Music

Ney Matogrosso – Homem com H

Musical presta tributo ao cantor ao recriar desde a turbulenta relação com pai ao sucesso da carreira solo após a saída dos Secos & Molhados

Texto por Abonico Smith

Foto: Lina Sumzono/Festival de Curitiba/Divulgação

Já faz meio século que um furacão chamado Ney Souza Pereira tomou conta da música brasileira para nunca mais abandoná-la. Desde a meteórica ascensão dos Secos & Molhados até a afirmação de sua carreira solo, iniciada logo após a turbulenta saída do trio e consolidada com uma série de hits pelos anos seguintes. Hoje prestes a completar 83 anos de idade, Ney Matogrosso continua bastante na ativa, produzindo discos e shows, sendo um ícone de gerações na representativa de questões relacionadas a gênero e sexualidade. Isso sem falar no seu gogó de ouro, capaz de produzir notas agudas que arrepiam; na performance, sempre capaz de enlouquecer multidões até os dias atuais; e na calibrada capacidade de escolher repertórios provocativos e que cutucam lá no fundo o conservadorismo da sociedade brasileira.

Por isso que construir um espetáculo musical sobre o artista ainda vivíssimo e esperneando constituiu-se um grande desafio para a turma que montou e colocou nos palcos Ney Matogrosso – Homem com H. A encenação – apresentada no Festival de Curitiba nas duas primeiras noites de abril – mostrou como é possível ser bem sucedida mesmo com as dificuldades mais do que naturais. Ancorada na personificação plena de Renan Mattos como o protagonista (mesmo com a dificuldade de chegar perto do falsete inigualável), o texto cobre desde a turbulenta relação familiar nos tempos de adolescência em Brasília até o sucesso profissional como cantor solo no Rio de Janeiro, depois da meteórica e badalada passagem pelos Secos & Molhados, trio vocal paulista que subverteu a música popular brasileira e desafiou a censura e os militares dos anos de chumbo no regime ditatorial que tomou conta do Brasil após o golpe de 1964.

O esquema do roteiro é simples. Uma sucessão de pequenos esquetes que cobrem paulatinamente o desenvolvimento do artista Ney. Sempre com muito humor, o que favorece ainda mais a aproximação com o público. O primeiro ato começa nas discussões às turras com o intransigente pai militar e se estende às descobertas da juventude em Brasília: drogas, sexualidade, carreira artística. Ao sair da capital federal como ambiente, Ney se joga na vida cultural Rio de Janeiro até ir a São Paulo e se tornar o vocalista do Secos & Molhados, trio que estava nascendo e já vinha sendo bastante cultuado no underground. O recorte histórico da parte inicial se encerra com a realização do fenômeno de vendas e popularidade, por isso mesmo, uma implosão interna motivada por um “golpe financeiro” aplicado nos incautos Ney e Gerson Conrad pelo membro mais atuante nas composições musicais: o português João Ricardo.

A costura musical, até mesmo por questões lógicas, não segue a mesma ordem cronológica da vida antes da entrada em cena do trio – até porque o artista ainda dava seus primeiros passos rumo à fama. Entretanto, farta-se de uma discografia solo, rica em composições com temáticas que ilustram com perfeição cada período retratado. A mobilidade do cenário, formado por diversos palanques cúbicos (de alturas diferentes) e uma dupla de rampas, colabora para a fluidez do roteiro. A cantora e compositora Luli (autora do hit “O Vira”) e o amigo Vicente Pereira (que nos anos 1980 se destacaria como um dos nomes-chave do teatro besteirol nos palcos cariocas) são as personalidades que aparecem com relativo destaque, inclusive sendo “resgatados” no segundo ato.

