ao fim de seu último show esconde um detalhe marcante: foi o cantor e compositor carioca/mineiro/universal que escolheu o seu momento de sair dos palcos. Não foi uma fatalidade. Não foi a morte. Claro, alguém mais pragmático dirá – com razão – que Milton já não tem a mesma voz e a mesma força de antes, mas, o fato de sair numa última excursão pelo país – e exterior – com uma ótima banda e um repertório que passa a maior parte de sua carreira a limpo, é, repito, um ato de força e fé. Este concerto no Mineirão lotado é um dos eventos que proporcionam ao espectador comum ver a História acontecendo diante de seus olhos. Não importa se a pessoa esteve lá ou viu a transmissão ao vivo do evento pelo Globoplay. Este 13 de novembro de 2022 foi o dia em que Milton, com 80 anos de idade recém-completados, pisou pela última vez num palco e nada mais pode ser feito ou dito.
Não cabe aqui qualquer crítica à forma vocal de um artista que teve na voz a sua principal marca. Se o registro outrora vigoroso e pungente emocionava a tantos, hoje é a prova de um esforço hercúleo que, se causa estranheza inicial, reveste de emoção inédita uma série de canções que nos acompanham há tempos. Ouvir, por exemplo, “Amor de Índio”, que Milton registrou ao vivo em 1986, em seu álbum A Barca dos Amantes, com a voz atual dá ao conto de amor e vivência uma dimensão além da vida humana, talvez a interpretação mais justa para tal obra. Assim acontece com várias outras canções. “Volver a los 17”, “Morro Velho”, “Tudo que Você Podia Ser”, “Cais”, “Ponta de Areia”, todas passam a ser entoadas por um homem-entidade que parece ter, enfim, testemunhado tudo o que ele mesmo podia ser. E foi.
Milton consegue algo muito sincero e sério na arte de cantar e se apresentar para um público: morrer estando vivo. Sua persona artística faz uma despedida justa, intensa e revestida de sentimento, mas que não tem um traço único de tristeza. É uma saída triunfal, magnânima, generosa, superior. Digna de sua obra.
E, por falar em obra, o showA Última Sessão de Música, em sua última apresentação, trouxe um set list praticamente perfeito. Foi um registro cronológico dos maiores e mais significativos hits da carreira de Milton Nascimento, com espaço para canções pouco lembradas (“Outono”, “Vera Cruz”) mas que fez desfilar colossos como “Maria, Maria”, “Para Lennon e McCartney”, “San Vicente”, “Nos Bailes da Vida”, “Canção da América”. Todos em versões únicas, proporcionadas pelo que Milton é hoje.
Teve espaço para convidados queridos. Lô Borges, Beto Guedes, Toninho Horta e Wagner Tiso representaram o núcleo do Clube da Esquina. Samuel Rosa, com quem Milton cantou uma rara versão de “O Trem Azul”, veio como um representante contemporâneo da música de Minas Gerais. Nelson Angelo surgiu para cantar sua canção “Fazenda”. Teve espaço também para um bloco em homenagem à dupla Pena Branca & Xavantinho, marcada pela passagem de “O Cio da Terra” e “Calix Bento”, que formou um belo medley com “Peixinhos do Mar” e “Cuitelinho”.
Para o bis, Milton reservou “Coração de Estudante”, dele e de Wagner Tiso, que voltou ao palco para uma versão piano e voz. Teve ainda “Travessia” e o fecho emocionante com “Encontros e Despedidas”. É digna de nota a presença do vocalista Zé Ibarra ao longo do show, como uma espécie de alívio vocal para os limites de Milton, funcionando de contraponto para as notas altas, que o velho Bituca já não consegue alcançar.
No fim da última sessão de música com Milton Nascimento, o público teve a certeza de ter feito parte de uma celebração rara, delicada, mas forte simultaneamente. É um desses eventos que ainda irão ecoar por muito tempo e que, pleno 2022, nos dão a chance de reencontrar nosso caminho para um Brasil que nos acolhe e com o qual podemos sonhar de olhos abertos.
Obrigado, Bituca.
