Movies

Hamlet

Projeto documental acompanha uma das lideranças das ocupações realizadas por estudantes gaúchos durante o ano de 2016

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Galo de Briga Fimes/Divulgação

Em 2016, centenas de escolas de ensino médio foram ocupadas ao redor do Brasil. Nossa modesta Primavera Árabe, aquela chamada Primavera Secundarista, inseriu-se no contexto arisco da defesa da presidente Dilma Rousseff contra o golpe que sofria por parte do Congresso Nacional, de Michel Temer e demais setores dos três poderes – “Com o Supremo, com tudo”, como imortalizou Romero Jucá.

Nesse contexto, mas também reivindicando mais atenção às políticas públicas de educação, o Brasil foi tomado pelo breve protagonismo da juventude. Se o corajoso movimento não rendeu muitos frutos, afinal a democracia atual se encontra sob ataques muito mais graves que o neoliberalismo do governo Temer, ainda nos propicia uma série de reflexões.

Observando de perto a movimentação das ocupações gaúchas, Hamlet (Brasil, 2022 – Galo de Briga Filmes) é um projeto documental que acompanha Fredericco Restori, uma das lideranças dos ocupantes de uma grande escola de Porto Alegre. A narrativa dispersa é muito mais uma coleção de momentos – plenárias, assembleias, reuniões entre ocupantes, palestras e até a hora do videogame – que uma representação ampla e didática do período da ocupação.

Num primeiro momento, a câmera errática dirigida por Zeca Brito parece incerta do que quer filmar. O registro histórico se inicia numa grande plenária, em que já desponta a presença de Fredericco. Embora este seja nosso protagonista desde a primeira cena do longa-metragem, Brito parece muito mais interessado na coletividade dos ocupantes do colégio, um conjunto de sem nomes que insiste na “horizontalidade democrática”, por assim dizer, e nunca é gravada só. 

O foco constantemente desregulado, a princípio, parece sintoma de uma operação de câmera ansiosa em capturar a essencialidade do momento, mas logo se denuncia em seu exagero: ao compor as sequências cotidianas da ocupação, assim como suas seções mais dialógicas, Zeca Brito escancara seu próprio processo de formalização, ainda que busque escondê-lo sob um fino véu de naturalismo. Partimos do “parece ser” para o “quer parecer ser”, um movimento que não é ruim em si mesmo, mas interessante por nos lembrar que documentário não é realidade – é cinema.

Num segundo momento, esteticamente mais interessante, Hamlet assume seu discurso mais narrativo que repórter, utilizando ligações telefônicas de Fredericco como meio para a exposição de seu conflito interno, que também é refletido em sequências subjetivas. A bem da verdade, esse estatuto da obra sempre esteve presente, já que o filme se inicia, antes do registro histórico das ocupações, com uma conversa entre Fredericco e um homem mais velho tecendo comparações entre sua condição de liderança e a dúvida central de Hamlet: “ser ou não ser, eis a questão”.

Se o filme não esconde a condição de líder que caracteriza Fredericco, sua ideologia juvenil, a princípio, recusa-se a aceitá-la. Ao longo de Hamlet, sua posição vai de “precisamos manter a horizontalidade para não tornar este um movimento fascista” para “eu queria ser líder, e era líder, mas não tinha coragem de admitir”. A ingenuidade da mobilização secundarista permeia todos os acontecimentos do filme – desde a rusga desmobilizada com entidades de base da categoria, como a UBES e a UNE, até a escuta atenta aos ensinamentos do grande crítico e cineasta brasileiro Jean-Claude Bernadet sobre a conjuntura política. 

Justamente por essa inerente ingenuidade, alguns dos momentos aqui retratados conferem ao filme um curioso frescor: um “vai chorar” que vaza na captação sonora durante um protesto; o canto “Bololo ha ha, quero ver desocupar”, eco da relação entre política e cultura que é muito única a cada geração que a vive; a incessante descoordenação da massa durante momentos de tensão, em que o silêncio é um episódio raro que, quando acontece, é muito efêmero.

Contudo, se esses momentos evocam no espectador não mais que a curiosidade e, quando muito, um sorriso de canto de boca, igualmente não se sente o peso que se propõe em Fredericco. A deslocada comparação com Hamlet, que pretende dar tom ao filme, só se dá com clareza na última cena, numa fraca articulação entre o concreto (a ocupação) e o abstrato (as conjecturas posteriores sobre a relação entre vida e arte) que não oferece material suficiente para se realizar. De fato, às vezes a vida imita a arte, assim como a arte imita a vida. Mas nem sempre.