Passado o breve intervalo, entretanto, a correria toma conta da narrativa, em virtude do tanto de acontecimentos na careira solo de Ney na segunda metade dos anos 1970 e a primeira da década seguinte. Personagens entra e saem de cena, sem muito aprofundamento. Rita Lee é badalada, mas o nome de Roberto de Carvalho, guitarrista da banda solo do cantor montada logo após o Secos & Molhados, sequer é mencionado (Matogrosso foi o “cupido” do casal!). Rosinha de Valença, quem foi ela, afinal? A celebrada musicista desaparece em questão de segundos logo depois de estar no palco. O pianista Arthur Moreira Lima, lá no final, também resvala na tangente das citações, mesmo sendo a peça-motriz da mais significativa mudança artística de Ney durante os 1980s. Mazzola, o produtor artístico de muitos de seus discos, vai e vem, vai e vem, mas também sequer o seu porquê de estar ali é aprofundado. A seleção musical já passa a incluir canções alheias, não gravadas por Ney, mas com toda a relação com a ocasião enfocado. Por falar nisso, a fase do sucesso nacional estrondoso do RPM (primeiro show brasileiro a usar raio laser, com Matogrosso assinando a direção de iluminação) é solenemente ignorada, o que é uma pena.

Cazuza, este sim, recebe mais holofotes. Claro, foi um dos namorados que mais marcou a vida de Ney – e também sua obra. Com caracterização tão duvidosa quanto sua interpretação (que dividiu opiniões entre os jornalistas que cobriam o festival), o vocalista aparece em momentos de grande intimidade com o protagonista e ainda à frente do Barão Vermelho. Outro nome de destaque entre as relações pessoais do cantor também aparece com força: o médico Marco de Maria, o único com quem Matogrosso aceitou dividir o cotidiano em uma mesma casa. Tanto Marco quanto Caju faleceram em decorrência de complicações do vírus HIV. Por isso, a chegada de ambos em cena acaba por deixar um clima bem mais pesado e dramático no musical, que abandona quase que de vez o humor escrachado de antes. A enorme sombra da aids sobre toda a juventude daquela geração foi uma cruz muito pesada de se carregar para quem viveu aquela época (e sobreviveu!). Portanto, não havia mesmo como escapar dela no ato derradeiro mesmo mudando radicalmente a atmosfera de festa.

Foi justamente esta transformação comportamental de uma geração, porém, que sela o fim do musical de uma forma maravilhosa, apesar dos pequenos escorregões no decorrer da encenação de quase quatro dezenas de canções e quase três horas de duração. Os vários Neys que o Ney apresentou entre os anos 1970 e 1980 estão lá, até tudo terminar nele próprio, despido da persona sexualmente fantástica que todo mundo conheceu de início e passou a amar e idolatrar. O Ney Matogrosso incorpora o Ney Souza Pereira também no figurino e na performance de palco, fechando um ciclo de sucesso (e também de insistência, perseverança e também orgulho) para aquele jovem que se lançou no mundo querendo ser ator (e não cantor), sobreviver de sua arte e viver um dia a dia de liberdade plena, sem quaisquer amarras (as sentimentais também!), curtindo e sorvendo cada minuto da vida ao máximo. Homem Com H é um grande tributo a este múltiplo artista de meio século de magnificência e brilho intenso. Tanto que no próximo semestre partirá para uma turnê nacional por grandes arenas e estádios de futebol.

Set List: Primeiro ato – “Sangue Latino”, “Por Debaixo dos Panos”, “Tic Tac do Meu Coração”, “Assim Assado”, “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua”, “Vira-Lata de Raça”, “Bandido Corazón”, “Divino, Maravilhoso”, “Trepa no Coqueiro”, “Maria/The More I See You”, “Trepa no Coqueiro”,”Nem Vem que Não Tem”, “Balada do Louco”, “O Vira”, “Rosa de Hiroshima”, “Mulher Barriguda”, “Amor”, “Sangue Latino” e “Sei dos Caminhos”. Segundo ato – “América do Sul”, “Com a Boca no Mundo”, “Dancin’ Days”, “Tigresa”, “Não Existe Pecado ao Sul do Equador”, “Coubanakan”, “Mulheres de Atenas”, “Bandoleiro”, “Ano Meio Desligado”, “Maior Abandonado”, “A Maçã”, “Homem com H”, “Pro Dia Nascer Feliz”, “Poema”, “Blues da Piedade”, “O Tempo Não Pára”, “Mal Necessário”, “O Mundo é um Moinho”, “O Sol Nascerá” e “Homem com H”.

