Andy Rourke, baixista da icônica banda que consolidou o termo indie rock em terras britânicas, morre aos 59 anos de idade
Da esq. à dir.: Morrissey, Johnny Marr, Mike Joyce e Andy Rourke
Texto por Abonico Smith
Foto: Divulgação/Rough Trade
Na manhã desta sexta-feira 19 de maio foi anunciado o falecimento do músico e DJ inglês Andy Rourke, mais conhecido pelo trabalho como baixista do grupo Smiths nos anos 1980. Ele tinha 59 anos e enfrentou uma longa batalha contra um câncer no pâncreas.
Quem divulgou a notícia foi o ex-companheiro de banda, o guitarrista Johnny Marr. Ele o definiu como uma alma boa e gentil, além de instrumentista talentoso. Ao lado de Johnny, o vocalista Morrissey e o baterista Mike Joyce, Rouke integrou o quarteto que revolucionou o rock britânico entre 1982 e 1987. Em 1996, também já enfrentando o vício em heroína, Andy, em conjunto com Mike, processou a dupla de compositores Morrissey e Marr, em busca de ganhos a mais nos direitos autorais sobre a obra composta e gravada pela banda. Um acordo judicial foi feito para ação ser encerrada. A amizade com Marr foi refeita. Entretanto, o frontman nunca mais o desculpou pela atitude.
Aobra-primados Smiths é o álbum The Queen Is Dead, de 1986. Entre os hits deixados pela banda estão as faixas “The Boy With The Thorn In His Side”, “Bigmouth Strikes Again”, “Ask”, “Panic”, “There Is a Light That Never Goes Out”, “Shoplifters Of The World Unite”, “Hand In Glove” e “How Soon Is Now”. A marca registrada impressa por Rourke nos arranjos da banda eram as linhas de baixo extremamente dançantes, que junto com as batidas de Joyce, formavam uma textura rítmica irresístivel para as combinações da literatura rebuscada em forma de versos dramáticos desenhada por Morrissey e os dedilhados com um pezinho no floreio psicodélico nas seis cordas de Marr.
Após o término da banda, Andy participou da gravação de algumas canções da carreira solo inicial de Morrissey. Também tocou com Pretenders, Badly Drawn Boy, Ian Brown e Moondog One (que incluía músicos que passaram por Smiths e Oasis). Em 2007 formou o supergrupo de baixistas Freebass, ao lado de Peter Hook (New Order) e Gary Mounfield (Stone Roses). Logo depois mudou-se para Nova York, onde passou a trabalhar como DJ de rádio e pistas de nightclubs. Foi, inclusive como DJ, que veio ao Brasil em novembro de 2008, que veio ao Brasil (mais especificamente a cidade de Curitiba), onde lançou a coletânea Hang The DJ (refrão da letra de “Panic” que batizou uma tradicional festa que era realizada no histórico e hoje extinto clube noturno Vox). Seis anos depois, retornou à capital paranaense para estrelar outra noite na pista de dança do Vox. E também foi em Nova York, ao lado de Ole Koretsky (com quem discotecava em dupla nas noites, sob a alcunha de Jetlag) e Dolores O´Riorden (vocalista dos Cranberries, também já falecida), que ele criou a banda D.A.R.K., que lançou um álbum chamado em 2016.
Darren Aronofosky volta a incomodar com um espetacular Brendan Fraser como um professor em desenfreada busca pela não existência
Texto por Taís Zago
Foto: Califórnia Filmes/Divulgação
Samuel D. Hunter escreveu A Baleia tendo sua própria vida e trajetória como inspiração. Nascido em Moscow, Idaho, ele foi compelido a se assumir gay já na adolescência, sofreu com a homofobia provinciana e suas mazelas emocionais refletiram em um ganho rápido de peso durante os anos de universidade. Então, Samuel cria em A Baleia um “e se…” caso ele tivesse continuado o caminho que estava posto diante de si. Darren Aronofsky assistiu à peça em uma de suas muitas apresentações e rapidamente vislumbrou no roteiro material rico para um longa-metragem.
Para os que estão familiarizados com a obra cinematográfica de Aronofsky não é segredo algum que o diretor, roteirista e produtor se expressa, não raramente, usando os extremos dos comportamentos humanos. Ora aborda o vício em drogas em obras como A Vida Não É Um Sonho (2000), ora as profundezas da alma humana como em Cisne Negro (2010). Também não é raro em seu oeuvre uma jornada de modificação corporal baseada na busca de aceitação e fama que acaba por deteriorar lentamente seus personagens, como em O Lutador (2008). O ponto convergente de sua obra é uma visão desiludida do humano, o que não raramente nos arrasta a lugares incômodos e quase insuportáveis dentro de nossas cabeças.
