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Marighella

História do militante revolucionário que lutava contra a ditadura militar brasileira chega, enfim, aos nossos cinemas

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Paris Filmes/Divulgação

Embora tenha sido jogado ao mundo em fevereiro de 2019 durante o Festival de Berlim, Marighella ainda não viu a luz do dia em telas brasileiras. Porém, esse atraso não é tão controverso quanto os nomes que assinam a produção.

É notória e assumida a cooperação da Rede Globo com as forças golpistas desde 1964 até o final da ditadura militar, o que justifica a surpresa da comunidade cinéfila ao saber que sua produtora (Globo Filmes) financiou um filme sobre o inimigo número um do Brasil no período. Soa estranho, não?

Contudo, Marighella (Brasil, 2019 – Paris Filmes) é um filme cuja antecipação vai muito além dessa conjuntura, que pode ser frutiferamente discutida em outro momento. Filme de estreia de Wagner Moura na direção, ele é escrito pelo consagrado ator e por Felipe Braga, adaptando o livro de Mário Magalhães sobre o político brasileiro. Sua narrativa aborda a participação do deputado constituinte na formação e queda da ALN, célula revolucionária conhecida pela luta armada durante a ditadura militar.

Mas Moura e Braga optam por apresentar uma narrativa um tanto mais horizontal do que se espera de um filme biográfico, dando espaço para todos os personagens que revolvem Carlos Marighella (Seu Jorge), um pequeno grupo de jovens comunistas e seu parceiro de longa data, Branco (Luis Carlos Vasconcellos). Se, por um lado, a decisão permite abordar temas mais amplos e estabelecer um discurso que ultrapassa o personalismo, acaba por impedir a investigação profunda da história e psique do personagem-título.

Como consequência, Marighella é descaracterizado, pois o conhecemos somente como guerrilheiro expulso do PCB, ignorando (pois há pouca ou nenhuma menção no filme) seu passado como deputado constituinte e também preso político da era Vargas. Da mesma forma, o delegado responsável por sua caça e morte, Sérgio Fleury, é substituído por um personagem fictício, interpretado por Bruno Gagliasso. Assim também ocorre com os guerrilheiros que integram a ALN.

Limitado pelo descompasso histórico, o longa decide retratar uma organização revolucionária empregando uma lógica antirrevolucionária – um filme que boicota seu protagonista. Com a angústia da Aliança em primeiro plano, o que felizmente permite que o filme não descambe em mera ação pela ação, Moura mantém a esperança dos guerrilheiros em evidência, a despeito de toda a desgraça e traição da narrativa. 

Em um desespero constante, o núcleo de guerrilheiros não faz mais que cair, mesmo que, cena após cena, os diálogos de Braga e Moura insistam em frases de efeito e chavões cafonas e esperançosos que reduzem os atos da célula a um ideologismo míope. É, inclusive, escabrosa (e aqui busco dar o mínimo de spoilers possível, mas caso prefira entrar na experiência sem saber nada, pule este parágrafo agora) a divisão narrativa que ocorre após uma emboscada matar dois colegas de Marighella. Na cena, o protagonista encara diretamente a câmera – em clara referência do cinema de Spike Lee – e assume que “se é terrorismo que eles querem, é terrorismo que terão”. As ações que seguem pouco justificam a cena, tornando-a dispensável, embora o efeito de “extremizar” a atuação das personagens seja muito bem telegrafada.

Este não é o único aceno à filmografia de Lee, que parece compor junto à caótica câmera na mão de Fernando Meirelles o rol de referências de Wagner Moura, que não consegue imprimir uma forte autoralidade na obra. É evidente que a cadência que o diretor busca estabelecer tem a intenção de apresentar a figura histórica a uma audiência ampla, mas acaba por gerar problemas de ritmo que se originam na quantidade elevada de arcos narrativos – cuja maioria funciona bem e entrega o peso emocional pretendido, mas rapidamente perde impacto por já termos de lidar com outra linha narrativa.

De projeção polêmica, Marighella é um retrato da opressão militar a um movimento revolucionário que acaba por reiterar a atmosfera antirrevolucionária e, principalmente, contrária à luta armada de seus protagonistas. Tem bons aspectos técnicos, envolvente trilha sonora e atuações potentes (a despeito da insistência de Seu Jorge de entoar cada sílaba de maneira plástica e novelesca), mas entrelaça suas partes com um pano opaco que, naturalmente, levanta dúvidas sobre seu teor biográfico.

