Autor de Cine Holliúdy assina um drama sobre o mercado das artes com intensa paleta de cores e versos furiosos de Florbela Espanca
Texto por Abonico Smith
Foto: Pandora Filmes/Divulgação
Vermelho é a cor mais quente. Pelo menos para o pintor português Johannes Van Almeida, fã confesso do tom incandescente dos entardeceres dos quadros assinados pelo impressionista francês Claude Monet. Vermelho é justamente a área do círculo cromático que ele procura preservar em sua memória desde que uma doença degenerativa passou a, progressivamente, tomar o que ainda lhe resta da visão. Sua esposa (e igualmente pintora) Adele é ruiva, tem sardas e usa e abusa da cor vermelha em seu figurino. Johannes é eternamente apaixonado por ela e é também o seu cuidador depois que a evolução do mal de Alzheimer abrevou sua carreira e lhe impôs grandes limitações de fala e movimento. Por isso, Almeida é mestre em pintar figuras femininas e abusar deliciosamente da matiz simbolizada pelo fogo.
É em torno desta relação intensa de paixão e sofrimento de Johannes (Chico Díaz) que gira a história de Vermelho Monet (Brasil/Portugal, 2024 – Pandora Filmes), criada por Halder Gomes. Agora o cearense (diretor e roteirista mais conhecido pelas comédias escrachadas como Cine Holliúdy 1 e 2, O Shaolin do Sertão e Os Parças) se lança em um drama que gira em torno do mundo criativo e comercial das artes plásticas. Aliás, é também uma declaração de amor do cineasta à pintura, misto de paixão “secreta” e hobby seu.
Enquanto cuida de Adele (Gracinda Nave), Johannes sofre em busca de uma grande inspiração para continuar pintando enquanto ainda lhe resta o puco de visão e a memória dela (repetindo exatamente o que enfrentara Monet no final de sua vida). Ele nunca fora reconhecido na área. Aliás, a fama ele conquistou, mas como falsificador de pinturas antigas com rosto feminino. Recém-saído da prisão, onde ficou cumprindo um tempo de reclusão por isso, ele volta às ruas, praças e parques de Lisboa nos passeios diários com a esposa até se deparar com a encantadora figura da atriz brasileira Florence Lizz (Samantha Heck, iniciante no cinema e mais conhecida do público nerd por ter feito a personagem Sheila na propaganda de TV com os personagens do mítico desenho animado Caverna do Dragão em live action). Fica obcecado pela jovem ruiva, a ponto de pintar com intensidade inspirado por um painel de colagem de fotos de jornais e revistas da nova musa e desejar a sua presença como modelo no ateliê. O pintor quer, enfim, provar que pode ter o seu talento autoral reconhecido.
Quem faz a ponte entre os dois acaba sendo a inescrupulosa marchand Antoinette Léfèvre (Maria Fernanda Cândido), figura poderosa do mundo europeu das artes, com altas conexões com milionários e colecionadores e leiloeiros de Paris e Londres. Dona de uma galeria respeitada na capital portuguesa, ela lida com a sedução sexual da ninfeta brasileira enquanto luta para manter o domínio psicológico diante de Johannes, deixando-o no underground à base das falsificações que lhe rendem milhões. É na manipulação de ambos que Antoinette injeta boas doses de suspense na trama.
Enquanto isso, Adele e Florence se reconhecem uma na outra. A primeira vê a jovem naquele lugar de desejo ao qual já pertencera. A segunda vê na esposa de Almeida uma alma boa e que teve a trajetória interrompida injustamente por algo maior, a doença – tudo o que a atriz deseja em Lisboa é superar suas limitações de novata na dramaturgia e convencer o arrogante diretor do filme que está rodando de que é capaz e foi a escolha certa dos produtores para interpretar a protagonista. O longa no qual a ruivinha trabalha gira em torno da vida e da obra de Florbela Espanca, um dos maiores nomes da poesia portuguesa de todos os tempos ao lado de Fernando Pessoa. É justamente no universo dos versos de Florbela, repletos de fúria, paixão, intensidade e desejos (tal qual o rubro dos quadros de Monet), que as duas se encontram. Os textos que decora para os ensaios das cenas que rodará é a área de Florence. Já a de Adele está nos pensamentos, sempre ouvidos em voice over por meio da estupenda interpretação de Gracinda.