Music

Arctic Monkeys

Oito motivos (entre eles alguns que envolvem o aguardado álbum The Car, que acaba de ser lançado) para não perder os shows dos britânicos no Brasil

Texto por Abonico Smith

Fotos: Divulgação

Se existe um dos nomes mais aguardados pelos fãs brasileiros de indie rock neste fim de ano, ele é o do Arctic Monkeys. Afinal, o grupo liderado pelo guitarrista, vocalista principal e letrista Alex Turner está de volta aos discos e palcos.

Passado um intervalo de quatro anos, o quarteto volta a lançar um novo álbum, The Car, o sétimo trabalho de estúdio da carreira, que chegou oficialmente às lojas físicas e plataformas digitais neste último 21 de outubro. Trazendo como base a divulgação desta coleção de dez novas faixas, Turner, Jamie Cook (guitarra, teclados), Nick O’Mailey (baixo) e Matt Helders (bateria e backing vocals) já estão na estrada desde o verão europeu.

Depois de participarem de um punhado de festivais, o grupo levou a turnê homônima aos Estados Unidos e mais alguns países do Velho Continente antes de chegar à América Latina, onde passa o próximo mês com datas marcadas para Brasil, Paraguai, Chile, Argentina, Peru, Colômbia e México. Em território nacional, o grupo é um dos headliners da primeira noite (5 de novembro) da primeira edição da edição em verde e amarelo do Primavera Sound, em São Paulo, no Distrito Anhembi (outras informações sobre o festival você tem aqui). Na véspera (dia 4), fazem um dos sideshows do Primavera no Rio de Janeiro na Jeneusse Arena. O segundo compromisso (dia 8) será em Curitiba, na Pedreira Paulo Leminski. Em ambas as oportunidades, a atração de abertura ficará por conta dos nova-iorquinos do Interpol, também escalados para o Primavera BR. Mais sobre os ingressos desses dois concertos paralelos você pode encontrar clicando aqui.

Como esquenta dessa nova vinda ao país de uma das mais importantes formações do rock britânico do século 21, o Mondo Bacana preparou oito motivos para você nem sequer pensar em perder a nova passagem do quarteto por aqui.

The Car

O sétimo álbum de estúdio demorou mais do que o previsto para ser apresentado publicamente por conta de uma interrupção forçada pela pandemia da covid-19. Neste caso, porém, o mal veio para o bem Afinal, a banda pode ter um bom tempo de sossego e calma para trabalhar na pós-produção e refinando a sonoridade até chegar com requinte e perfeição ao objetivo inicialmente proposto: fazer dos Arctic Mokeys, em um total de dez faixas, uma grande banda de sonoridade pop orquestral sixtie. Scott Walker, John Barry, Serge Gainsbourg, Burt Bacharach, George Martin… Boas referencias saltam aos ouvidos já durante a primeira audição. Também percebe-se o esmero dos vocais impressos por Alex Turner. Ele canta com estilo, livre, leve e solto. Manda diversos trechos em falsete com aquela segurança que só o tempo é capaz de dar a um grande músico (vale lembrar que aquele garoto-prodígio dos dois primeiros álbuns avassaladores dos Arctic Monkeys já chegou aos 36 anos!). E tem ainda a bela capa clicada pelo baterista Helders, com um automóvel estacionado solitariamente no terraço de um edifício-garagem.

Ao vivo no Kings Theatre

No dia 22 de setembro, os Monkeys estavam em Nova York. Mais precisamente no tradicional e recentemente renovado Kings Theatre, no Brooklyn, para fazer diante de 3 mil espectadores aquela que, até agora, foi a mais luxuosa (e intimista, se contar que era o palco de um teatro e quem viu tudo estava sentado em uma poltrona confortável) apresentação da turnê de The Car. No set list figuraram quatro das dez faixas do novo disco, sendo duas tocadas pela primeira vez ao vivo diante de seus fãs. “There’d Better Be a Mirrorball” fez o trabalho de abertura da noite. Lá pelo meio pintou ainda “Body Paint”, que já havia sido mostrada dias antes, mas desta vez na TV, durante o talk show comandado por Jimmy Fallon. O restante do repertório (18 outras canções) deram uma boa espanada na já extensa trajetória do grupo de Sheffield, com destaque para o mais popular trabalho, AM, de onde foram pinçadas seis faixas. Hits não faltaram, para mostrar que, sim, os Monkeys continuam uma grandiosa banda ao vivo, com muito peso e presença de palco. Entre eles estavam “Do I Wanna Know”, “Arabella”, “R U Mine”, “Why’d You Call Me Only When You’re High?”, “Crying Lightning”, “Brainstorm” e “I Bet You Look Good On The Dancefloor”. De quebra, pintou uma composição que não estava prevista inicialmente no set preparado para a noite (“The Ultracheese”, do álbum anterior Tranquility Base Hotel + Casino). Ficou com vontade de poder ter estado lá e assistido a este concerto de 45 minutos? Então acesse o YouTube da banda neste domingo, 23 de outubro, às 16h no horário de Brasília. O show será transmitido pela banda na íntegra por lá. Não poderá assistir a ele neste horário? Não tem problema também: tudo ficará disponível ali mais um pouco, até o dia 27.