Set list: “Os Tambores de Minas”, “Ponta de Areia”, “Catavento”, “Canção do Sal”, “Morro Velho”, “Outubro”, “Amor de Índio”, “Vera Cruz”, “Pai Grande”, “Que Bom Amigo”, “Para Lennon e McCartney”, “Um Girassol da Cor de seu Cabelo”, “Cais”, “Tudo que Você Podia Ser”, “San Vicente”, “Clube da Esquina 2”, “Lília”, “Nada Será Como Antes”, “A Última Sessão de Música”, “Fé Cega, Faca Amolada”, “Paula e Bebeto”, “Volver a los 17”, “O Trem Azul”, “Calix Bento”, “Peixinhos do Mar”, “Cuitelinho”, “Canção da América”, “Caçador de Mim”, “Nos Bailes da Vida”, “Tema de Tostão”, “Fazenda”, “Bola de Meia, Bola de Gude” e “Maria, Maria”. Bis: “Coração de Estudante”, “Travessia” e “Encontros e Despedidas”.
Homem-Morcego volta às telas interpretado por Robert Pattinson e persegue Pinguim e Charada ainda em seu início de carreira mascarada
Textos por Andrizy Bento e Leonardo Andreiko
Fotos: Warner/Divulgação
Lendária criação dos quadrinistas Bob Kane e Bill Finger para a editora DC Comics no longínquo ano de 1939, Batman é daqueles personagens que sobrevivem ao teste do tempo, constituindo seu próprio multiverso – ou, melhor, o seu batverso. Não à toa, já passou por reboots em sua mídia de origem, os quadrinhos, sendo reimaginado por roteiristas e desenhistas em outros universos e linhas temporais alternativas; além de já ter ganhado inúmeras releituras e adaptações para formatos distintos, como filmes, séries, jogos e animações.
No que diz respeito às adaptações live action, podemos citar uma lista respeitável de atores que já vestiram o manto do morcego, alguns mais bem sucedidos do que outros: Adam West, Michael Keaton, Val Kilmer, George Clooney, Christian Bale, Ben Affleck e Robert Pattinson – este, o atual, que está no filme Batman (The Batman, EUA, 2022 – Warner) que chega oficialmente aos cinemas na próxima quinta-feira, dia 3 de março, mas já tem sessões pagas de pré-estreia nesta terça de carnaval. E apesar do descrédito dos detratores e do receio dos mais céticos, o ator britânico é um ótimo Batman. Aliás, está melhor como Batman do que como Bruce Wayne… Mas Pattinson na pele do Homem-Morcego está longe de ser o único destaque do longa de Matt Reeves.
O diretor se pronunciou diversas vezes em entrevistas, não apenas sobre quais histórias estreladas pelo herói serviram de base para composição de seu filme, como também sobre quais seriam suas grandes influências no território cinematográfico. Reeves é um grande fã de Dennis O’Neil, um dos roteiristas fundamentais de Batman nos quadrinhos, especialmente quando ele estava à frente da fase “detetive” do herói. Além disso, o trabalho deste é marcado pelo caráter mais sombrio conferido ao personagem e por tratar de temáticas mais realistas, cotidianas e urbanas em suas tramas. Além da era O’Neil, as clássicas histórias Ano Um, Terra Um e O Longo Dia das Bruxas (com especial destaque para a última) também serviram de referência para Reeves compor seu Batman, bem como os filmes French Connection, Taxi Driver e longas noir em geral produzidos na década de 1970 – não podendo ser esquecidos os trabalhos mais antigos de David Fincher. Para completar, Reeves é um excelente realizador e soube equilibrar elementos narrativos e referências visuais de cinema e quadrinhos, jamais se distanciando brutalmente de nenhuma das duas linguagens, dosando-as com impressionante destreza na tela. O resultado é um feliz encontro de um filme policial no melhor estilo noir com os melhores anos do Morcego nos quadrinhos.
Batman é um longo conto do Morcego de aproximadamente três horas de duração. Muito mais um filme sobre o herói encapuzado do que sobre o homem por trás da máscara, Bruce Wayne, o longa dispensa o caráter introdutório, trazendo o vigilante noturno já atuante em Gotham City desde as sequências iniciais, mas ainda em começo de carreira. Não, não temos a já saturada cena da execução dos pais de Bruce na saída do teatro ou do cinema (já exaustivamente utilizada em outras adaptações) e nem o herdeiro de Thomas e Martha Wayne desenvolvendo seu uniforme e seus famosos bat-apetrechos. O roteiro parte do princípio de que o espectador disposto a conferir o filme já sabe o básico da essência do Cavaleiro das Trevas, conhecendo de antemão alguns dos traços de sua personalidade e elementos mais característicos de sua mitologia.