Florbela também é citada em uma sensacional versão fadística de “Fanatismo”, poema musicado pelo também cearense Raimundo Fagner e gravado em seu álbum Traduzir-se, de 1981. Além da trilha sonora, que traz uma metalinguística “Hot Stuff” (hit de Donna Summer) em um baile à fantasia que cita quadros de outros pintores como Matisse e Van Gogh), Vermelho Monet também impacta pela exuberante fotografia com o uso delicado de luz e sombras e uma paleta que realça a exuberância do vermelho, muitas vezes em contraste com o azul. Aliás, este duelo entre as duas cores se explica em um dos momentos mais interessantes dos diálogos criados por Halder.
E claro que mesmo em um filme dramático não poderia faltar um pouco do humor peculiar do cineasta. Aqui ele se manifesta nas considerações ditas pela trinca principal de personagens a respeito de como realmente funciona o mercado das artes e do que muita gente pensa a respeito dele. Não gargalhe se conseguir.
Cinebiografia do criador da escuderia mais cultuada do automobilismo traz empolgantes cenas de corrida mas derrapa na parte dramática
Texto por Abonico Smith
Foto: Diamond Films/Divulgação
Mesmo que não seja assim tão fã de Fórmula 1, todo brasileiro sabe muito bem que o sobrenome Ferrari carrega há décadas o status de símbolo máximo de grife ligada ao automobilismo. Todo piloto quer dirigir uma. Todo milionário sonha em ter uma. Alguns jogadores de futebol que já passaram temporadas em campos europeus já dirigiram uma. Seu fundador e proprietário, Enzo Ferrari, declarou, inclusive, que enquanto outras escuderias participavam de corridas para vender automóveis ele fazia exatamente o contrário: virou empresário para continuar pisando fundo no acelerador. Mesmo que nos bastidores, por trás de tudo, comandando tudo com mão de ferro em boxes, oficinas e escritórios.
Por isso, a chegada de um longa-metragem como Ferrari (EUA/Reino Unido/Itália/China, 2023 – Diamond Films) aos cinemas pode causar bastante alvoroço em tanta gente que ama a velocidade dentro de algum bólido de motor possante e quatro rodas. A assinatura de Michael Mann, então, veterano diretor especializado personagens bastante obcecados por suas atividades, tornava-se um atrativo a mais.
Eis que, com o foco ligado sempre em um Adam Driver completamente transfigurado para se assemelhar ao protagonista, o filme se mostra uma obra dividida entre o drama e a ação. Neste último quesito, a mão de Mann – que havia três décadas tentava levar às telas esta adaptação de uma biografia publicada em 1991 – mostra-se perfeita. As muitas cenas de corrida, seja em circuitos fechados ou pelas ruas e estradas da região da Emilia-Romagna, são de encher os olhos, ainda mais na grande tela. Só que nem só disso vive um bom filme e justamente na outra parte que este Ferrari derrapa.
O arco dramático, que no roteiro acaba de sobressaindo e tendo mais destaque do que as provas em si, começa em 1957, alguns anos depois que o piloto Enzo Ferrari decidiu abandonar de vez o volante depois de ver dois grandes amigos perderem a vida em acidentes ocorridos em um mesmo dia de corrida. Contudo, em uma Itália ainda se recuperando economicamente e juntando os cacos provocados pela Segunda Guerra Mundial, o futuro da escuderia que leva o seu nome parece incerto. O agora entrepeneur busca espantar de vez a assombração da falência tentando levantar dinheiro por meio da família e de empréstimos bancários. Para poder decolar e se manter profissionalmente, entretanto, era necessário se obter vitórias, sobretudo na Mile Miglia, percurso de longa distância (mil milhas, com dizia o nome) que passava por várias cidades italianas que fora retomado naquele pós-guerra. Como Enzo tinha grandes adversários nas pistas sua obsessão por chegar em primeiro aumentava a cada ano, custasse o que custasse, inclusive a vida de vários pilotos da Ferrari.
