Movies

Hamlet

Projeto documental acompanha uma das lideranças das ocupações realizadas por estudantes gaúchos durante o ano de 2016

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Galo de Briga Fimes/Divulgação

Em 2016, centenas de escolas de ensino médio foram ocupadas ao redor do Brasil. Nossa modesta Primavera Árabe, aquela chamada Primavera Secundarista, inseriu-se no contexto arisco da defesa da presidente Dilma Rousseff contra o golpe que sofria por parte do Congresso Nacional, de Michel Temer e demais setores dos três poderes – “Com o Supremo, com tudo”, como imortalizou Romero Jucá.

Nesse contexto, mas também reivindicando mais atenção às políticas públicas de educação, o Brasil foi tomado pelo breve protagonismo da juventude. Se o corajoso movimento não rendeu muitos frutos, afinal a democracia atual se encontra sob ataques muito mais graves que o neoliberalismo do governo Temer, ainda nos propicia uma série de reflexões.

Observando de perto a movimentação das ocupações gaúchas, Hamlet (Brasil, 2022 – Galo de Briga Filmes) é um projeto documental que acompanha Fredericco Restori, uma das lideranças dos ocupantes de uma grande escola de Porto Alegre. A narrativa dispersa é muito mais uma coleção de momentos – plenárias, assembleias, reuniões entre ocupantes, palestras e até a hora do videogame – que uma representação ampla e didática do período da ocupação.

Num primeiro momento, a câmera errática dirigida por Zeca Brito parece incerta do que quer filmar. O registro histórico se inicia numa grande plenária, em que já desponta a presença de Fredericco. Embora este seja nosso protagonista desde a primeira cena do longa-metragem, Brito parece muito mais interessado na coletividade dos ocupantes do colégio, um conjunto de sem nomes que insiste na “horizontalidade democrática”, por assim dizer, e nunca é gravada só. 

O foco constantemente desregulado, a princípio, parece sintoma de uma operação de câmera ansiosa em capturar a essencialidade do momento, mas logo se denuncia em seu exagero: ao compor as sequências cotidianas da ocupação, assim como suas seções mais dialógicas, Zeca Brito escancara seu próprio processo de formalização, ainda que busque escondê-lo sob um fino véu de naturalismo. Partimos do “parece ser” para o “quer parecer ser”, um movimento que não é ruim em si mesmo, mas interessante por nos lembrar que documentário não é realidade – é cinema.

Num segundo momento, esteticamente mais interessante, Hamlet assume seu discurso mais narrativo que repórter, utilizando ligações telefônicas de Fredericco como meio para a exposição de seu conflito interno, que também é refletido em sequências subjetivas. A bem da verdade, esse estatuto da obra sempre esteve presente, já que o filme se inicia, antes do registro histórico das ocupações, com uma conversa entre Fredericco e um homem mais velho tecendo comparações entre sua condição de liderança e a dúvida central de Hamlet: “ser ou não ser, eis a questão”.

Se o filme não esconde a condição de líder que caracteriza Fredericco, sua ideologia juvenil, a princípio, recusa-se a aceitá-la. Ao longo de Hamlet, sua posição vai de “precisamos manter a horizontalidade para não tornar este um movimento fascista” para “eu queria ser líder, e era líder, mas não tinha coragem de admitir”. A ingenuidade da mobilização secundarista permeia todos os acontecimentos do filme – desde a rusga desmobilizada com entidades de base da categoria, como a UBES e a UNE, até a escuta atenta aos ensinamentos do grande crítico e cineasta brasileiro Jean-Claude Bernadet sobre a conjuntura política. 

Justamente por essa inerente ingenuidade, alguns dos momentos aqui retratados conferem ao filme um curioso frescor: um “vai chorar” que vaza na captação sonora durante um protesto; o canto “Bololo ha ha, quero ver desocupar”, eco da relação entre política e cultura que é muito única a cada geração que a vive; a incessante descoordenação da massa durante momentos de tensão, em que o silêncio é um episódio raro que, quando acontece, é muito efêmero.