Em A Baleia (The Whale, Estados Unidos, 2022 – Califórnia FIlmes), Aronofsky e Hunter trabalharam juntos para transpor dos palcos para o cinema toda a gama de sentimentos de Charlie, interpretado brilhantemente por Brendan Fraser, um homem solitário que vem seguindo um caminho sem volta de deterioração física, emocional e psicológica desde a perda de seu grande amor e companheiro de vida. Charlie é um excelente professor universitário de ensaios literários, ministra suas aulas via EAD, mas nunca permitiu a seus alunos que o vissem pela câmera. Há muito tempo Charlie não sai de casa, não cuida da saúde, não vê muitas pessoas. Uma de suas grandes dores foi o seu afastamento compulsório da filha, na época com 8 anos de idade, por ele ter assumido uma relação homoafetiva com um de seus estudantes. Tudo em Charlie é machucado. Apesar do foco em sua aparência como alegoria para a ruína, a parte mais evidente da tremenda dor que carrega é revelada pelos olhos e pela voz. Ao seu lado, tem a fiel amiga Liz (Hong Chau), uma enfermeira que o acompanha e tenta fazer os seus dias o mais confortável possível sem criticar com clichês e sem esmiuçar os motivos. Liz os conhece bem, mesmo que no fundo ela não queira aceitar o caminho escolhido por ele.
O filme, mesmo antes de ser lançado, gerou uma onda de críticas em relação à patologização da obesidade e do uso das chamadas fat suits (trajes de gordura) que os atores vestem para interpretar pessoas gordas e que muitas vezes já contribuiu para o estigma do grupo com representações em filmes de gosto duvidoso – como O Professor Aloprado (1996), com Eddie Murphy interpretando diversos personagens usando fat suits como uma característica depreciativa, ou em comédias românticas como O Amor É Cego (2001) com Gwyneth Paltrow, onde, bem, o titulo em português é autoexplicativo. Não foram raras as alegações de crueldade e de voyeurismo da obesidade. Aronofsky não é famoso pela sobriedade de suas representações. Ele procura sempre o limite, o que, às vezes, pode beirar uma caricatura de mau gosto. Tanto que A Baleia foi classificada como uma espécie de fat horror por uma ala da crítica.
Sabendo isso de antemão, apelei para um artifício ao assistir A Baleia – reduzi a luminosidade da minha tela, diminuindo assim a importância e o impacto da apelação visual e concentrando apenas nas vozes, e, algumas vezes, nos olhares. E só pude chegar a uma única conclusão: Brendan Fraser é espetacular. Desconectando a caracterização, o que nos resta é uma alma partida de alguém que perdeu completamente o interesse de continuar vivendo. O que sentimos é um ser humano em rota de colisão irremediável e desesperançada. E nesse caminho pouco importa o figurino, a maquiagem ou o método escolhido para se alcançar o objetivo, quer seja ele por meio de drogas, comida, ausência de comida, sexo ou qualquer outra forma de se obter o resultado desejado – a não existência.
A dor de Charlie é profunda demais para ser remediada. O luto diário que mantém pelo seu amor perdido de forma violenta é insuperável, a ausência da filha e a culpa que o ronda de forma repetitiva o oprimem. Charlie tanto ruminou suas dores que se entregou a elas. O ponto de retorno já foi há muito abandonado. A depressão retirou a luz quase que completamente de sua rotina. E é exatamente nessa reta final de sua jornada que ele faz um último esforço desesperado para reatar o contato com sua filha Ellie (Sadie Sink), uma adolescente, que segundo as palavras da própria mãe (Samantha Morton, em aparição relâmpago) é simplesmente uma menina má. Charlie se nega a acreditar nisso. Mesmo em toda a escuridão em que vive, ele ainda nutre a esperança na luz de Ellie. Da mesma forma acolhe Thomas (Ty Simpkins), jovem que escolheu pregar a palavra de Deus como sendo a forma irrefutável da salvação humana.
A Baleia, em parte por ser uma dramaturgia adaptada do teatro, é encenada com poucos personagens, tendo como única locação a casa de Charlie e, na maioria das cenas, apenas sua sala de estar. A fotografia é escura em quase sua totalidade, em parte para cooperar com os esforços de tornar a caracterização física mais verídica, mas também como alegoria da profunda depressão do protagonista. A música segue o mesmo caminho, assim como a edição. Tudo nos conduz para a melancolia e para a desesperança. Aronofsky sendo Aronofsky, portanto.
A Baleia é uma tragédia humana real sendo arrastada para o macabro, uma câmara de vácuo e ausência de luminosidade, um palco trágico, uma jornada de redenção e purificação por meio do sofrimento e do sacrifício. Poderia não ser assim, como aponta Samuel ao falar de seu roteiro, mas foi. Brendan Fraser recebeu o merecidíssimo Oscar de melhor ator, preenchendo todos os requisitos que Hollywood busca: um protagonista que retorna das cinzas após ser massacrado e abandonado pela indústria cinematográfica; um roteiro tenso, teatral e dramático; e um personagem que requer modificações físicas complexas da parte do ator para ser interpretado.