Music

Foo Fighters + Garbage + Wet Leg – ao vivo

Com duas bandas de abertura de luxo, banda de Dave Grohl faz show arrebatador em Curitiba com o baterista substituto de Taylor Hawkins

Foo Fighters (Dave Grohl e Josh Freeze)

Texto e foto Wet Leg por Abonico Smith

Fotos Foo Fighters e Garbage: Alessandra Tolc (Photolc)

Cobertura realizada em parceria com o site Rock On Board

Bogotá, 25 de março de 2022. A notícia vinda da Colômbia caía como uma bomba entre os espectadores do festival Estéreo Picnic que aguardavam ansiosamente para ver o show do headliner Foo Fighters. Horas antes, no quarto do hotel, o coração do baterista Taylor Hawkins não resistia a mais uma experiência química depois de tantos abusos. A banda, atônita e sem ter o que fazer, cancelava em cima da hora a apresentação no evento e tudo mais que ainda faria na perna sul-americana da turnê. A data subsequente seria no dia seguinte, no Brasil, em outro evento de grande porte, o Lollapalooza.

Curitiba, 7 de setembro de 2023. Para fazer dois concertos no Brasil, o Foo Fighters faz uma pequena pausa na tour norte-americana, que trouxe a banda de volta aos palcos em maio último. Um deles dentro de um festival, o The Town, em São Paulo. Dois dias antes, porém, o sexteto comandado por Dave Grohl pagou aos fãs daqui uma dívida de gratidão ao realizar na capital paranaense o primeiro show em solo brasileiro após a trágica morte de Hawkins e a confirmação de que a carreira da banda seguiria em frente. E o que se viu foi uma intensa troca de emoções. De um lado, uma plateia de cerca de 45 mil pessoas em êxtase, cantando de cabo a rabo todos os versos. Do outro, um frontman aliviado, agradecendo todo o apoio dado depois do baque. “Espero agora que, de alguma maneira, nós ajudemos vocês a sobreviverem, porque vocês nos ajudaram a fazer isso”, disse.

O responsável pela continuação da engrenagem, segundo o vocalista apontou, é o novo membro Josh Freese. “Ele já tocou em trezentas bandas. Vocês podem não reconhecê-lo mas com certeza conhecem algo de algum trabalho que já tenha feito”, disse. Baterista bastante requisitado tanto para estúdios como palcos, ele já tocou e gravou com gente como Nine Inch Nails, Guns N’Roses, Devo, Queens Of The Stone Age, A Perfect Circle, Weezer, Miley Cyrus, Selena Gomez, Katy Perry, Ricky Martin, Avril Lavigne, Danny Elfman e Sting. Comparado por muita gente na pista com o ator Ryan Gosling (astro de filmes como Barbie e La La Land), o “novato” mostrou ter sido mesmo a melhor escolha para a substituição de Hawkins. Destreza, segurança, habilidade, virtuosismo, diálogo com vários gêneros (hardcorehard rockheavy metalpop, reggae, punknew wave, industrial, indie) fazem parte de seu currículo. A única coisa que não dá para fazer mesmo é ocupar o lugar do falecido integrante à frente do palco.

Taylor era responsável por uma parte bem divertida dos shows do Foo Fighters: a hora dos covers variados e inusitados. Com a desenvoltura de rockstar, largava as baquetas para ocupar por duas ou três canções o microfone de Grohl, que, temporariamente, voltava a relembrar seus tempos de bateria no Nirvana. Agora, esses coversviraram apenas citações introdutórias durante a apresentação de cada um dos seis integrantes – pena que nada na íntegra, por Dave não saber a letra. No Couto Pereira, os fãs tiveram um pequeno aperitivo de Beastie Boys (“Sabotage”), NIN (“March Of The Pigs”), Ramones (“Blitzkrieg Bop”), Devo (“Whip It”) e um até então inédito na turnê Led Zeppelin (“Stairway To Heaven”, em um momento-piada sobre o tempo da gig). Ainda deu para acrescentar os enxertos de riffs de Black Sabbath (“Paranoid”), Jethro Tull (”Aqualung”) e Metallica (“Enter The Sandman”) no arranjo para “No Son Of Mine”, porque o vocalista queria “conhecer a plateia”.

show foi extenso, repertório idem. Em 2h45 de apresentação, a banda tocou 23 canções, pinçando faixas de nove dos dez álbuns da discografia. Teve espaço até para surpresas. Na volta para o bis, foi encaixada a recentíssima “The Teacher” (de But Here We Are, disco lançado no último mês de junho). Um pouco antes rolaram o reggae “Shame Shame” (de Medicine At Midnight, de 2021) e a semiconhecida “Generator” (de There’s Nothing Left To Lose, de 1999, quando o FF ainda dava seus primeiros passos como banda). Volta e meia, inclusive, Grohl exaltava a longa trajetória de 28 anos e celebrava a primeira vinda de muitos a um show do sexteto.