I Ain’t Quite Where I Think I Am

A performance desta nova música do show no Kings Theatre também virou o videoclipe oficial dela. Executada na parte final do set list, a canção ganhou uma aura soul com a combinação entre o vocal estiloso de Turner, o efeito wah wah da sua guitarra, uma percussãozinha discreta e aquela mãozinha poderosa dos backings em falsete feitos por vários músicos no palco. Para completar, a reunião de versos bastante abstratos criados pelo frontman desenham um certo sentimento de entranheza e nao pertencimento durante um passeio pela Riviera francesa com sua namorada também francesa.

There’d Better Be a Mirrorball

Faixa de abertura de The Car e também de boa parte dos shows da nova turnê. Quando tocada ao vivo, com os músicos recém-chegados ao palco, pode até causar estranheza em fãs mais desavisados, esperando uma pancadaria sonora para injetar adrenalina na plateia logo de cara. Só que não. O desafio da trupe de Turner no novo disco é provocar um mergulho retrô pela sofisticação do pop sessentista, quando belas melodias e harmonias bem trabalhadas se encontravam com muitos arranjos de cordas que em muito ainda contribuíam para a riqueza auditiva. Não é diferente em “There’d Better Be a Mirroball”. Com versos que flertam com ares reflexivos provocados pela deparação do protagonista/narrador com uma ambientação de explícita decadência e aquela sonoridade de boate da boca do lixo, a faixa é o cartão de visitas da nova fase do grupo. Portanto, nada melhor do que também começar o concerto com ela, com as cordas disparadas em bases pré-gravadas ou mesmo recriadas em sintetizador. Curiosidade: Alex também assina a direção e a fotografia do videoclipe. As imagens foram todas captadas por ele durante as sessões de gravação do novo disco em Los Angeles, para onde carregou a tiracolo uma câmera de 16mm para também brincar de cineasta dentro do estúdio.

Body Paint

Mais uma faixa de The Car que ganhou videoclipe oficial antes mesmo do disco ter sido lançado oficialmente. Com direção de Brook Linder e imagens captadas entre Londres e Missouri, o clipe é, na verdade, um metaclipe. Mostra os bastidores da filmagem e da edição de um filme e brinca com diversas referências de formas circulares e retilíneas, além de fazer da projeção dentro da projeção um elemento vivo de cena, que comanda por meio de luzes uma determinada linha melódica de um riff ou ainda faz o vocalista se multiplicar em três para cada um deles cantar uma parte do mesmo verso. Os cinéfilos poderão notar a reverência ao cineasta norte-americano Alan J. Pakula (Todos os Homens do PresidenteA TramaA Escolha de SofiaKlute: O Passado Condena).

Tranquility Base Hotel + Casino

The Car é um passo além daquele dado pelo grupo há quatro anos, quando relevou ao mundo o surpreendente sexto álbum da carreira. O peso, a urgência e a ansiedade explosiva dos primeiros trabalhos deram lugar, em 2018, a um trabalho muito maduro, que mesclava referências sonoras díspares (entre elas glam, progressivo, jazz e psicodelismo). Certamente The Car não teria sido feito se não tivesse existido Tranquility Base Hotel + Casino – que, inclusive, chegou a abocanhar o Grammy de melhor disco de rock alternativo. Suas duas principais faixas continuam mantidas no novo repertório ao vivo (a música-título e “Four Out Of Five”) e devem ser tocadas para os fãs brasileiros.