Rivalidade entre ex-amigos como analogia da guerra que dividiu as Irlandas solidifica a verve de humor ácido de cineasta britânico
Texto por Abonico Smith
Foto: Fox/Disney/Divulgação
Antes de entrar na resenha propriamente dita é bom passar algumas informações que podem ajudar no entendimento deste filme que ganhou nove indicações para o Oscar deste ano. Inisherin é uma ilha fictícia, criada para ser o ambiente dessa trama. Banshees são entidades mitológicas que pertencem à categoria das fadas. São do gênero feminino e, segundo a tradição celta, elas costumam aparecer para determinadas pessoas como um aviso de que elas bem em breve receberão uma notícia envolvendo a morte de alguém. A Guerra Civil Irlandesa durou de junho de 1922 a maio de 1923 e foi um conflito entre dois grupos nacionalistas que discordavam quanto ao fato da Irlanda pertencer ao Império Britânico e que marcou a criação do Estado Livre Irlandês como uma entidade autônoma do Reino Unido. Em suma, isto acabou dividindo politicamente a ilha em dois países: a Irlanda do Norte, formada por seis dos 32 condados, que segue, de alguma forma, vinculada à Grã-Bretanha; e a Irlanda (ou Eire), constituída pelas outras 26 regiões rebeldes, A parte “do sul”, bem maior geograficamente, é formada por uma população majoritariamente católica, enquanto a divisão “do norte” se divide até hoje entre o catolicismo e o protestantismo herdado dos vínculos reais. Por fim, o cineasta Martin McDonagh é inglês e descende de irlandeses.
Tudo isto posto e sabido, vira uma delícia assistir a Os Banshees de Inisherin (The Bashees Of Inisherin, Reino Unido/EUA/Irlanda, 2022 – Fox/Disney), mesmo com o crasso erro do título adotado pela distribuidora brasileira (alguém poderia avisar por lá que o artigo definido, na língua portuguesa, obedece ao gênero?). A trama se passa na quase erma e muito verde ilha durante o começo do ano de 1923. Os poucos habitantes de lá não possuem muita perspectiva do que fazer em suas vidas: enquanto ouvem tiros de canhões pipocando na guerra que se desenha bem longe, cuidam de suas casas e animais de estimação enquanto jogam conversa fora e bebem. Ir ao bar para se divertir é programação garantida dia sim, dia também.
O desequilíbrio de toda essa tranquilidade acontece quando Colm Doherty (Brendan Gleeson) decide interromper de modo brusco a longa amizade que tem com Pádraic Súlleabháin (Colin Farrell). Assim, de nada, de uma hora para outro, sem qualquer motivo plausível. Quer dizer, sem qualquer motivo na visão de Pádraic, que fica inconformado com o fato e se abala profundamente com a “tragédia”. A questão é que Pádraic é tido com um grande pária pelo resto da ilha. Ninguém em Inisherin o suporta. Sequer o cumprimentam. Os maiores diálogos de sua vida parecem se resumir a três pessoas: a irmã Siobhán (Kerry Condon), o vizinho Colm e o jovem Dominic Kearney (Barry Keoghan), sempre de comportamento errático e imprevisível e outro que não pensa duas vezes em entornar um copo dentro do organismo por não conseguir aceito em casa pelo pai.
McDonagh é um grande diretor e roteirista que trabalha a passos lentos. A cada meia década, em média, entrega uma obra ao espectador. Já possui quatro longas no currículo. Os dois primeiros, Na Mira do Chefe (2008) e Sete Psicopatas e um Shih Tzu (2012) são primores de comédia de humor ácido, com a verve corrosiva tipicamente inglesa. Martin constrói diálogos que fazem quem está na poltrona do cinema (ou no sofá de casa) gargalhar sem sentir culpa de nada em absoluto. Em plena tragédia, inclusive. Não sobra para ninguém. Este seu estilo foi definitivamente abraçado por Hollywood em Três Anúncios para um Crime (2017). Depois de se destacar em diversos festivais pelo mundo e levar cinco dos oito Bafta ao qual concorreu, o filme ganhou dois de sete Oscar, três de quatro SAG Awards e quatro de seis Globos de Ouro.
Apesar de não abandonar a marca registrada da acidez verborrágica, McDonagh faz de Os Banshees de Inisherin seu filme mais denso e dramático. Este é, na verdade, um filme sobre o luto. Ou melhor, o que vem logo após a perda de algo ou alguém para muita gente: a negação, a raiva, a revolta. Pádraic sente isso ao ser descartado sumariamente por Colm e realizar várias frustradas tentativas de se reconectar ao ex-amigo. Fica remoendo dia após dia o pena bunda até o dia em que um trágico acontecimento desperta uma vontade incontrolável de fazer “justiça” com as próprias mãos e dar o troco a quem lhe abandonara. De melhor amigo, vira o pior inimigo.