Musicalmente uma apresentação de Dave e sua turma é tiro certeiro. Hit atrás de hit praticamente, com a ajuda de coros em uníssono da plateia. Também ajuda a angariar uma ampla gama de fãs distintos toda a variedade de referências sonoras trazidas pelos seis músicos – valem aqui, aliás, os mesmos gêneros descritos mais acima para Josh. Em questão cênica, Grohl também é irrepreensível. Sabe como poucos comandar uma multidão. Segura sem parar, tanto em gestos quanto em palavras, a plateia durante quase três horas. Não existe quem não saia extasiado do local ao acender de todas as luzes. Banda e audiência.

Um encontro com o FF já valeria por toda a noite, ainda mais em se tratando de uma volta por cima de maneira efusiva e perfeita como já era antes da tragédia colombiana do ano passado. Só que a noite do Dia da Independência no estádio do Coritiba ainda teve de brinde duas grandes bandas como entradas para o prato principal.

Wet Leg (Hester Chambers e Rhian Teasdale)

Às seis e meia, já escurecendo, o Wet Leg abriu os trabalhos. Idealizado e comandado pelas vocalistas, guitarristas e BFF Rhian Teasdale e Hester Chambers, o quinteto formado durante a pandemia é a mais deliciosa surpresa do rock guitarreiro deste último par de anos. Suas letras são exemplo da mais bela despretensão literária, celebrando coisas cotidianas como a nota baixa da escola, um pedaço de merda, uma desilusão amorosa, o tédio ou o prazer de se divertir solitariamente em uma festa. Rhian, especialmente, dialoga muito bem com o universo adolescente. Veste roupas esportivas oversized a la Billie Eilish, Enche sua guitarra toda de adesivos brilhantes, coloridos e com motivos de bichinhos. Tenta se comunicar com a plateia falando ao microfone o máximo que sua visível timidez permite. Já tem 30 anos de idade mas achou um ponto de conexão com a molecada mais nova, que compõe boa parte do fanbase do grupo.

Seu homônimo álbum de estreia, lançado no ano passado pelo cultuado selo independente Domino, foi celebrado como um dos grandes títulos britânicos da temporada passada. Entre os prêmios conquistados neste ano estão dois Grammy (música e disco alternativos) e dois Brit Awards (banda e revelação). O show ainda é curto – são apenas dez canções (sendo seis singles celebrados por fãs, imprensa e até mesmo Barack Obama) e quarenta minutos que voam se você estiver dançando e curtindo sem parar. Mas a festa é garantida, a barulheira também. Já dá para prever um longo e excelente caminho para as meninas e seus companheiros. Em Curitiba, o Wet Leg foi bem recebido apesar do desconhecimento total de boa parte da plateia. Conquistou muita gente nova e ouviu os gritos de “what?” de seu hit maior, “Chaise Longue”, ecoando por todo o estádio.

Garbage (Shirley Manson e Butch Vig)

Como segunda atração da noite, às quinze para as oito, um nome de luxo: o Garbage. De carreira tão extensa quanto o FF, o grupo norte-americano é formado por três amigos superprodutores (os guitarristas Duke Erikson e Steve Marker, mais o baterista Butch Vig) e uma vocalista poderosa e carismática (a escocesa mais californiana que existe, Shirley Manson). No Couto Pereira, equilibrou o set list entre clássicos dos dois primeiros álbuns (o homônimo, de 1995, e Version 2.0, de 1998) e algumas faixas do mais recente (No Gods No Masters, de 2021). Ainda apresentou um convidado mais do que  especial: o baixista Eric Avery, também fundador do Jane’s Addiction. Depois de um começo morno, virou o jogo com “Cities In Dust”, cover de Siouxsie & The Banshees puxada para o lado industrial e lançada para o Record Store Day de 2022 como lado B do single de “Witness To Your Love”). Daí vieram os hits nineties “I Think I’m Paranoid”, “Stupid Girl”, “Vow”, “Push It” e “Only Happy When It Rains”. Esta última ganhou nova introdução, com veia bluesy, levada ao piano por Erikson e cantada com muito mais melancolia por Manson.