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O Juízo

Thriller psicológico brasileiro desperdiça ótimos nomes em seu pequeno elenco com sérias lacunas em sua linguagem

ojuizo2019

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Paris Filmes/Divulgação

Nos últimos anos, o terror brasileiro tem ganhado projeção nos circuitos de festivais mundo afora. Junta-se ao coro um já estabelecido diretor, Andrucha Waddington, responsável por alguns documentários sobre artistas da MPB mais diversas colaborações com Fernanda Torres, sua esposa, e Fernanda Montenegro, sua sogra. Em O Juízo (Brasil, 2019 – Paris Filmes), estas parcerias se repetem.

O roteiro, segundo assinado por Torres em sua carreira, gira em torno de uma família que recém se mudou para a Casa Grande herdada por Augusto (Felipe Camargo). Além dele, Tereza (Carol Castro) e seu filho Marinho (Joaquim Torres Waddington) devem adaptar-se à nova casa, sem luz e isolada da cidade mais próxima. No entanto, a família é ameaçada pelos espíritos de um escravo (Criolo) e sua filha (Kênia Bárbara), assassinados por um antepassado de Augusto (por problemas temporais da narrativa não fica claro se é seu avô, constantemente citado ao longo do filme, ou alguma geração anterior). Aqui, Andrucha e Torres desenham um thriller psicológico, claramente inspirados em clássicos de Stephen King, como O Iluminado e Cemitério Maldito, porém sem sucesso.

Este é, sem dúvidas, um filme problemático. Não necessariamente em seu tema, mas em seus aspectos mais técnicos, desde a direção e o roteiro à atuação do pequeno elenco que compõe o longa. A integração desses problemas, no entanto, dificulta uma análise fragmentada destes aspectos.

Explico. O Juízo abre desenhando perguntas que jamais são respondidas. A principal delas, que está presente em todo filme, é “quem são esses personagens?”. A segunda, de igual importância, é “por que estes personagens estão se mudando para esta casa, sem luz e completamente isolada de sua aparente vida anterior?”.  Nenhuma dessas questões é satisfatoriamente solucionada, o que prejudica a imersão do espectador na história. Como vamos nos importar com o que ocorre com personagens que mal conhecemos, muito menos entendemos o porquê de estarem nessa situação? As tentativas, propostas pelo roteiro, são insuficientes, mas a direção parece estar igualmente despreocupada com a imersão do público. Há, aqui, a ausência de elementos fundamentais do cinema, uma fundação para a construção do filme.

Waddington tenta estabelecer suspense, principalmente por meio de imagens estilizadas (estilo não falta nesse filme!), porém nos distancia de seus personagens, já que não há uma conexão primordial ao funcionamento de qualquer filme (a saber: entre personagens e espectador). Ainda, não há uma definição espacial-geográfica. Como exemplo, não conhecemos pontos fundamentais da estrada que liga a cidade à casa ou até mesmo os ambientes internos desta casa. A magnitude opressora da arquitetura do Brasil escravocrata é minimizada pelo não-estabelecimento dessa magnitude. Da mesma forma, pontos importantes ao suspense não são elucidados. Surgem elementos de cena aqui e ali e o arco da loucura gradual de Augusto, o único na trama, é pouco explorado pela direção.

Outro ponto fraco é a condução do elenco que conta com nomes de peso, como Fernanda Montenegro e Lima Duarte. Ela é restrita a uma dicção novelesca – aquela que preocupa-se em verbalizar cada sílaba com perfeição, distante da língua falada – e esta destitui cada personagem de uma ferramenta importante de sua construção, a fonética particular a cada pessoa. Com exceção dos dois veteraníssimos atores citados acima, que cumprem um bom trabalho, na medida do possível, o elenco do longa sofre mais com esse imobilismo. Destacam-se Criolo e Joaquim Torres Waddington. Ambos ainda têm uma carreira curta dentro do cinema mas fazem personagens unidimensionais e monótonos. Carol Castro, que ganha uma importância cada vez maior com o andar do filme, visivelmente entrega uma Tereza profunda, porém sua atuação é amputada pelo conjunto da obra.

Ainda, como dito anteriormente, O Juízo é bastante estilizado, com planos muito bonitos e, em questão de iluminação, muito inventivos. A fotografia de Azul Serra é, por vezes, escura demais, mas manipula as sombras do longa com competência, flertando, ao mesmo tempo, com o chiaroscuro (forte contraste entre o claro e o escuro, marca registrada do cinema noir) e a iluminação com luz natural.

O Juízo é um filme de suspense que é ineficaz. Dá a impressão de que seus criadores compreendem o material – que pode ser interessante – com clareza e profundidade, porém foram incapazes de transmitir tal densidade ao produto final, que sofre com lacunas seríssimas em sua linguagem. Deixa no espectador a estranha sensação de que a parte mais importante da história está faltando.