O contraponto de Colm diante desta ruptura intempestiva e repentina, porém, é o que torna interessante este “duelo”. O diretor e roteirista utiliza o personagem para fazer uma interessante analogia à guerra das Irlandas, mais especificamente o uso da religiosidade diante de suas atitudes. Colm, que sempre toca violino em casa e no bar, passa a ignorar Pádraic porque acha que perde tempo estando com ele, como está em uma idade mais avançada, quer passar a usar o tempo que lhe resta da vida para compor uma obra musical que lhe dê transcendência à vida. Ou seja, que faça com que sua alma seja lembrada posteriormente que seu corpo deixar este plano. Só que sua luta para atingir a glória e a perfeição deve se tornar ainda mais difícil aos poucos. Então, Colm vai desnorteando aos poucos o espectador (claro, Pádraic também) com uma série de atos de extremo radicalismo e coragem, que inclusive vão irritando cada vez mais o novo desafeto.
Outra diferença entre ambos – e que remonta à divisão das Irlandas e à diferença das religiões – é a mais completa ausência da culpa judaico-cristã por parte de Colm. E assim corre a (divertida) rixa entre os dois em uma ilha onde não há absolutamente muito mais nada de concreto para ser feito a não ser a perseguição de um ideal que contrapõe a conservação do mais do mesmo à ambição da superação física e a criação de uma obra “a serviço de Deus”.
Enquanto isso, McDonagh se revela – de novo – um ótimo diretor de atores. As grandes interpretações de Farrell e Gleeson já não chegam a ser uma novidade, já que esta é a segunda vez que a dupla trabalha em conjunto com o autor (a primeira fora em Na Mira do Chefe). No papel de Siobhán, Condon brilha fazendo a voz da lucidez diante da cega obsessão e da mais completa falta de ambição do irmão Colm. Já Keoghan, que vem pavimentando um caminho de filmes cult nos últimos anos (O Sacrifício do Cervo Sagrado, Dunkirk, A Lenda do Cavaleiro Verde) mostra as credenciais, como o sempre bêbado Dominic, para estourar de vez em Hollywood como o novo Coringa, o arquirrival de Batman.
Apesar das nove indicações para o Oscar, Os Banshees de Inisherin não levou nada neste domingo, como já era previsto. Contudo, isso pouco importa. O bom é que Martin McDonagh, com esta obra, mostra ascensão criativa em seu quarto filme e solidifica de vez seu nome no panteão dos grandes cineastas autorais do século 21.Certamente teremos mais humor ácido e histórias fora do comum nos seus próximos filmes.
Oito motivos para não perder o novo show do artista, estrela de vários festivais no Brasil em 2022 e que acaba de voltar de turnê pela Europa
Texto por Abonico Smith
Foto: Fernando Young/Divulgação
Ele tem em Abelardo Barbosa, o Chacrinha, celebridade citada em uma das famosas músicas suas, a clássica “Aquele Abraço”. Contudo, quem está com tudo e não está prosa é o próprio Gilberto Gil, que está com a agenda cheia nesta temporada em que acabou completar 80 anos de idade.
Gil acaba de voltar de uma bem-sucedida turnê pela Europa, onde foi acompanhado por alguns de seus descendentes no palco. Também acaba de estrear em streaming o reality show Em Casa com os Gil, onde é o protagonista ao lado de toda a sua família. Participou de grandes festivais brasileiros (MITA, Coala, Rock in Rio), com shows concorridos de público e bastante incensados pela crítica. Também percorre o país apresentando-se aqui e ali, em grandes e importantes cidades, com sua banda de apoio, formada majoriamente por gente que carrega o talento e o sobrenome Gil em seu DNA.
Por estar bastante incensado que todos os ingressos para a sua passagem por Curitiba (Teatro Positivo, dias 27 e 28 de outubro), depois de cinco anos sem cantar na capital paranaense, estão esgotados. Quem sabe alguma mágica acontece e, se você não comprou a sua entrada, algum bilhete “premiado” aparece disponível voando por aí?