Aliás, a vida pessoal do protagonista é bastante devassada nas telas. A constante luta contra a morte aparece do início ao fim do filme. Além da perda dos pilotos da escuderia – motivo pelo qual era constantemente atacado pela imprensa esportiva local – também havia o sentimento perene na família. Ainda na adolescência, em 1916, ele já perdera pai e irmão mais velho para um surto de gripe que se espalhara por todo o país. Contudo o abalo maior ficou por conta do falecimento em 1956 de Dino, o único filho com a esposa Laura e por isso seu sucessor, aos 24 anos de idade, vitimado por uma distrofia muscular. Aliás, o nascimento de Dino também havia sido um outro forte motivo para que Enzo fizesse a transição definitiva de piloto para empresário em 1932.
O casamento com Laura, que já não vinha bem desde o período da guerra, já havia virado um leite derramado. Tanto que Enzo mantinha vida dupla com outra mulher e criando um outro filho, mesmo não podendo ser reconhecido legalmente por ele por conta da então ainda inexistente lei do divórcio em território italiano. O que quase todo mundo já sabia veladamente nos bastidores Laura acaba descobrindo, dificultando ainda mais o entendimento entre os dois “sócios” da escuderia.
Aqui, portanto, reside o grande problema de Ferrari, que é a sua parte dramática. Adam Driver termina o filme como começou: quase escondido, não apenas pelo disfarce da caracterização e os quilos de maquiagem. Fala bem pouco em cena, muitas vezes resmungando e lacônico, com a cara fechada, pisando em seus trabalhadores e interlocutores. Pode-se até argumentar que esta seria de fato a personalidade rude do “comendador”, mas também acaba jogando contra a mise-en-scène do protagonista. Penélope Cruz, por sua vez, dá vida, viço e sangue a uma Laura ofendida e impulsiva, capaz de atirar à queima-roupa no marido em casa ou ser tão grossa quanto ele nas ligações da imprensa e de financiadores. Já Shailene Woodley (a sempre resignada Lina Lardi, a amante e mãe do filho bastardo) não diz muito a que veio em seu pouco tempo de tela.
Além do desnível das interpretações, Ferrari também “sai da pista” e “bate na mureta” ao cometer o grande erro de muitas produções hollywoodianas ambientadas na Europa continental e com personagens reais que, em seu cotidiano, falam em idioma natal. Este é mais um filme de italianos, de história bem italiana, de característica italiana falado em inglês! (Detalhe: Adam Driver também estava no elenco de Casa Gucci, que chafurdou em críticas e bilheteria por este motivo.) E o que faz ali o competente ator brasileiro Gabriel Leone, fazendo um piloto espanhol (Alfonso de Portago), conversando com o patrão italiano, em inglês?
Ao final da sessão fica aquela lembrança histórica do maior momento de narração de Cleber Machado na F1 – aliás, uma enorme polêmica protagonizada justamente pelos dois competidores da Ferrari na temporada de 2002. Na volta derradeira do GP da Áustria, Rubens Barrichello estava bem à frente do companheiro de escuderia, Michael Schumacher e iria cruzar a linha de chegada e receber a bandeirada da vitória. Contudo, sua equipe obrigou o brasileiro a desacelerar e ceder, nos metros finais, a frente para Schumacher, já que isso contabilizaria mais pontos para que o alemão pudesse vencer o campeonato de pilotos. Ferrari, o filme, faz ecoar na mente o futuro bordão com a empolgação sendo subitamente trocada pelo tom de decepção. Hoje não, hoje não… hoje sim!
Mike Flanagan transforma em minissérie toda a corrosão moral dos descendentes de um magnata de clássico conto de Edgar Allan Poe
Texto por Tais Zago
Foto: Netflix/Divulgação
No conto The Fall Of The House Of Usher de Edgar Allan Poe, o detetive Auguste Dupin narra o encontro derradeiro que tem com o milionário Roderick Usher, quando descobre alguns segredos da família de magnatas. É um conto trágico sobre loucura, família e isolamento que usa a estrutura de uma casa como metáfora para a destruição e corrosão moral.
Para terminar seu contrato com o streaming Netflix e nos presentear mais uma vez com uma obra assustadora em outubro, Mike Flanagan nos arrasta para a sua bela homenagem a Edgar Allan Poe – o pai do terror, horror, e, sim, também do true crime literário ao nos apresentar Auguste Dupin, que inspirou Arthur Conan Doyle a criar sua mais famosa figura, o detetive Sherlock Holmes.