É pública e notória a química entre Vig, Marker e Erikson, que já produziram muitos discos de qualidade no Smart Studios, pequeno e aconchegante local de gravação situado em Madison, Wiscosin, e de propriedade dos dois primeiros. Garbage, Nirvana, Smashing Pumpkins, L7, Soul Asylum, Tegan & Sara, Sparklehorse, Fall Out Boy, Death Cab For Cutie e Tad, por exemplo, produziram boas faixas e álbuns clássicos ali. Manson soltando o gogó, performando como diva em estiloso vestido vermelho e sendo muito simpática com a plateia é a cereja do bolo. Contudo, alguma coisa incomoda no Garbage quando o assunto é a banda ao vivo. Chama a atenção nos arranjos muito das bases eletrônicas disparadas. Parece que os três músicos (exceção feita justamente ao extra Avery) estão ali apenas para soltar peso, distorção e presença de palco, preenchendo espaços que são bons aos olhos e à comunicação com a plateia mas que em um todo sonoro ficam aquém do esperado para tamanha magnitude deles nos estúdios. Claro que não compromete em nada o resultado final, mas para quem espera um pouco mais de entrega musical ali no cara a cara esta combinação entre o live e o pré-gravado soa como algo entre o preguiçoso e o relaxado.

Set list Foo Fighters: “All My Life”, “The Pretender”, “Learn To Fly”, “No Son Of Mine”, “Rescued”, “Walk”, “Times Like These”, “Under You”, “La Dee Da”, “Breakout”, “My Hero”, “This Is A Call”, “The Sky Is A Neighborhood”, “Shame Shame”, “Nothing At All”, “These Days”, “Generator”, “The Glass”, ”Monkeywrench”, “Aurora” e “Best Of You”.Bis: “The Teacher” e “Everlong”.

Set List Garbage: “Supervixen”, “The Men Who Ruled The World”, “Wolves”, “Cities In Dust”, “I Think I’m Paranoid”, “Godhead”, “Stupid Girl”, “Vow”, “Only Happy When It Rains” e “Push It”.

Set list Wet Leg: “Being In Love”, “Wet Dream”, Supermarket”, “Convincing”, “Oh No”, “Piece Of Shit”, “Ur Mum”, “Too Late Now”, “Angelica” e “Chaise Longue”.

Movies

Oppenheimer

Cinebiografia do “pai da bomba atômica” traz três horas de grandiloquência e desafios autorais com a assinatura de Christopher Nolan

Texto por Abonico Smith

Foto: Universal Pictures/Divulgação

A biografia de Julius Robert Oppenheimer é uma das mais interessantes do último século. Nova-iorquino descendente de uma abastada família de origem germânica e judia, cresceu com os estudos bancados em uma conceituada escola particular chamada Ethical Cultural Society, algo bastante incomum para uma criança naquele início dos 1900. Logo manifestou interesse por áreas diversas, chegando a se formar em Matemática, Ciências e Literaturas Grega e Francesa. 