De qualquer maneira, aí vão oito motivos para não perder (pode não ser um destes mas que seja algum próximo) um concerto de Gilbert. Gil bem à sua frente
Tropicália
Ao lado do amigo e conterrâneo Caetano Veloso, Gil bolou todos os conceitos, preceitos e possibilidades sonoras do movimento que abalou as estruturas da música brasileira no biênio 1967-1968, provocou muita polêmica e desde então vem, década após década, vem rendendo frutos e discípulos maravilhosos para nossos ouvidos escutarem e os olhos verem em ação nos palcos da vida. Expandindo toda e qualquer fronteira, sempre observando e absorvendo tudo o que pudesse, adentrando as várias regiões do país ou mesmo pegando coisas boas lá de fora. Se não fosse a ação feita pela Tropicália lá atrás, que sacodiu a poeira da estagnação da bossa nova e projetou um belo futuro, onde vieram a se encaixar nomes como Sérgio Sampaio, Walter Franco, Chico Science & Nação Zumbi, Paralamas do Sucesso, Los Hermanos, Ana Cañas, Francisco El Hombre, Charme Chulo e Johnny Hooker, por exemplo.
Família no palco
Com 80 anos de idade completados em 26 de junho e dono uma carreira musical ímpar, Gil agora desfila nos palcos toda a sua generosidade em ceder espaço para seus descendentes (filha/os, neta/os, nora) como integrantes de sua banda de apoio. Aliás, quase todo mundo que o acompanha carrega no DNA traços da família Gil – o que faz pensar o quanto os tentáculos deste sobrenome poderoso de três letrinhas se alastraram pelo Rio de Janeiro e que, de uma ou outra maneira, cada profissional da música que esteja radicado na Cidade Maravilhosa está de uma ou outra maneira, até no máximo seis graus de separação (quando muito isso, olha lá!) de Gilberto Passos Gil Moreira. O mais recente membro do clube com o branding Gil é a neta Flor, de apenas 13 anos, com quem chegou a dividir recentemente os vocais principais, no Rock In Rio, em uma versão bilíngue de “Garota de Ipanema”.
Reality show
Por falar em família, se você tem acesso ao streaming da Amazon Prime não deixe de assistir Em Casa com os Gil, reality show criado pela Conspiração Filmes para documentar – da criação à realização de uma turnê de quinze datas feita meses atrás por alguns países europeus, passando por várias reuniões com a participação de todos os membros do clã, que, de uma ou outra maneira, aparecem em cena passando pelo sítio do artista em Araras, onde ele se isolou durante a pandemia da covid-19. Tem até a bisneta Sol de Maria. É interessante ver toda a dinâmica familiar regida por Gil e a esposa Flora, que coordena não só a carreira do artista como também organiza e rege tudo o que envolve os encontros familiares.
Repertório clássico
Não faz muito tempo que Gil deu uma declaração tão polêmica quanto provocativa: ela passara a gravar pouco ou quase nada porque, de uma forma ou de outra, todas as músicas já haviam sido compostas e registradas. Claro que isso é uma hipérbole, mas não deixa de ser algo que faz pensar. Afinal, quanto mais oferta há de obras e artistas neste oceano que é a internet com suas plataformas de comunicação e divulgação, menos chance de se ter tanto um lugar verdadeiramente ao sol como ainda alcançar uma popularidade que tenha a mesma eficácia ou impacto de outrora. Portanto, nada mais natural também que o repertório da atual turnê de Gil seja um belo passeio por clássicos de várias fases de sua extensa trajetória. Afinal, se Gil conseguiu enfileirar hit atrás de hit nos tempos em que as rádios ainda tocavam a boa música brasileira do presente ou pelo menos algumas belezas não muito conhecidas pela massa, tudo o que menos se precisa enfiar em um show seria um punhado de faixas recentes que quase ninguém conhece ou já ouviu, só pela obrigação de se divulgar um disco novo e a justificativa de fazer (mais) uma turnê.
Laços com o reggae
Um dos destaques do repertório clássico de Gil é a sua forte conexão com o reggae. No disco Realce, de 1979, ele verteu português o clássico “No Woman No Cry”, de Bob Marley (Gil tinha acabado de assinar com a recém-inaugurada filial Warner, que era dirigida pelo seu ex-diretor na Phillips, o já falecido André Midani; Bob Marley era um dos grandes nomes do selo Island, representado em nosso país pela Warner, que inclusive chegou a trazer o artista jamaicano para cá). Vinte anos atrás ele chegou a gravar um álbum (Kaya N’Gan Daya) dedicado só ao gênero, com um monte de releitura de Marley inclusive. E em uma ou outra música tocada ao vivo sua o arranjo traz traços de reggae.