Em sua adaptação de A Queda da Casa de Usher (2023) para uma minissérie, Flanagan nos apresenta o clã dos Usher, uma linha de descendentes de Roderick Usher, o patriarca que construiu toda sua fortuna em cima da dor humana com a indústria farmacêutica. O grupo de seus filhos é formado por personalidades distintas mas que possuem em comum a ganância, a luxúria, a arrogância, a falta de talentos reais e a frieza daqueles endinheirados que há tempos perderam o contato com o mundo real e desaprenderam o código de normas éticas e morais humanas. Os semideuses construídos na base de grandes fortunas a la Elon Musk. Os donos do mundo que destroem o mundo.
Confesso que fui assistir com um pé atrás. Poucos conseguiram, até hoje, trazer Poe para as telas sem destruir o conteúdo. Algo meio parecido ao que ocorre com Stephen King. Mas Flanagan já provou seu talento em misturar terror, drama e suspense em obras-primas como A Maldição da Residência Hill (2018), baseado no romance de Shirley Jackson; A Maldição da Mansão Bly (2020), que, por sua vez, se inspirou no livro The Turn Of The Screw de Henry James. Ou com o complexo e ao mesmo tempo intrigante Missa da Meia-Noite (2021). Todos especialmente criados para a Netflix.
Flanagan é um artista multifacetado: cria, roteiriza, dirige, produz e até mesmo edita algumas de suas obras. Ele nos apresentou a uma forma de sentir medo confusa – a que nos assusta e também traz lágrimas de melancolia. Por vezes somos aliados de seus monstros e fantasmas. Por outras, roemos as unhas e levamos sustos de voar do sofá. Esse coquetel de sentimentos torna o trabalho de Mike um tanto inesquecível. As obras ficam conosco por alguns dias, meses ou até mesmo, anos gravadas em nossa memória.
Já Edgar Allan Poe dispensa apresentações. Quem, em algum momento da vida, interessou-se por literatura de terror, conhece bem o nome, sabe sua trágica história e entende algumas referências às suas mais famosas obras como The Raven, The Tell Tale Heart ou The Black Cat. Poe é a referência número um do terror gótico e vitoriano. É quem nos plantou na cabeça o medo de sermos enterrados vivos ou assombrados e levados à loucura pela nossa consciência.
Com respeito e reverência ao mestre do horror, Flanagan nos apresenta em oito episódios a série que tem o nome de um dos contos mais famosos de Poe. Só que A Queda da Casa de Usher, no final, é uma imensa homenagem a todo o corpo de trabalho do escritor, com capítulos cravejados de pequenas surpresas para os fãs. Vemos na tela seus poemas, seus temas, os nomes de seus personagens e todo clima gótico e depressivo-melancólico que envolve seus contos. Mergulhamos nas suas palavras que volta e meia nos tomam de assalto no meio dos roteiros de Flanagan. Como não poderia deixar de ser, os episódios levam também os nomes de obras de Poe.
Assim como outros mestres do horror, Mike tem suas musas, seu atores que aparecem em diversas obras em papeis diferentes. Sempre presente estão Kate Siegel (Camille), a esposa de Flanagan, e a atriz Carla Gugino (Verna). Mas temos também surpresas no cast como Mark Hamill (Arthur Pym) e Henry Thomas (Frederick), além de um elenco mais etnicamente diverso com Rahul Kohli (Napoleon), Sauriyan Sapkota (Prospero) e a encantadora Kyliegh Curran (Lenore). Uma agradável surpresa em relação a um dos pontos críticos que era identificado em suas obras. Contudo, confesso que senti bastante a falta de Victoria Pedretti, que junto com Kate Siegal são a marca registrada do horror de Flanagan, assim como Sarah Paulson e Jessica Lange estão para a obra de Ryan Murphy (American Horror Story).
Como nada é perfeito, também há pontos de crítica aqui. Algumas interpretações são engessadas, principalmente as de Hamill e de Mary McDonnell (Madeline); alguns CGIs deixaram a desejar; e alguns diálogos se tornaram longos demais. Às vezes é mais efetivo apresentar em seis episódios uma serie mais coesa e interessante do que estender por oito longas horas e arriscar a monotonia.
Apesar disso, A Queda da Casa de Usher deve empolgar bastante os fãs de Edgar Allan Poe. Principalmente aqueles que devoraram toda a sua produção e que são capazes de captar referência sutis, como o nome do arquiinimigo da vida real de Poe, Rufus Griswold, que empresta o nome a uma das figuras antagônicas da trama.