Apreciador também das artes, seu  negócio mesmo era estudar. Com afinco e muita dedicação. Terminou em 1925 a faculdade de Química em Harvard e logo se mudou para o Reino Unido. Como seu negócio não era ficar manuseando os equipamentos de um laboratório, partiu, na sequência, para fazer doutorado em Física na Alemanha. Pelo menos ali, o ambiente era de sua preferência: estar em contato com físicos renomados e mergulhar de cabeça nas mais trabalhadas e complicadas questões teóricas da área. Enquanto investigava processos em partículas subatômicas, já como professor de física repatriado aos Estados  Unidos, começou a se envolver em assuntos políticos que o preocupavam: a ascensão do fascismo na Europa, em especial o nazismo na terra natal de seu pai. Passou, inclusive, a financiar organizações contra a extrema-direita após herdar a fortuna da família e flertou brevemente com o partido comunista, o qual abandonou também após se decepcionar com o desdém da ditadura stalinista em relação à ciência. Até que, advertido por Albert Einstein e Leo Szilard sobre a ameaça de Hitler ter em mãos o pioneirismo de ter uma bomba atômica, passou a pesquisar como ter o urânio 235 a partir do mineral natural e foi contratado pelo governo norte-americano, em 1942, para chefiar o Projeto Manhattan e comandar uma equipe de cientistas para obter, em um megalaboratório secreto, a energia nuclear a fim de ser incluída em operações militares. Era contra o uso de toda e qualquer arma química como instrumento de guerra, inclusive chamava a indústria armamentista de trabalho demoníaco. Após o sucesso do grande teste realizado em 1945 no deserto de Los Alamos, no Novo México, demitiu-se da direção do projeto. Semanas depois, viu o mundo se aterrorizar com os dois cogumelos que dizimaram as regiões das cidades de Hiroshima e Nagasaki, escolhidas para serem o alvo de uma nação japonesa que ainda não havia se rendido na Segunda Guerra Mundial. Oppie – como era carinhosamente chamado – não só entrou para a História (contra a sua vontade e interesse) como “o pai da bomba atômica” como ainda caiu em desgraça em seu país, através de mentiras e manipulações políticas movidas pelo conservadorismo maccarthista que o levaram a julgamentos e destruíram sua reputação pública e a trajetória profissional.

Uma figura tão controversa e famosa só poderia ter sua biopic com a assinatura de outro nome do cinema com credenciais iguais: o diretor, roteirista e produtor Christopher Nolan. Eis que Oppenheimer (Reino Unido/EUA, 2023 – Universal Pictures) chega às telas com toda a grandiloquência possível. Primeiro, é uma biografia de três horas de duração, feita com tecnologia para ser exibida em telas IMAX (inclusive com a primazia de exibir, estilosamente, várias cenas em preto e branco). Depois, a data escolhida para o lançamento: em pleno verão lá de cima, período reservado para as estreias de blockbusters populares (como,por exemplo, Barbie, com quem luta pelas bilheterias neste fim de semana de estreia). Tem também o elenco recheadíssimo de estrelas: Cillian Murphy (o protagonista, em magistral atuação), Emily Blunt (a esposa), Florence Pugh (a amante), Robert Downey Jr (o antagonista), Kenneth Branagh, Matt Damon, Gary Oldman, Josh Hartnett, Matthew Modine, Benny Safdie, Rami Malek, Casey Affleck, Olivia Thrilby, Jason Clarke, James D’Arcy e outros mais em pontas ou papéis secundários.

Claro que a cinematografia de Hoyte van Hoytema (parceiro de Nolan em vários outros filmes) é um luxo só. Não só em toda a sequência que culmina no momento de maior dramaticidade, o teste bem sucedido da megaexplosão em Los Alamos. Os muitos closes em Oppie e mais a fusão entre os delírios, os pensamentos e a realidade vivida por ele também reforçam a tensão que sempre o rondou por vários anos (o antes e o depois da “fama”). O desenho de som também impressiona – e ainda prega uma grande peça na hora H da tal explosão. Outro bom trunfo do longa é todo o  vai-vem da narrativa criada pelo próprio Nolan, que adianta e antecede no tempo o tempo todo, desorientando o espectador quanto a causas e consequências durante a trajetória do cientista.

Aliás, as três horas de duração também se tornam um grande truque imposto pelo cineasta ardiloso para o público. Uma sucessão de personagens aparecem e desaparecem da tela, muitos dados e conceitos teóricos (que vão de física e química a política e ética) embaralham a mente. Torna-se um grande desafio ficar imerso na poltrona do cinema por todo este tempo, ainda mais se a pessoa não tem muito conhecimento prévio da Segunda Guerra Mundial ou mesmo paciência para uma trama mais reflexiva e sem muitos efeitos visuais criados por CGI (o que é bem comum nos blockbusters apresentados em Imax e algo ausente em uma obra do diretor). Não será comum ver gente saindo do cinema reclamando que muito deste tempo poderia um pouco reduzido. Por isso mesmo, Barbie larga com amplo favoritismo na somatória das bilheterias do mundo todo.

Desta forma, Nolan continua sendo Nolan com toda pompa possível. Oferece mais um filme difícil, perfeccionista e impactante. E mais: ao recontar a história de Oppenheimer, brinca de mergulhar no passado para mexer com as entrelinhas do presente. Não será muito difícil fazer conexões mentais com fatos e pessoas do nosso tempo recente. 