Fase pop
Depois de assinar com a Warner, Gil também passou a desenvolver uma fase tão pop quanto polêmica. Sem deixar de lado a música brasileira, empunhou a guitarra e soube misturar o popular com o pop. Muitos críticos passaram a torcer o nariz para o Gil dos anos 1980, mas não há dúvida de que dali saiu muita coisa boa que ainda levou o artista a ganhar um público mais abrangente que o das rádios FM voltadas à elite cultural. São desta época pérolas dançantes (como “Palco”, “Toda Menina Baiana”, “Realce”, “A Gente Precisa Ver o Luar”, “Andar Com Fé”, “Vamos Fugir”, “Extra”, “Punk da Periferia”, “Extra II”, “Pessoa Nefasta”, “Nos Barracos da Cidade” e “Não Chores Mais”) e baladas de arrepiar (como “Drão”, “Tempo Rei”, “Super-Homem, a Canção” e “Se Eu Quiser Falar Com Deus”.) Ainda tem obras compostas por ele e gravadoras originalmente por outros artistas na época ( “A Paz”, “Um Trem Pras Estrelas”, “A Novidade”). Muitas destas citadas aí são presença constante no repertório dos concertos mais recentes.
Ex-ministro da cultura
Entre 2003 e 2008, nos dois mandatos presidenciais de Lula, Gil esteve à frente do Ministério da Cultura, rebaixado à condição de secretaria durante o (des)governo de Jair Bolsonaro. Esta não fora a primeira incursão do cantor e compositor na política. Em 1988, então filiado ao PMDB, elegeu-se vereador em sua cidade natal, Salvador. Em Brasília, porém, driblou desconfiança de colegas do meio artístico como os atores Marco Nanini e Paulo Autran, para realizar um bom trabalho na Esplanada dos Ministérios. Afastado dos palcos pero no mucho (como ministro, em seu primeiro ano de atuação, botou as Nações Unidas para dançar durante o Show da Paz na Assembleia Geral da ONU), implementou uma série de políticas públicas voltadas à difusão cultural, em um tempo onde o governo federal ainda se preocupava, de fato, com o desenvolvimento e o avanço da arte. Em tempos onde a cultura brasileira anda tão combalida e arrasada, nada melhor do que uma nova mudança de governo e um novo ministro como fora Gilberto Gil para reerguer toda essa riqueza de volta.
Imortal da ABL
Em novembro de 2021, Gil foi eleito para uma vaga na Academia Brasileira de Letras, por meio de 21 votos, para ocupar a cadeira de número 20. Sua inclusão no quadro de imortais da ABL se deu uma semana depois da de Fernanda Montenegro. Uma mostra não apenas de que a instituição (que em julho último celebrou 125 anos de existência) mostra estar se abrindo para textos não formais da literatura tupiniquim como também mais uma faceta pública de Gilberto Gil que vai além dos palcos, instrumentos e microfones. E ele merece, também. Primeiro porque nas últimas décadas revelou-se um dos mais hábeis autores musicais de nosso país. E também porque já demonstrava uma certa queda para o fardão já na capa de seu álbum de estreia, de 1968, quando posou, com olhar matreiro, para as lentes do fotógrafo David Drew Zingg como um dos personagens daquele projeto gráfico. Portanto, mais de meio século antes e ainda no auge da Tropicália, Gil – cuja posse na instituição ocorreu em 8 de abril de 2022 – já revelava sua paixão para as letras e antecipava aquilo que ocorreria às vésperas de chegar à oitava década na idade.
Oito momentos em que a monarca britânica imprimiu a sua marca na cultura pop que ajudou a fomentar em 96 anos de vida
Textos por Marden Machado (Cinemarden) e Abonico Smith
Fotos: Reprodução e divulgação
Os ponteiros do relógio já haviam ultrapassado a tradicional hora britânica do chá quando o anúncio oficial da morte da rainha Elizabeth II foi disparado pela área de comunicação do governo britânico. A monarca – que completava 70 anos de reinado em 2022, o mais longo de todos os tempos da História – faleceu neste dia 8 de setembro aos 96 anos de idade, no castelo real de Balmoral, na Escócia. Seu filho, Charles, hoje com 73 anos, será o sucessor no trono e se tornará o rei mais velho a ser coroado no Reino Unido.