Com uma atmosfera realista, soturna, repleta de embates violentos que abrem mão de coreografias pomposas e modesto no que diz respeito a pirotecnias, Batman traz uma proposta bem diferente dos filmes de super-heróis da atualidade, não se preocupando em inserir momentos de humor e leveza em sua narrativa ou abusar de cores vibrantes e um visual estilizado para fisgar um público mais abrangente. Não que o longa-metragem seja conduzido com mão pesada ou projete-se como altamente denso, complexo e maduro tal qual Coringa de Todd Phillips. Trata-se de um ótimo entretenimento, com argumento interessante e assertivo ao harmonizar o drama e a ação. Confesso, ainda, que em meio a tantos longas de super-heróis que soam por demais episódicos, passando a impressão de serem grandes teasers para um filme-evento posterior, é muito bom ver uma produção do gênero que se fecha em si mesma e que, por mais que tenha sequências futuramente, ainda poderá ser vista como um filme independente da cronologia na qual está inserido. Temos uma trama com início, meio e fim. Como eram os filmes antigamente.
Dentre as cenas e aspectos marcantes ofertados pelo novo longa do Homem-Morcego, temos a sequência inicial, na qual Charada mira em seu primeiro alvo; a perseguição automobilística envolvendo Batman e Pinguim; o fato de o bom-mocismo de Thomas Wayne ser questionado, mostrando o personagem como um sujeito passível de falhas irreparáveis; e a evolução e o amadurecimento de Bruce como o misterioso herói mascarado, que começa a compreender as linhas borradas entre a vingança e a justiça. Reeves é perspicaz ao trabalhar o conceito de fumaça e espelhos nessa história de Batman. Visualmente, além de conferir uma aura soturna funcional à trama e ao estilo do personagem, a ideia de optar por cenas bastante sombreadas e imagens, muitas vezes, turvas e nevoentas ajudam a atenuar a violência – uma decisão inteligente no que concerne a manter a classificação indicativa no PG-13 (equivalente ao 14 anos no Brasil).
Todo o elenco está muito bem, composto por nomes que emprestam suas carismáticas estampas a personagens emblemáticos dos quadrinhos e apresentam uma química explosiva na tela. Além de Pattinson, Zoë Kravitz é uma das melhores em cena, conferindo a sagacidade e a sensualidade exata à sua Selina Kyle. Colin Farrell (irreconhecível na foto acima!) e Paul Dano surgem se divertindo além da conta nos papéis de Pinguim e Charada, respectivamente. Para completar, temos Jeffrey Wright cumprindo direitinho o dever de casa na pele do incorruptível Jim Gordon. Andy Serkis como o mordomo e tutor de Bruce, Alfred Pennyworth, e John Turturro, interpretando Carmine Falcone, completam o elenco estelar.
Infelizmente, a produção não é desprovida de deméritos. Ótima ideia a de investir em uma trama detetivesca que remete às origens do personagem nos quadrinhos como um grande investigador. O problema é que nem a resolução da charada chega a surpreender e nem Bruce Wayne/Batman se mostra assim tão dotado do brilhantismo e intelecto que se espera daquele que em sua mídia original foi considerado um dos maiores detetives do mundo.
A caracterização de Pattinson como Bruce Wayne também é bastante discutível. Primeiro porque o visual o aproxima mais de Terry McGinnis (o Batman do futuro) do que do Wayne clássico. E, pelo menos neste filme, não vemos Robert incorporar aquela figura charmosa, arrogante, sedutora e orgulhosamente bilionária tão típica de Bruce quando não está trajando seu uniforme e combatendo o crime pelas ruas de Gotham. Na verdade, em Batman, Bruce se mostra bem desinteressado de relações pessoais e eventos sociais, mantendo uma postura mais arredia e reservada, nem mesmo contribuindo como filantropo em sua decadente cidade natal. Mais melancólico do que de costume, o famoso órfão de Gotham alçado ao patamar de celebridade devido à herança e sangue, é uma lacuna não preenchida neste filme. Entendo que, com um ator no auge dos 35 anos, a ideia era que Pattinson passasse a impressão de um pobre garoto rico, imaturo e aborrecido e que jamais pudesse passar pela cabeça de alguém que ele seria capaz de se converter em Batman. Ainda que por vias tortas, Batman acerta nesse quesito.