505

Favourite Worst Nightmare (lançado em2007), rendeu três grandes hits naquele ano: “Brainstorm”, “Fluorescent Adolescent” e “Teddy Picker”. Quinze anos depois, mais uma faixa daquele trabalho veio a se juntar à mesma galeria de sucessos. Trata-se do final daquele segundo álbum da carreira. “505”, a famosa “última do lado B”, descoberta meses atrás pela geração Z e que viralizou a tal ponto no TikTok que impulsionou a canção, outrora obscura e desconhecida, ao pódio das maiores execuções dos Monkeys no Spotify. O título se refere ao número do quarto do hotel onde está a namorada do narrador/protagonista da canção, que preenche os versos com muita imaginação e os sobrecarrega com pimenta sexual (“In my imagination you’re waiting lying on your side/ With your hands between your thighs”, diz o refrão). Turner, em entrevista ao website britânico NME, diz achar curioso e legítimo o revival intenso da canção por uma geração que ainda era bem criança quando ela foi gravada e fechava os shows da banda na mesma época, mas também confessa ter ficado um tanto quanto confuso sobre o porquê da escolha e da adoração desta faixa. De qualquer modo, ele que não é bobo, já encaixou “505” no repertório desta turnê e em um lugar especial: o encerramento do bis, logo antes de todos os músicos deixarem o palco em definitivo.

Menino-prodígio

Lá em meados dos anos 2000, quando o MySpace bombava entre os fãs de rock e pop como a plataforma de divulgação musical mais democrática e interessante na recente internet 2.0, nomes como Arctic Monkeys, Lily Allen e Cansei de Ser Sexy pegaram muita gente de surpresa ao voarem do quase anonimato para a fama mundial. No caso da banda de Sheffield, Whatever People Say I Am, That’s What I’m Not (2006) entrou para a História como o álbum de estreia de maior vendagem no mercado fonográfico britânico (contabilizou quase 400 mil exemplares somente na primeira semana nas lojas. E mais: lançado por um selo independente chamado Domino, faturou o Brit Awards de melhor álbum da temporada e ainda passou a ser incensado como um dos mais fantásticos primeiros discos de um artista em todos os tempos. Alex Turner era o cérebro por trás de toda essa força-motriz. As faixas empolgavam por conseguirem encaixar um canto falado em um arranjo básico (leia-se guitarra, baixo e bateria) poderoso, urgente e de alto teor de adrenalina. Algo que, guardadas as devidas proporções, não acontecia na ilha da Rainha Elizabeth desde os tempos do punk rock. As letras escritas pelo vocalista também eram fantasticamente criativas e elaboradas, cinematograficamente literárias, com vocabulário rico pouco comum para um jovem de apenas 20 anos. O bom é que tudo isso não se mostrou um fogo-de-palha. Favourite WIrst Nightmare veio no ano seguinte para dar prosseguimento ao grande estilo dos Monkeys. Depois, a banda elaborou o som, adotando mais peso e sujeira em discos como Humbug e AM, seu álbum mais popular até hoje. As letras escritas por Turner – ainda bem – continuaram com o sarrafo sendo posto lá em cima, ajudando o quarteto a se tornar uma das maiores bandas britânicas deste século 21. E tudo isso sem contar os projetos paralelos do rapaz, como a trilha sonora do filme Submarine e o Last Shadow Puppets, formação criada ao lado de Miles Kane ex-Rascals) e o produtor James Ford (nome seminal do indie disco dos anos 2000, membro do cultuado Simian Mobile Disco, produtor de todos os álbuns dos Monkeys e que já trabalho com gente do quilate de Depeche Mode, Gorillaz, Haim, Foals, Beth Ditto, Peaches, Florence & The Machine, Little Boots, Mumford and Sons, Kalxons, Kylie Minogue e Jessie Ware)

Fashion, Movies

Casa Gucci

Lady Gaga encabeça elenco da polêmica história de amor, cobiça, intriga e assassinato que marcou o mundo da alta costura 

Texto por Camila Lima e Abonico Smith

Foto: MGM/Universal Pictures/Divulgação

A encomenda do assassinato de Maurizio Gucci por sua ex-mulher Patrizia Reggiani em 1995 é um dos acontecimentos mais polêmicos do universo da alta costura. Esta história, agora, serve de inspiração para um dos lançamentos cinematográficos mais comentados deste final de ano.