Nascida Elizabeth Alexandra Mary Windsor, Lilbet – como era chamada pela família – transformou-se em um dos maiores ícones da cultura pop do século 20. Seu rosto, seu simbolismo, sua posição, tudo isso movimenta uma trilhardária indústria do turismo por Londres e outras cidades do Reino Unido (que comporta, além da Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte). Quem vai a Londres deve pelo menos passar ali pela frente dos portões do Palácio de Buckingham – ou assistir ao espetáculo semanal da troca da guarda se for o dia certo para tal. Por isso, o Mondo Bacana comenta oito momentos em que a monarca marcou presença em música, filmes e séries, sendo uma ilustre presença pop dentro da própria cultura pop que sempre ajudou a fomentar durante seu reinado. (AS)
O Discurso do Rei (2010)
O cineasta londrino Tom Hooper começou sua carreira profissional na televisão em 1997, onde dirigiu episódios de seriados e alguns telefilmes e minisséries. Sua estreia no cinema veio em 2004, quando dirigiu Sombras do Passado. Isso não impediu que ele continuasse trabalhando na TV, onde dirigiu em 2008 para a HBO a premiada minissérie John Adams, estrelada pelo ator Paul Giamatti. O Discurso do Rei foi seu terceiro longa. A partir de um roteiro de David Seidler, o filme conta um período da vida do rei George VI, do Reino Unido, que era gago. Ele não esperava tornar-se rei. Isso aconteceu porque seu irmão mais velho abdicou do trono. Veio a Segunda Guerra Mundial e ele precisava falar e inspirar confiança em seu povo. Para tanto, George, vivido por Colin Firth, é levado por sua esposa, Elizabeth (Helena Bonham Carter), para ser tratado por um terapeuta, Lionel Logue (Geoffrey Rush), de métodos pouco ortodoxos. O Discurso do Rei se concentra nesse momento crucial da vida do monarca, pai de Elizabeth II (que também aparece como personagem na história, ainda como uma pequena princesa). Ou seja, todo o caminho que percorreu para superar a gagueira e vencer esse grande desafio. Tom Hooper não é um diretor, digamos assim, cinematográfico. Ele funciona melhor em trabalhos para televisão. De qualquer maneira, o filme recebeu 12 indicações ao Oscar e ganhou nas categorias de filme, diretor, roteiro original e ator. (MM)
A Rainha (2006)
É lugar-comum dizer que ninguém faz filmes sobre a realeza como os ingleses. E se o roteiro for escrito por Peter Morgan, então, é aposta certa. Este é o caso de A Rainha, dirigido por Stephen Frears. A monarca em questão é a rainha Elizabeth II, vivida aqui por Helen Mirren, que ganhou o Oscar de melhor atriz naquele ano pelo papel. A história se passa na primeira semana do mês de setembro de 1997, logo depois do acidente de carro que vitimou a princesa Diana, em Paris. A família real se isola no palácio de Balmoral e cabe a Tony Blair (Michael Sheen), que acabara de ser apontado como primeiro-ministro do Reino Unido, a missão de reconectar os governantes com a população em luto pela morte prematura de sua querida princesa. Para tanto, somente Elizabeth poderá ajudá-lo. Repare como Frears diferencia as cenas onde a realeza e os comuns aparecem. Ele usou duas câmeras: uma 35 mm para os nobres e uma 16 mm para os plebeus. Você pode até não perceber num primeiro momento, mas, com certeza vai sentir que há algo diferente nas mudanças de cenário. (MM)
Spencer (2021)
O cineasta chileno Pablo Larraín iniciou sua carreira em 2001. Desde então tem se revelado um sensível roteirista, diretor e produtor, bem como um adepto de trilogias. A primeira delas, a “Trilogia da Ditadura Chilena”, é composta por Tony Manero (2008), Post Mortem (2010) e No (2012). Em 2016 ele iniciou uma nova trilogia sobre a solidão de mulheres ligadas ao poder. Jackie, estrelado por Natalie Portman no papel da primeira-dama americana Jacqueline Kennedy, viúva do presidente Kennedy, nos dias seguintes a seu assassinato. Com Spencer, ele dá continuidade a essa nova trinca de filmes. Com roteiro de Steven Knight, temos aqui um preciso recorte de três dias na vida da princesa Diana, da família real inglesa, então casada com o príncipe Charles, durante as festividades de Natal junto à Família Real (Stella Gonet interpreta o papel de Elizabeth). No papel-título, a atriz Kristen Stewart interpreta uma jovem angustiada e extremamente solitária presa a uma rotina de obrigações tradicionais que remonta há séculos. O principal elo que Lady Di tem com o mundo real se concentra nas figuras de Maggie (Sally Hawkins), sua estilista; o mordomo Alistar (Timothy Spall); e o cozinheiro Darren (Sean Harris). Além disso, ela tem visões da Ana Bolena, segunda esposa do rei Henrique VIII. Não há registro algum que confirme a história que Spencer conta. Trata-se de uma especulação bastante crível. Principalmente, quando sabemos de inúmeros relatos da rotina da princesa. Larraín é meticuloso em sua narrativa e tem Kristen Stewart em interpretação inspirada, precisa no sotaque britânico e minuciosa nos gestos, olhares e jeito de andar. Como se isso não bastasse, há um cuidado extremado com o desenho de produção, o que resulta em cenários, figurinos e objetos de cena que trabalham a favor da história. Da mesma forma que a fotografia, a montagem e especialmente a bela trilha sonora composta por Jonny Greenwood, guitarrista do Radiohead. (MM)