Interpretando a si mesmo, Nicolas Cage traz em seu novo filme a curiosa dinâmica entre ídolo e fã
Texto por Felipe Azambuja
Foto: Paris Filmes/Divulgação
Em O Peso do Talento (The Unbearable Weight Of Massive Talent, EUA, 2022 – Paris Filmes) vemos Nicolas Cage sendo ninguém menos que Nicolas Cage (?!?!?!). O longa dirigido por Tom Gormican acompanha uma versão ficcional porém bem próxima da real de Nick, que, após ser rejeitado para mais um papel em um grande filme, decide desistir de atuar. Afogando-se em dívidas, ele aceita pela bagatela de 1 milhão de dólares um derradeiro trabalho como estrela de cinema: comparecer ao aniversário de um milionário em Mallorca, na Espanha. Seu anfitrião, Javi, interpretado por Pedro Pascal é um fã absurdo de Cage e logo os dois formam uma amizade. Seria tudo maravilhoso, não fosse o fato de que Javi estar sendo investigado pela CIA como traficante de armas. Nick logo se vê tendo que espionar seu novo amigo para descobrir a localização da filha sequestrada de um importante político catalão.
A proposta primária da trama, de brincar com as excentricidades de Cage e os diversos altos e baixos de sua carreira, poderia muito bem correr o risco de ficar só nisso e não se desenvolver. Felizmente não é o que acontece. O Nick que vemos na tela, por baixo de todas as polêmicas, é alguém extremamente humano, que, na medida do possível, só quer uma vida normal trabalhando bem e sendo um bom pai para sua filha Addy (interpretada por Lily Sheen). Nesse ponto, o personagem de Pascal é uma representação do próprio espectador. Que nem Javi, esperávamos ver um Nicolas Cage diferente daquilo que nos foi entregue, o que não é ruim de jeito algum.
Essa quebra de expectativa e a consequente aproximação entre Nick e Javi são o ponto alto do filme. A dinâmica entre os dois rende boas risadas entre as várias tentativas do espanhol para impedir que seu ídolo desista de atuar. Enquanto isso, Cage, que chega a Mallorca determinado a fazer seu trabalho e nada mais, vê-se envolvido tanto na amizade com seu anfitrião quanto na missão de investigá-lo. Pascal, porém, traz um Javi que vai ficando cada vez mais amável ao decorrer do filme, o que torna difícil tanto para Nick quanto para o espectador acreditar que ele seja de fato um cruel foragido da justiça.
No entanto, essa subtrama de espionagem, muito bem trabalhada entre o suspense e a comédia no primeiro e segundo atos (boa parte graças ao carisma de Tiffany Haddish e Ike Barinholtz como os agentes Vivian e Martin), acaba falhando no terceiro. O que até então havia sido uma divertidíssima e absurda missão de um ator frustrado utilizando as habilidades do método de atuação intitulado por ele mesmo como nouveau shamanic para desmascarar um fã com uma adoração quase obsessiva passa a ser no fim do filme uma sequência genérica de ação com algumas piadas que não fazem jus ao resto do longa.
Apesar desta escorregada no final, o filme como um todo é interessante, justamente pelo uso da metalinguagem para mostrar a relação mútua de um astro e seu público – como uma estrela só pode ser considerada uma estrela quando há fãs que as veem assim. E quem melhor para ser a estrela dessa autoparódia do que Nicolas Cage, que abraça como ninguém o posto de celebridade excêntrica de Hollywood? Nick (o personagem) ao mesmo tempo adora e detesta essa relação, o que torna difícil sua decisão de sair da indústria e rende belos diálogos entre seu eu atual e Nicky, sua versão dos anos 1990 que havia acabado de alcançar o estrelato e não continha sua animação com esse novo mundo.
Assim, O Peso do Talento traz uma história leve sobre redenção, não no sentido épico que normalmente associamos à palavra, mas não menos tocante. Tanto Nick quanto Javi estão tentando se acertar na vida e a amizade dos dois permite com que encontrem seus lugares. A grande jogada de abraçar a esquisitice de Cage e ir além faz com que este filme – que chega nesta semana aos cinemas brasileiros – seja um dos pontos altos recentes na montanha-russa em que se transformou a carreira do ator, que é sobrinho do cultuado diretor Francis Ford Coppola.