Surfando na bem-sucedida onda do estilo true crime, que vem tomando de assalto os roteiros de filmes “baseados em fatos reais” e séries documentais, Casa Gucci (House of Gucci, Canadá/EUA, 2021 – MGM/Universal Pictures) desvenda os bastidores da vida pessoal e profissional das duas últimas gerações da família Gucci que estiveram envolvidas com a marca. A trama se inicia quando Patrizia Reggiani, jovem vinda da classe média baixa, conhece em uma festa o ingênuo e doce Maurizio Gucci, que, quando jovem e estudante de direito, revela nunca ter tido pretensões de se envolver com os negócios da família. A entrada da moça na trajetória dos Gucci desencadeia uma série de acontecimentos que dão forma a uma história de amor, paixão, loucura, cobiça, intriga e traição.

O elenco é estelar e traz nomes como Lady Gaga, Al Pacino, Jeremy Irons, Adam Driver, Salma Hayek e Jared Leto. Para a direção foi convocado o veteraníssimo Ridley Scott. Contudo, expectativas e celebridades podem render muito burbirinho mais notas e postagens antecipadas na internet. Contudo, na hora do vamos ver, quando um filme chega de fato às grandes telas, como no casamento entre Patrizia e Maurizio, nem tudo é aquilo que parece ser de fato.

Casa Gucci, com seus extensos 157 minutos, procura compensar no estilo com muito glamour (reforçado pelo magnetismo da edição de videoclipe) aquilo que lhe falta um pouco em conteúdo. Com quase três horas de duração, parece que o espectador não está na poltrona da sala de projeção, mas sim no sofá de casa ou mesmo na cama, assistindo a uma minissérie. Em vários momentos percebe-se uma sucessão de altos e baixos que poderia ser evitada por uma duração menor, com uma narrativa tão ágil quanto o visual proposto. Também pudera. Já começa pela pretensão de esmiuçar três décadas – o tempo vai dos anos 1970, quando o casal protagonista está na exuberância de sua juventude, aos 1990, quando, com ambos já quarentões, há a mudança por completo das atitudes e intenções na vida.

Outra coisa que incomoda – e bastante – é a eterna mania de Hollywood querer tomar para si o resto do mundo. Aguentar o tempo todo uma típica família italiana,  morando na Itália, trabalhando na Itália, falar em inglês entre eles mesmos é algo que vai se tornando um porre no decorrer do filme. Pior é a situação de Lady Gaga. Ela, que não é má atriz, entrega uma pífia performance como a ambiciosa e determinada Patrizia, muitas vezes escorregando feio na prosódia e aparecendo em cena com um inexplicável sotaque russo. Logo ela, que vem de família ítalo-americana, vem firme e forte como favorita para o próximo Framboesa de Ouro! O tom da interpretação empregada por Al Pacino como o bonachão Aldo, manda-chuva do clã na empresa também vem dividindo opiniões, sendo criticada de maneira intensa até mesmo pelos descendentes dos Gucci.

Embora os pontos fracos sejam indisfarçáveis, há de ressaltado também o conjunto de acertos. A fotografia do filme é muito bem explorada para caracterizar o estilo de vida opulento dos Gucci, assim como a trilha sonora e o figurino são utilizados para ambientar as diferentes épocas nas quais a trama se passa. Um trecho do roteiro merece aplausos: a hora em que Patrizia e Mauricio discutem com Aldo a questão da pirataria dos produtos da grife. Enquanto o casal mostra-se contrário à prática e a condena por temer uma possível interferência nos lucros e na imagem, o tio pormenoriza tudo e desfila um breve porém certeiro comentário de que o comércio das falsificações também ajuda quem não tem dinheiro para pagar pelos produtos originais a se sentirem empoderados com a dissimulada sensação de também estarem utilizando a marca.

Já no campo das atuações, Jared Leto – irreconhecível na concepção visual do personagem – destaca-se como o histriônico Paolo Gucci. Centro de inúmeros alívios cômicos do filme, sua participação é bastante elucidativa nos caminhos recentes tomados pela Gucci. É justamente tendo a ligação com Paolo, que acaba afastado das atividades na grife através de ações comandadas pelo primo Maurizio e a esposa Patrizia, que a história nas telas leva à chegada de Tom Ford à direção criativa em 1984. Foi nesta transição que as peças de vestuário ganharam mais importância, passando a dividir as atenções com clássicas peças como as Bamboo Bags e o mocassim Horsebit.