Corra Que a Polícia Vem Aí (1988)
O trio ZAZ, formado pelos irmãos Jerry e David Zucker junto com Jim Abrahams, surgiu em 1980 com o sucesso Apertem os Cintos, o Piloto Sumiu, comédia que abriu espaço para outras semelhantes com traziam muitas piadas acontecendo ao mesmo tempo em cena. Piadas tanto verbais quanto não verbais, em primeiro, em segundo e até em terceiro planos. Corra Que a Polícia Vem Aí!, de 1988, é, na verdade, uma versão para cinema da série Esquadrão de Polícia, criada pelo trio em 1982, que apresentou o atrapalhado detetive Frank Drebin (Leslie Nielsen). Ele agora está de volta e tem como missão impedir um atentado contra a Rainha Elizabeth II (interpretada por Jeannette Charles), que está nos Estados Unidos para uma visita oficial. O roteiro, escrito pelo ZAZ junto com Pat Proft, não nos poupa de rir, sem exagero, por um segundo sequer. A resposta nas bilheterias foi mais do que satisfatória e gerou duas continuações, além de transformar Nielsen em astro da comédia pastelão. (MM)
The Crown (2016–)
A série anglo-americana feita para a Netflix conta a trajetória de Elizabeth II do seu casamento em 1947 ao começo deste novo século, passando por várias pessoas e acontecimentos que fizeram parte de seu extenso reinado. Com quatro temporadas já disponíveis, já arrebatou várias indicações e premiações. Três atrizes já fizeram a monarca durante a cronologia: Claire Foy, Olivia Colman e Imelda Stauton. A última estreará como protagonista da produção em novembro deste ano, quando vier a quinta temporada. (AS)
Os Simpsons (1989-)
Todo mundo que significa algo a mais na cultura pop mundial com certeza já ganhou alguma participação especial na longeva série de animação criada por Matt Groening. Elizabeth II aparece em carne, osso e pele amarelada em seis episódios (e ainda é mencionada em outros dois!). No mais engraçado deles, que pertence à decima quinta temporada, Homer provoca uma grande balbúrdia ao invadir acidentalmente o Palácio de Buckingham, bater em uma carruagem e ser espancado pela Guarda Real. Depois começa a chamar a rainha de impostora e acaba sentenciado à prisão nas masmorras da Torre de Londres. O desenrolar de tudo isso, se contado, vira spoiler, mas só dá para dizer que até a cantora Madonna acaba tendo seu nome envolvido em todo este imbroglio.
“God Save The Queen” (1977)
Era final de maio de 1977 e o Reino Unido estava nas comemorações do jubileu da rainha, dos 25 anos de monarquia de Elizabeth II. Regidos pelo empresário picareta Malcolm McLaren, os Sex Pistols lançavam – tocando em um navio alugado por McLaren para ficar em movimento à frente do Parlamento, nas águas do Tâmisa – uma nova música com o mesmo nome do hino britânico de séculos e séculos. Só que a letra provoca uma cusparada verbal atrás da outra na história da realeza britânica. Na capa do single, uma foto da Elizabeth jovem cheia de referencia estética da arte punk. Nos versos vociferados por Johnny Rotten, dizeres como “Deus salve a Rainha/ O regime fascista dela/ Eles fizeram você de idiota/ Uma bomba H em potencial/ Deus salve a Rainha/ Ela não é ser humano/ E não existe futuro/ No sonho da Inglaterra” transformaram a gravação em um clássico do punk rock.
“The Queen Is Dead”(1986)
Terceiro álbum de estúdio e considerado a grande obra-prima da banda inglesa que lançou as carreiras do Morrissey (vocais e letras) e Johnny Marr (guitarras e musicas). Com dez faixas e a capa ostentando uma foto monocromática em verde ao ator francês Alain Delon em um filme de 1964 que levou o nome de Terei o Direito de Matar? no Brasil, o disco tem dez faixas e traz clássicos como “There Is A Light That Never Goes Out”, “Bigmouth Strikes Again” e “The Boy With The Thorn In His Side”. A abertura do lado A do vinil (e consequentemente a abertura do CD também) fica com a música-título, que traz versos costumeiramente interpretados como antimonarquistas, mas que fazem referência a passagens da vida de Morrissey, sobretudo as dificuldades de relacionamento com a mãe (no caso, a figura da Rainha Elizabeth seria apenas uma metáfora para a incitação a uma inevitável mudança de vida). “The Queen Is Dead”, a música, não foi lançada como single. Entretanto, acabou ganhando videoclipe pelas mãos do cineasta Derek Jarman, que flagra, por meio de uma câmera frenética sempre em movimento, os momentos de rebeldia e insatisfação da juventude e a sobreposição de imagens de ruas, edificações, pessoas, árvores, flores e o fogo, que culmina com a simbologia da destruição de tudo que havia até então. Jarman também produziu – com estética semelhante – videoclipes para outros dois singles da banda nesta época (“There Is A Light…” e “Ask”) e lançou tudo sequenciado como um curta-metragem e também sob o nome de The Queen Is Dead.