No geral, o filme se distancia bastante da concepção de Christopher Nolan com seu O Cavaleiro das Trevas. O problema é que o que aproxima as produções é justamente um de seus fatores negativos: o excesso de explicações e didatismos. Por vezes, vemos os personagens narrando aquilo que já estamos vendo acontecer na tela. Outra característica incômoda é a forma como o protagonista se movimenta, especialmente em cenas de crime – sempre de modo muito lento e solene. Ok, pode ser que o peso do traje contribua para isso, o que seria mais um exemplo de que Reeves erra tentando acertar (!!!). Além disso, a direção de fotografia abusa de close-ups e planos detalhe, o que torna algumas cenas um tanto cansativas.
A produção, entretanto, é composta de mais acertos do que erros. A quebra de expectativa ao finalizar uma cena exuberante de voo do Homem-Morcego com um pequeno acidente só nos faz ter mais simpatia tanto pelo personagem quanto por seu realizador. Para os fãs de filmes de ação, as emblemáticas sequências de perseguições em alta velocidade, explosões e lutas violentas estão todas lá, intercaladas por diálogos objetivos e afiados, excelentes dinâmicas entre os atores e momentos dramáticos que passam bem distante de qualquer pieguice. A despeito de suas quase três horas, o longa jamais perde o ritmo e é exemplar em manter o interesse do espectador. Para completar, a trilha sonora combina Nirvana com o tema musical do herói que nos faz lembrar de imediato da popular série animada do Batman, produzida no início dos anos 1990 e exibida por aqui na TV aberta. Outro enorme acerto em uma lista de mais prós do que contras.
Batman é, sim, um grande filme. Talvez não seja o melhor do Cavaleiro das Trevas, mas merece um lugar de destaque na lista das adaptações cinematográficas de quadrinhos de super-heróis. (AB)
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É seguro dizer que estamos falando de um dos filmes mais aguardados dos últimos anos. Batman (The Batman, EUA, 2022 – Warner) foi anunciado por Ben Affleck quando ele ainda assumia o manto do Homem-Morcego e sofreu muitas reviravoltas até parar nas mãos de Matt Reeves (diretor dos capítulos 2 e 3 da nova saga de O Planeta dos Macacos). Seu herói, não mais Affleck, seria Robert Pattinson, popularmente conhecido como o vampiro Edward, de Crepúsculo, mas com maior e maior reconhecimento com o passar dos anos.
Reeves, além de dirigir o longa, escreveu seu roteiro com Peter Craig. Nele, o vigilante mascarado investiga uma série de assassinatos brutais cometidos pelo Charada (Paul Dano), que também se esconde por trás de uma máscara e deixa mensagens crípticas para o protagonista em cada cena do crime. Esse Batman, então, é mais detetive que lutador – o mistério é parte essencial de sua trama. Mais do que um mero filme de super-herói como os mais de trinta que vimos nas últimas décadas, Batman é um bom thriller.
Como tal, ele se estabelece na tênue linha entre tensão e medo. A angústia crescente dos momentos que podem acontecer, não dos que acontecem. Ao mostrar o Charada (foto acima) em ação antes de explicá-lo à audiência, ocupando as sombras como nosso herói, Matt Reeves constrói um suspense atemorizante, manipulando nossas expectativas. Se Batman emerge à tela nas sombras e as habita, seu antagonista faz o mesmo. Não há descanso, portanto, em um filme que se passa majoritariamente na noite de Gotham.
Parte central da mitologia do Homem-Morcego, a cidade é um grande tema de debate nas inúmeras adaptações dos quadrinhos à tela. Com o controle criativo de praxe da DC nos últimos anos, o diretor articula uma Gotham que não peca pelo realismo nova-iorquino como a que Christopher Nolan construiu, mas também não deixa de fundar sua ação, horror e mistérios sobre uma selva de pedra escura, suja e perigosamente verossímil. As luzes transformam a jornada num noir, alçando as composições arrojadas e envolventes de Reeves. Em mais um ótimo trabalho, o diretor de fotografia Greig Fraser (do novo Duna) brilha com dinamismo e inventividade. Seu uso de lampejos, chiaroscuro e, principalmente, do absoluto “sangrar” da tela em vermelho fazem desta uma abordagem requintada do personagem mascarado. Há um charme mórbido em todas as ambientações da cidade, muito disso causado pelo belo trabalho conjunto de direção e fotografia.