Neste último dia 13 de março foi anunciada a morte do ator William Hurt, aos 71 anos de idade, de causas naturais. O ator norte-americano deixou uma extensa trajetória com seu nome nos créditos de interpretação de 106 filmes.
Para os brasileiros, o mais conhecido e importante foi, com certeza, O Beijo da Mulher Aranha. Na produção de 1985, com produção dividida entre Brasil e Estados Unidos e cenas dirigidas por Hector Babenco em São Paulo, sua presença em cena foi tão esfuziante que arrebatou o Oscar de melhor ator daquela temporada.
Em homenagem a Hurt, o Mondo Bacana enumera os oito trabalhos mais significativos de toda a carreira, marcada por uma série de grandes longas-metragens nos anos 1980, praticamente um emendado após o outro.
Corpos Ardentes (1981)
Lawrence Kasdan escreveu o roteiro de dois filmes marcantes do início dos anos 1980: O Império Contra-Ataca e Os Caçadores da Arca Perdida. O passo seguinte natural seria estrear como diretor e ele optou por fazer uma releitura de Pacto de Sangue, clássico filme noir dirigido em 1944 por Billy Wilder. Em Corpos Ardentes, acompanhamos o dia a dia de um advogado comum e sem ambições, Ned Racine, vivido por William Hurt. A vida dele se resume aos poucos clientes que defende e aos dois amigos com quem costuma beber no bar de uma quente cidade da Flórida. Certo dia, ele conhece Matty Walker, papel de estreia de Kathleen Turner, que diz para Ned: “Você não é muito esperto. Gosto disso em um homem”. Tem início um tórrido romance entre os dois que culmina na morte do milionário esposo de Matty. O diretor Kasdan, também autor do roteiro, revela um domínio absoluto de sua narrativa. Todo o elenco merece um destaque especial. Principalmente, Hurt e Turner, que exalam uma química arrebatadora quase sem igual no cinema. Preste atenção na participação de Mickey Rourke, em início de carreira. Corpos Ardentes é simplesmente imperdível.
O Reencontro (1983)
Em sua estreia como diretor, no drama noir Corpos Ardentes, Lawrence Kasdan tinha chamado a atenção da crítica. Ele resolveu, então, partir para uma história mais pessoal e introspectiva e realizou O Reencontro. O filme conta a história de um grupo de sete amigos que estudaram juntos na Universidade de Michigan. Dez anos depois da formatura, ele se reencontram em uma pequena cidade do interior da Carolina do Sul para o funeral de Alex, que se suicidou. Os outros seis: Sam (Tom Berenger), Michael (Jeff Goldblum), Nick (William Hurt), Harold (Kevin Kline), Chloe (Meg Tilly) e Sarah (Glenn Close) aproveitam o momento para fazer um balanço de suas vidas. Kasdan, que escreveu o roteiro junto com Barbara Benedek, inspirou-se em seus amigos dos tempos de faculdade. O Reencontro se desenrola praticamente todo em um mesmo cenário. As personagens falam sem parar e lavam bastante roupa suja. Parece filme francês, mas é americano. E dos bons. O elenco, hoje famoso, na época, em início de carreira, está excepcional. Duas curiosidades: 1) Kevin Costner fez o papel de Alex, mas as cenas de flashback foram cortadas na montagem final. Para compensar, o diretor o colocou em papel de destaque em seu filme seguinte, Silverado (1985); 2) Kasdan pediu ao elenco que ficasse junto antes das filmagens para que desenvolvessem aquela naturalidade comum em velhos amigos. O Reencontro foi indicado a três Oscar: filme, roteiro original e atriz coadjuvante (Glenn Close). Não ganhou nenhum. Ao invés disso, tornou-se cultuado por toda uma geração.