Movies

Jeanne Dielman

Slow cinema de Chantal Akerman perturba ao retratar a rotina de três dias de uma mãe solo em um bairro modesto de Bruxelas

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Divulgação

No final de 2022, a tradicional lista de melhores filmes da História da revista britânica Sight & Sound foi publicada e carregou consigo uma surpresa: pela primeira vez, um filme dirigido por uma mulher foi considerado o melhor de todos. É Jeanne Dielman (Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles, Bélgica/França, 1975), da cineasta Chantal Akerman, que foi exibido nas telas do 12° festival Olhar de Cinema, em Curitiba, neste mês de junho.

Essa é uma obra disruptiva na história do cinema. Com seu olhar feminista, a belga Akerman traz à tela o trabalho doméstico não pago e toda a pressão psicológica que o acompanha ao retratar três dias na vida de Jeanne (Delphine Seyrig), sua protagonista. Assistimos a ela descascando batatas, lavando a louça, se vestindo e despindo, preparando as refeições para si mesma e o filho, Sylvain (Jan Decorte), e por aí vai. A rotina agonizantemente dedicada ao outro de uma mãe solo num bairro modesto de Bruxelas.

slow cinema de Chantal, estética que privilegia a ação sem cortes, a câmera parada e a reflexão sobre a passagem do tempo, não faz do filme uma experiência vazia. Muito pelo contrário. Cada plano tem um propósito, cada detalhe se torna gritante quando encarado por vários minutos em uma tela de cinema. Há um motivo para cada gesto da interpretação de Seyrig, que se mescla à parede do quarto, faz-se sumir em seu pijama. Há uma razão para a ausência de contrastes nos cômodos desta casa, sempre preenchida por uma luz chapada que deve ser apagada sempre que se caminha do banheiro à sala, à cozinha, ao quarto. 

Ao sentir o tempo despendido por Jeanne, embarcamos em um estado de reflexão constante sobre sua condição consigo mesma, com aqueles com que se relaciona e com o mundo patriarcal da Europa setentista. Neste sentido, um olhar particularmente brasileiro percebe como a arte desse período e local discutia temáticas que tardaram muito a serem introduzidos por aqui.

Ainda assim, o longa-metragem ganha fôlego na história do cinema em sua qualidade universal. O retrato da mulher de baixa renda, com o filho encostado, presa a rituais e rotinas das quais não deseja fazer parte, toca a todos – ou pelo menos deveria. Vê-lo não é uma experiência tranquila e este empacamento é absolutamente essencial à compreensão da obra. Se não aguentamos nem três horas da vida de Jeanne Dielman, uma mulher entre várias a estar presa neste papel, quem dirá uma vida inteira? Chantal Akerman cria um exercício provocativo de alteridade, olhar e reconhecer a diferença, e por isso causa tamanho incômodo.

A maioria do público que esteve na sessão que acompanhei no Olhar de Cinema, em um domingo à tarde em Curitiba, era masculina e cisgênera. É uma declaração indissociável da recepção do filme, que explica a hesitação nas palmas e os comentários de “esperava outra coisa” que rondavam o público. Se este é o caso aqui, não é preciso muito esforço para perceber o tamanho do choque causado pela estreia da obra no festival de Cannes em 1975.

Na esteira da criação de Akerman e Seyrig, que também foi uma cineasta engajadíssima no feminismo na sétima arte, toda uma nova tradição formal, temática e de voz pode ser percebida. A quem interessa o estudo do Cinema, é uma obra indispensável. A quem interessa a reflexão crítica sobre o modo de vida e trabalho que nossa sociedade leva, é uma obra indispensável. Muitos podem não gostar, mas não vejo quem não poderia se beneficiar da experiência de acompanhar, por meros três dias, a vida de Jeanne Dielman. 