Inclusive, o diretor, que vem demonstrando sua sobriedade e controle nos últimos O Planeta dos Macacos, não comete o terrível erro esterilizante que assola os filmes de super-herói das últimas décadas. Sem enquadramentos que gritam aos quatro ventos “isso aqui é tela verde!”, Reeves faz da linguagem audiovisual sua maior aliada na construção simbológica da história. O espectador lembra constantemente o peso alegórico das personagens nas posturas, silhuetas e interações.
Contudo, longe de uma abordagem mais contida e meramente reflexiva das tramas do vigilante, aqui a ação também tem peso. Quem luta respira, sente a porrada e se machuca. Parte desse êxito se dá pelo controle do diretor da câmera, que não se move de cá pra lá sem nexo, entrecortando takes tremidos como se fossem atirados num liquidificador. A outra parte vem da incrível corporalidade de Pattinson e Zoë Kravitz (foto acima), que parecem habitar os corpos de suas personagens há muitos e muitos anos.
No caso do Homem-Morcego, se essa é uma versão mais garota, enraivecida e dotada de um moralismo ainda ancorado na decadente figura de seu pai “cidadão de bem”, não poderia ser diferente a caracterização de um Bruce Wayne claramente perturbado, de poucas aparições e palavras. A atuação de Pattinson é estelar, capaz de construir com o olhar angústia tamanha em seus silêncios como Bruce, temores tais em seus silêncios enquanto Batman – ou, melhor, Vingança.
Enquanto isso, Kravitz propõe uma Selina Kyle diferente das que já vimos em tela – e seu arco distancia-se de uma egoísta ladra rumo a uma interpretação mais compreensiva e bondosa com a futura Mulher-Gato. A atriz é a âncora emocional da relação entre Batman e a anti-heroína. Sendo assim, carrega com primazia a intensidade dramática dessas cenas e sequências.
Muito bem pode ser tido de todo o elenco coadjuvante, mas cabe ainda estender aplausos ao trabalho aterrorizante de Paul Dano. Seu vilão opera pelo medo e, mesmo com a veia terrorista, afasta-se muito do caos pelo caos que consagrou o eterno Coringa de Heath Ledger. Sua aura justiceira e obsessão pela verdade por trás da propaganda, que o tornam uma figura com seguidores (para manter a trama mais vaga possível), são, talvez, as dimensões mais “reais” de todo esse conflito.
Matt Reeves é sutil em localizar a trama em uma série de discussões bastante atuais sobre os perigos da era da informação. Tematicamente, Batman trata (entre outras coisas, é claro) da transformação das redes sociais e fóruns em armas psicológicas de terror, do “culto” à violência enquanto meio para um fim supostamente puro e, ainda nesse campo da moral, as implicações de vingança e justiça que pautam a maneira com que Bruce Wayne vê sua atividade como o Batman com o passar da trama.
Muito poderia ser dito desses e outros conflitos que se traduzem do universo fílmico para o universo real, ilustrando a potência do cinema, bem como de toda arte em geral, em tecer comentários sociais que se fazem eficientes dentro de um discurso maior. O filme, para muito além da adaptação, é um thriller com muita solidez, tensão e suspense. Sem esquecer a ação, a montagem de William Hoy e Tyler Nelson estabelece um ritmo engajante e convidativo nas quase três horas de duração do longa-metragem. Se é verdade que há muita coisa acontecendo em Batman, definir um tempo de tela tão extenso confere o certo respiro a cada uma das partes da complexa e intrincada narrativa.
Resta afirmar que essa versão do Homem-Morcego me parece uma das mais concretas e monumentais da personagem. O mesmo pode ser dito da interpretação bastante distinta de Wayne sem sua máscara. Com uma densa e crua atmosfera, Matt Reeves é capaz de conferir a intensidade temática dos conflitos de terror e máfia sem desvincular Batman da verve criativa do cinema. (LA)
A possibilidade do espectador comandar os rumos da trama é justamente o que enfraquece o longa da cultuada série britânica
Texto por Abonico R. Smith
Foto: Netflix/Divulgação
Você pagaria ingresso para entrar no Louvre e pintar o famoso e enigmático sorriso de Mona Lisa em um quadrado branco colocado no rosto dela especialmente para conectar você a Leonardo da Vinci? Ou, então, imagine que, ao inscrever a sua música “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores” no Festival Internacional da Canção de 1968, o cantor e compositor Geraldo Vandré apresentasse somente o refrão completo e a melodia das estrofes, deixando para que completassem a letra as pessoas que estavam na plateia daquele superlotado ginásio do Maracanãzinho, no Rio de Janeiro.