Contudo, se esses momentos evocam no espectador não mais que a curiosidade e, quando muito, um sorriso de canto de boca, igualmente não se sente o peso que se propõe em Fredericco. A deslocada comparação com Hamlet, que pretende dar tom ao filme, só se dá com clareza na última cena, numa fraca articulação entre o concreto (a ocupação) e o abstrato (as conjecturas posteriores sobre a relação entre vida e arte) que não oferece material suficiente para se realizar. De fato, às vezes a vida imita a arte, assim como a arte imita a vida. Mas nem sempre.

Movies

Marighella

História do militante revolucionário que lutava contra a ditadura militar brasileira chega, enfim, aos nossos cinemas

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Paris Filmes/Divulgação

Embora tenha sido jogado ao mundo em fevereiro de 2019 durante o Festival de Berlim, Marighella ainda não viu a luz do dia em telas brasileiras. Porém, esse atraso não é tão controverso quanto os nomes que assinam a produção.

É notória e assumida a cooperação da Rede Globo com as forças golpistas desde 1964 até o final da ditadura militar, o que justifica a surpresa da comunidade cinéfila ao saber que sua produtora (Globo Filmes) financiou um filme sobre o inimigo número um do Brasil no período. Soa estranho, não?

Contudo, Marighella (Brasil, 2019 – Paris Filmes) é um filme cuja antecipação vai muito além dessa conjuntura, que pode ser frutiferamente discutida em outro momento. Filme de estreia de Wagner Moura na direção, ele é escrito pelo consagrado ator e por Felipe Braga, adaptando o livro de Mário Magalhães sobre o político brasileiro. Sua narrativa aborda a participação do deputado constituinte na formação e queda da ALN, célula revolucionária conhecida pela luta armada durante a ditadura militar.

Mas Moura e Braga optam por apresentar uma narrativa um tanto mais horizontal do que se espera de um filme biográfico, dando espaço para todos os personagens que revolvem Carlos Marighella (Seu Jorge), um pequeno grupo de jovens comunistas e seu parceiro de longa data, Branco (Luis Carlos Vasconcellos). Se, por um lado, a decisão permite abordar temas mais amplos e estabelecer um discurso que ultrapassa o personalismo, acaba por impedir a investigação profunda da história e psique do personagem-título.

Como consequência, Marighella é descaracterizado, pois o conhecemos somente como guerrilheiro expulso do PCB, ignorando (pois há pouca ou nenhuma menção no filme) seu passado como deputado constituinte e também preso político da era Vargas. Da mesma forma, o delegado responsável por sua caça e morte, Sérgio Fleury, é substituído por um personagem fictício, interpretado por Bruno Gagliasso. Assim também ocorre com os guerrilheiros que integram a ALN.

Limitado pelo descompasso histórico, o longa decide retratar uma organização revolucionária empregando uma lógica antirrevolucionária – um filme que boicota seu protagonista. Com a angústia da Aliança em primeiro plano, o que felizmente permite que o filme não descambe em mera ação pela ação, Moura mantém a esperança dos guerrilheiros em evidência, a despeito de toda a desgraça e traição da narrativa. 

Em um desespero constante, o núcleo de guerrilheiros não faz mais que cair, mesmo que, cena após cena, os diálogos de Braga e Moura insistam em frases de efeito e chavões cafonas e esperançosos que reduzem os atos da célula a um ideologismo míope. É, inclusive, escabrosa (e aqui busco dar o mínimo de spoilers possível, mas caso prefira entrar na experiência sem saber nada, pule este parágrafo agora) a divisão narrativa que ocorre após uma emboscada matar dois colegas de Marighella. Na cena, o protagonista encara diretamente a câmera – em clara referência do cinema de Spike Lee – e assume que “se é terrorismo que eles querem, é terrorismo que terão”. As ações que seguem pouco justificam a cena, tornando-a dispensável, embora o efeito de “extremizar” a atuação das personagens seja muito bem telegrafada.