Movies

Drive My Car

Concorrente japonês ao Oscar é um belo convite à contemplação de nós mesmos e a revisão de nossos traumas e experiências negativas

Texto por Tais Zago

Foto: O2 Play/MUBI/Divulgação

Duas horas e cinquenta e nove minutos. Praticamente três horas. Essa é a duração do novo filme do diretor japonês Ryusuke Hamaguchi (que também fez Roda do Destino, lançado no ano passado). Drive My Car (Doraibu Mai Kâ, Japão, 2021 – O2 Play/MUBI/Divulgação) é uma saga histórica, cheia de reviravoltas e personagens espetaculares? Não é. É um romance que se desenvolve ao longo de anos com laços duradouros entre várias famílias? Também não. O roteiro é bem simples e baseado em três contos de Haruki Murakami: um diretor recentemente viúvo é chamado para trabalhar por dois meses em uma produção multicultural da peça Tio Vânia, de Anton Tchecov, na casa do teatro local de Hiroshima. Para ir e voltar de suas acomodações, ele conta com uma motorista. 

Boa parte do filme se passa na sala de ensaios do teatro onde o elenco trabalha junto ao diretor e à produção, nos diálogos famosos do escritor e dramaturgo russo. Outra parte grande são as viagens, com uma hora de duração, que o diretor, Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima), faz com sua jovem motorista, Misaki Watari (Tôko Miura), entre o teatro e a casinha idílica onde está hospedado. E em boa parte dessas viagens o pano de fundo são diálogos de Tio Vânia, gravados em uma fita cassete pela finada mulher de Kafuku, Oto (Reika Kirishima).

Com essa descrição crua, provavelmente, 80% da audiência fugiria do filme. Mas não. O público não só não fugiu como ficou sentadinho até o último minuto e a crítica cobriu a obra dos mais belos louros como o prêmio de melhor roteiro em Cannes em 2021. Agora, no Oscar de 2022, Drive My Car concorre em quatro categorias (filme, direção, roteiro adaptado e filme internacional). Eu imagino (até aposto) que vai levar pelo menos uma dessas para casa.

Hamaguchi faz parte daquela restrita lista de cineastas que conseguiram fazer mais de um filme por ano. Uma categoria de peso que inclui Steven Spielberg e Ridley Scott. No Japão, o diretor já possui uma rica carreira e suas produções são bem conhecidas e festejadas. Nessa outra metade do globo ainda estamos conhecendo seus trabalhos. E ele não decepciona. Seus filmes tratam de dores psicológicas, de perdas, de amor, de reencontros consigo mesmo. De luto.

Yusuke e Misaki estão tão distantes um do outro quanto duas pessoas poderiam estar. Ele, um dramaturgo e ator consagrado de 47 anos. Ela, uma menina de origem extremamente humilde, de 23 anos, cuja única habilidade é dirigir. Mesmo assim, o que une esses dois personagens é tão forte, tão visceral, tão comovente que somos embalados e suavemente conduzidos nessa viagem. Sentimos junto com eles os quilômetros rodados num inverno frio e escuro, de montanhas nevadas, de mar revolto. O filtro azul nos carrega do começo ao fim na fotografia que contrasta com a hospitalidade dos funcionários do teatro ou da leveza do elenco. Pessoas felizes, vivendo suas vidas, sem, aparentemente, grandes sofrimentos. Enquanto isso, Watari e Kafuku afogam seus sentimentos, os sufocam, os escondem no porta-malas do pequeno carro SAAB vermelho. A dureza e o silencio é a única coisa que permite que ambos não desmoronem, que não saiam da estrada em alta velocidade rumo ao abismo do desespero.

Em tempos de gratificação rápida e instantânea, às vezes, desaprendemos a importância de degustar os momentos solenes, a contemplação de nós mesmos. Por isso, Drive My Car é, acima de tudo, um convite a saborear a dor e os caminhos que as pessoas escolhem para trabalhar suas experiências negativas e seus traumas. E quem prestar bastante atenção vai ver que não são poucas as desilusões que preenchem esses 179 minutos, algumas refletidas nos textos de Tchecov, outras no compartilhamento de experiências. Como nas confissões que o jovem ator Kôji Takatsuki (Masaki Okada) faz a Kafuku ou a bela/triste história de Lee Yoon-a (Park Yu-Rim), a atriz coreana que interpreta Sonia na peça, usando a linguagem de sinais.

Drive My Car não é um filme leve, mas tem um final feliz. Ou pelo menos ele pode ser interpretado assim, pois deixa um pouco aberto o que ocorreu com seus personagens. E é exatamente isso que faz o destino dessa viagem ser ainda mais interessante.