São apenas dois exemplos, bem tosos aliás. Mas podem representar muitas reflexões acerca da “grande novidade” que o recém-lançado longa-metragem Black Mirror: Bandersnatch (EUA/Reino Unido, 2018 – Netflix) propõe. Com duração que pode variar até noventa minutos, o filme permite que você seja o roteirista principal da produção e decida os rumos que o protagonista Stefan Butler (Fionn Whitehead, uma das revelações do jovem elenco de Dunkirk) vai tomando no decorrer da história, que mostra o que acontece a ele durante as semanas em que precisa desenvolver um novo jogo, baseado em um livro interativo, para a empresa mais hypada do mundo dos consoles.
A premissa é feita sob encomenda para a massa que embarca na onda do rótulo geek que assola a cultura pop da década. A trama se passa no ano de 1984, em pleno auge dos games 8-bits. A trilha sonora traz pérolas da época como Thompson Twins e Frankie Goes To Hollywood. A nostalgia da década que insiste em nunca terminar impera na ambiência é proposital. Serve como trunfo para pescar os guardiães do manto sagrado das séries e filmes desses tempos de streaming, a grande maioria formada por aqueles que nunca ou muito pouco viveram daquele tempo do qual sentem eternas saudades. E se você pode justamente escolher assistir a todos os capítulos seguidamente, maratonando uma série durante horas, por que não, justamente, interferir naquilo que você está vendo e ter a sensação de ter o controle do jogo nas mãos?
Este é o grande atrativo de Bandersnatch, o primeiro longa-metragem lançado sob a bandeira da série britânica Black Mirror. Projeto encampado pela Netflix – que há duas temporadas é a distribuidora mundial da série – e desenvolvido secretamente durante dois longos anos, o filme oferece cinco finais diferentes e, para se chegar até eles, um trilhão de combinações possíveis para a escolha dos percursos. Uau! Que máximo! O futuro finalmente chegou ao cinema que está ao alcance de suas mãos! A chance de nunca mais ver o mesmo filme repetidamente.
#SQN… Quem realmente achar tudo isso só vai estar assinando o atestado de bobo manipulado por mais uma gigantesca indústria corporativa do ramo do entretenimento. O que a Netflix quer é justamente dar esta falsa impressão de que você se sente conectado à história apresentada e realmente manipula o destino do pobre Stefan, que entra nesta paranoia de não ser mais capaz de controlar suas ações e seu destino para nunca mais sair dela. E mais: chega-se ao ponto de serem feitas piadas que transformam a própria Netflix em um personagem da história ou estarem espalhados easter eggs que remetem a todos os episódios das quatro temporadas anteriores do seriado. “Mas isso é muito Black Mirror!”, muitos certamente pensarão do outro lado – o da realidade – da tela do computador, do celular ou da TV.
Aí perde-se justamente o maior prazer de uma obra de arte. É justamente a passividade do consumidor que permite o encanto, a admiração, a reflexão. Com a existência da interatividade, o autor pode não deixar de ser por completo o autor, mas com certeza o espectador passa a não mais sê-lo para assinar a coautoria. Neste traslado perde-se todo o poder de deixar-se surpreender pela recepção integral do que o autor teria desejado dizer com tudo aquilo. O seu livre-arbítrio de escolher que caminhos tomar, sejas por quais razões forem, destroem todo o fascínio provocativo pela narrativa. O cinema deixa de ser cinema e transforma-se numa mera brincadeira de videogame.
Talvez seja mesmo este um caminho irreversível que resulta da cultura de convergência das mídias, tão venerado pelas novas gerações pouquíssimo afeitas a manter as tradições mais velhas. Mas enquanto o mundo não muda de forma tão radical assim é bom não ir se enganando: não é a vida que está virando Black Mirror, mas, sim, é a velha matrix que continua no poder, desta vez querendo fazer com que, agora, você acredite deter o controle do jogo.