Este não é o único aceno à filmografia de Lee, que parece compor junto à caótica câmera na mão de Fernando Meirelles o rol de referências de Wagner Moura, que não consegue imprimir uma forte autoralidade na obra. É evidente que a cadência que o diretor busca estabelecer tem a intenção de apresentar a figura histórica a uma audiência ampla, mas acaba por gerar problemas de ritmo que se originam na quantidade elevada de arcos narrativos – cuja maioria funciona bem e entrega o peso emocional pretendido, mas rapidamente perde impacto por já termos de lidar com outra linha narrativa.

De projeção polêmica, Marighella é um retrato da opressão militar a um movimento revolucionário que acaba por reiterar a atmosfera antirrevolucionária e, principalmente, contrária à luta armada de seus protagonistas. Tem bons aspectos técnicos, envolvente trilha sonora e atuações potentes (a despeito da insistência de Seu Jorge de entoar cada sílaba de maneira plástica e novelesca), mas entrelaça suas partes com um pano opaco que, naturalmente, levanta dúvidas sobre seu teor biográfico.

Movies, TV

Bo Burnham: Inside

Comediante de stand up usa esquetes musicais para aproximar a audiência de seu humor temático em tempos de isolamento social

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Netflix/Divulgação

O boom de popularidade da Netflix trouxe consigo maior atenção a um gênero específico de comédia: o especial de stand up comedy. De Dave Chappelle e Louis C.K. a Adam Sandler e até o dadaísta do século 21 Eric Andre, a lista de atrações do tipo nas plataformas de streaming aumenta a cada dia. Entre esses nomes, desponta o de Bo Burnham, comediante e ator cujo último especial datava de 2016, mas lança o introspectivo e inovador Inside acabando com seu hiato nos “palcos”.

Bo Burnham: Inside (EUA, 2021 – Netflix) é um longa-metragem especialmente pandêmico – dirigido, gravado e editado pelo próprio comediante em isolamento, ao mesmo tempo que aborda temas profundamente pessoais que, de uma forma ou outra, todo espectador teve de lidar em algum momento da pandemia de covid-19. Ao acostumar-se com o modelo de produção e desenvolver sua linguagem, o filme se torna melhor à medida que avança.

De um experimentalismo ímpar às produções de comédia da Netflix, o filme aceita sua condição de “banda de um homem só” e dá asas à criatividade com pouco mais de um projetor, uns painéis de luz e um estrobo. O humor fortemente musical de seu protagonista parte do tradicional esquema de voz, piano e risadas de fundo a uma produção musical completa e rica. Cada canção é um videoclipe único em estilo e, ao mesmo tempo que distinto em relação aos demais, capaz de formar coesão entre as seções do longa-metragem.

Contudo, a fórmula de Burnham para a realização de cada esquete musical é bastante repetitiva. Toma-se consciência do fluxo de edição do comediante já nas primeiras frações de Inside, o que empaca sua primeira metade consideravelmente – ainda mais àqueles que não nutrem interesse particular em stand up musical. Se esse esquecível início do especial mira em temas contundentes com o cenário político-racial dos Estados Unidos e as adaptações de convivência no início da pandemia, o panorama finalmente muda quando Bo mira em assuntos mais pessoais. A qualidade acompanha positivamente essa mudança.

O trunfo de Bo Burnham: Inside está, justamente, em aliar a mudança formal de um especial de comédia com um intenso intimismo temático. Qualquer um que sofreu com o isolamento em algum momento da pandemia encontra nas canções um espelho de sua própria inércia. O comediante também propõe uma coesão temática maior – o escurecimento dos quadros, as interseções com conteúdos amplamente consumidos na internet, reflexões sobre seu papel nas vidas contemporâneas e autorreflexões profundas definem o tom do restante da obra. Tudo presente no texto, nas piadas de fato, e na linguagem, com fotografia e montagem sempre de acordo com o discurso explorado.

Bo inicia seu Inside questionando a si mesmo: seria esse o momento para fazer piadas? Se a primeira parcela de seu longa-metragem é, de fato, a tentativa de “curar o mundo com a comédia”, como propõe, a consequência é a aceitação da impossibilidade da tarefa, o encarar o abismo e, depois de muito tempo, perceber que ele devolve um humor que beira o deprimente. Por isso, talvez, seja tão capaz de conversar com a audiência.