O Beijo da Mulher-Aranha (1985)
“Ela é… bem, ela é algo um pouco estranho. Isso é o que ela percebeu, que ela não é uma mulher como todas as outras. Ela parece toda envolta em si mesma. Perdida em um mundo que ela carrega fundo dentro de si”. É assim que Molina (William Hurt) começa a contar a história de uma mulher misteriosa para Valentin (Raul Julia). Ambos estão presos. O primeiro, é homossexual. O segundo, é um prisioneiro político. Molina adora cinema e para fugir daquela triste realidade, inventa enredos cinematográficos cheio de mulheres fatais, mistério e romance. Uma de suas heroínas é a Mulher-Aranha (Sonia Braga). Primeiro filme internacional dirigido por Hector Babenco, O Beijo da Mulher-Aranha é baseado no livro homônimo escrito pelo argentino Manuel Puig. Após o sucesso de Pixote (1981), Babenco teve as portas de Hollywood abertas e optou por uma trama próxima do universo narrativo com o qual ele estava acostumado. É curioso observar no desenrolar do filme a maneira como os estereótipos vão sendo trabalhados. Nem sempre o mais forte é o mais valente e muito menos o mais fraco se revela um covarde. Uma direção ao mesmo tempo seca e poética, característica marcante do cinema babenquiano. Além disso, estamos diante de um elenco estupendo e de William Hurt em estado de graça. Ele, que conquistou, merecidamente, o Oscar de melhor ator e também diversos outros prêmios de atuação naquele ano. Rodado em São Paulo, o filme teve uma excelente acolhida de crítica e público, o que possibilitou ao diretor outros trabalhos no exterior, mas sem o mesmo sucesso obtido por este.
Nos Bastidores da Notícia (1987)
Se James L. Brooks tivesse apenas produzido Os Simpsons, só isso já seria suficiente para que ele tivesse seu nome marcado na história da TV americana. Brooks, entretanto, fez muito mais do que isso. Ele é a mente criativa por trás de outras séries populares como Mary Tyler Moore e Taxi. Paralelo a seu trabalho na televisão, ele escreveu, produziu e dirigiu alguns filmes para cinema. Um deles trata justamente de um lugar que ele conhece muito bem: uma emissora de TV. Em Nos Bastidores da Notícia acompanhamos um triângulo amoroso-profissional que se estabelece entre as personagens de Tom (William Hurt), Jane (Holly Hunter) e Aaron (Albert Brooks). O filme é uma comédia romântica. Porém, mesmo sem se aprofundar nas questões propostas pelo roteiro, provoca uma discussão sobre ética jornalística e a espetacularização da notícia. Brooks é um ótimo roteirista e um excelente diretor de atores. É fácil comprovar isso pela maneira como o trio principal é apresentado no prólogo e a forma harmoniosa de interação em cena de todo o elenco.
O Turista Acidental (1988)
Existem aqueles que adoram viajar. Outros precisam por conta do trabalho. Alguns até viajam, mas gostam de se sentir em casa quando estão fora. Para este último grupo existe o guia do “turista acidental”. Este é o caso de Macon Leary (William Hurt), que detesta viajar e fazer qualquer coisa fora de sua rotina já programada. No entanto, o trabalho de Macon o “obriga” a viajar continuamente. Ele escreve guia de viagens para quem não gosta de viajar. Baseado no livro de Anne Tyler e adaptado e dirigido por Lawrence Kasdan, esse é o mote inicial de O Turista Acidental. Macon é metódico e vem de uma família igualmente metódica. Sua vida vira de cabeça para baixo quando uma tragédia familiar modifica completamente sua vida e motiva a separação de sua esposa, Sarah (Kathleen Turner), que não entende a aparente indiferença do marido. Um pequeno acidente doméstico faz com que ele conheça Muriel Pritchett (Geena Davis, no papel que lhe rendeu um Oscar de atriz coadjuvante). Kasdan, que iniciou a carreira como roteirista, sabe muito bem como estruturar uma história e faz isso com maestria neste tocante drama que tem seus bons momentos de “respiro” de humor, seja com a figura extrovertida de Muriel ou com a excêntrica família de Macon. E o elenco é de primeira.
Um Golpe do Destino (1991)
É comum ouvirmos dizer que os médicos se sentem como deuses. Muitos deles parecem insensíveis e não costumam estabelecer qualquer tipo de relação mais próxima com os pacientes. Pode até ser verdade, mas, em alguns casos, trata-se de um mecanismo de defesa. O doutor Jack MacKee (William Hurt) se enquadra perfeitamente nos dois grupos citados: sente-se um deus e sem compaixão alguma. Tudo, porém, muda em sua vida quando ele descobre-se um paciente também. Este é o mote deste filme dirigido em 1991 por Randa Haines. O roteiro, escrito por Robert Caswell, baseia-se no livro homônimo de Ed Rosenbaum. A diretora conduz sua narrativa “transitando” em uma tênue linha. Daquelas que têm todos os elementos para cair em melodrama carregado de clichês. Haines consegue escapar das armadilhas e tem em seu elenco o suporte necessário para manter a trama nos trilhos. Um Golpe do Destino fala de mudanças e superações. No entanto, o faz de maneira convincente, sem “forçar a barra”.
Cortina de Fumaça (1995)
“Se você não puder dividir seus segredos com seus amigos, então que tipo de amigo é você?”, pergunta Auggie para Paul. Este responde: “exatamente… a vida não valeria a pena”. Cortina de Fumaça tem como cenário principal uma tabacaria. Muitos dos diálogos do filme giram em torno de cigarros e charutos. Mas isso, como o próprio título nacional já anuncia, isso é apenas uma distração. O filme, dirigido por Wayne Wang, um chinês radicado nos Estados Unidos, a partir de um roteiro do escritor nova-iorquino Paul Auster, é uma ode à amizade. Auggie Wren (Harvey Keitel), é gerente de uma tabacaria no Brooklyn, em Nova York. Seu melhor cliente é o escritor Paul Benjamin (William Hurt), alterego de Auster. Ao redor dos dois orbitam diversas outras personagens e histórias. Auggie, todos os dias, no mesmo horário, bate uma foto da esquina de sua loja. Ele faz isso há anos. Paul precisa escrever um conto de Natal para uma revista e pede ao amigo que lhe conte uma história. É difícil descrever um longa como Cortina de Fumaça. As coisas acontecem de maneira sutil e envolvente. Sem pressa, o roteiro de Auster e a direção de Wang nos conduzem pelas vidas dessas pessoas que, de início, não conhecemos. Quando o filme termina, eles se tornaram nossos melhores amigos. Diálogos inspirados e personagens bem construídas são uma combinação infalível. De cara, você já aprende como medir o peso da fumaça. E no final, ao som da bela “Innocent When You Dream”, cantada por Tom Waits, somos brindados com um belo conto de Natal. E olha que ainda toca uma das melhores versões de “Smoke Gets in Your Eyes”, na voz de Jerry Garcia. Vencedor do Urso de Prata do Festival de Berlim de 1995, Cortina de Fumaça é daqueles filmes para se ter em casa e rever e rever e rever, sempre. Em tempo: logo após as filmagens, Paul Auster dirigiu junto com Wayne Wang, a partir de improvisos dos atores e de alguns outros convidados, uma continuação chamada Sem Fôlego (1995), que é legal, mas não tem o mesmo brilho. O DVD lançado no Brasil pela Editora Europa traz os dois filmes.
A Vila (2004)
Nem sempre é bom quando um artista chama muito a atenção em seus primeiros trabalhos. Quando o cineasta americano de origem indiana M. Night Shyamalan realizou O Sexto Sentido (1999), foi apontado como gênio e por conta da grande surpresa daquele filme criou-se uma enorme expectativa em relação aos seus trabalhos seguintes. De certa forma, Shyamalan, que é um diretor de muito talento, ficou estigmatizado. Não foi diferente com A Vila, lançado cinco anos depois. Aqui, acompanhamos o dia a dia de uma pequena e isolada aldeia que vive sob a contínua ameaça de criaturas que habitam seus arredores. Existe uma espécie de pacto entre os aldeões e os seres estranhos que moram na floresta. Um dos jovens moradores da vila, Lucius Hunt (Joaquin Phoenix), decide explorar a região além da floresta e essa ação provoca uma ruptura no tênue acordo existente. Mais uma vez Shyamalan desenvolve sua história como uma parábola e faz desta história um espelho da sociedade americana. Munido de um elenco dos sonhos, o diretor-roteirista-ator (ele faz uma ponta no filme!) discute, metaforicamente, a violência urbana e questões como segurança, relações familiares e choque de gerações. Conduz sua trama com habilidade e sutileza e nos reserva boas “surpresas”, que funcionam muito bem. Principalmente se o espectador não criar expectativas grandes demais e esperar ver um novo O Sexto Sentido.