Casa Gucci, no entanto, desperdiça a dualidade de uma excelente protagonista. Desde o início Patrizia deixa clara sua sede pelo poder e status social, o que a leva a ser a mentora do assassinato do ex-marido uma década depois dele sair de casa para nunca mais voltar e passar a namorar outras mulheres até oficializar o divórcio. No meio disso tudo, ela também se revela a namorada/esposa apaixonada e a dedicada empresária com aquela incisão que o legítimo herdeiro não procurava ter. Prende-se em tantos detalhes a mais que diminui o impacto maior que poderia ter a “plebeia” Reggiani, que até o fim sonhava em continuar sendo uma “nobre” Gucci. No fim, não passa de uma produção com qualidade mediana, que pode até atiçar momentaneamente os apaixonados pelo mundo da moda mas está longe de se tornar um clássico tal qual as bolsas e sapatos eternizados por décadas pela centenária família de origem florentina, que exatamente em 1921 dava seus primeiros passos em direção ao luxo, poder e glória.

Movies

Ted Bundy: A Irresistível Face do Mal

Docudrama tem ótimas atuações e aposta de forma ousada no lado bom moço de um dos mais famosos assassinos em série dos EUA

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Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Netflix/Paris Filmes/Divulgação

O assassino em série Ted Bundy voltou ao imaginário público recentemente, com o advento do documentário da Netflix sobre sua história. Em agosto, a Netflix lança também um longa-metragem sobre seus crimes, desta vez para sua plataforma on demand. Mas antes ele chega aos cinemas, mais precisamente neste fim de semana em todo o país. Ted Bundy: A Irresistível Face do Mal (Extremely Wicked, Shocklingly Evil And Vile, EUA, 2019 – Netflix/Paris Filmes) tem uma tarefa difícil em suas costas: trazer ar fresco aos docudramas criminais.

Nas mãos de Joe Berlinger, que também assina a direção da série documental exibida desde o começo do ano na plataforma de assinatura, a trama gira em torno da relação de Bundy com suas companheiras Liz (Lily Collins) e Carole Ann (Kaya Scoledario). Cada uma, em momentos diferentes, assume o coprotagonismo com o psicopata, interpretado brilhantemente por Zac Efron – fato que será discutido posteriormente. Grande parte de seu desenvolvimento se passa ao redor dos processos judiciais pelos quais Ted foi condenado, nos anos 1970. O roteiro de Michael Werwie, baseado no livro da mesma Liz (Elizabeth Kendall é seu nome), acaba operando como um apanhado de pontos espalhados pela trajetória do protagonista até, enfim, focar no processo que o condenou à pena de morte, no qual Bundy foi seu próprio advogado.

A Irresistível Face do Mal se desenvolve pelo ponto de vista de Liz, a principal companheira do serial killer. No entanto, a direção opta por deixar o espectador no limbo de incerteza que a envolve, investindo nas alegações de inocência de Ted. Por vezes a tentativa de foco no romance dos personagens soa confusa: se sabemos que o protagonista foi um dos maiores assassinos em série dos Estados Unidos, então por que o diretor tenta tanto enxergá-lo positivamente? O filme respeita muito as vítimas de Bundy, mas sua linguagem incerta não é, em alguma instância, desrespeitosa com a história perversa, vil e má que retrata?

Contudo, os elementos técnicos do filme garantem uma experiência intrigante. A fotografia de Brendan Trost alterna entre momentos estilizados – optando pela profundidade de campo extremamente rasa muitas vezes, porém sempre com intenção dramática – e reproduções da linguagem fotográfica setentista. Em seus momentos de reinterpretações fieis de momentos factuais, como a entrevista de Ted Bundy e seu julgamento televisionado, A Irresistível Face do Mal também opera de maneira restitutória, imergindo seu público nas camadas de sua trama.

Grande parte da imersão se deve, no entanto, ao competente elenco. Lily Collins emana as emoções de sua personagem convincentemente, tornando-a muito mais dimensionada do que o proposto pelo roteiro, que a parece encarar apenas como a “namorada de Ted Bundy que não consegue o superar”. Carole Ann, a segunda companheira do protagonista, é ainda mais plana, por vezes soando delirante. No entanto, é uma ótima interpretação de Kaya Scodelario, talvez o melhor papel de sua carreira. John Malkovich, que faz o juiz que condena Bundy, e Haley Joel Osment, um colega de Liz, parecem desconexos do resto da trama, mas não performam mal. Malkovich parece icônico demais para o papel. Maldito Quero Ser John Malkovich!

A cereja do bolo – e também sua base – é Zac Efron, que não somente é muito parecido com seu personagem, mas também o interpreta incrivelmente. O balanço entre o aparente bom moço e o frio olhar psicopata de seu Bundy nos fazem entender por que a mídia e a sociedade americana caíram em seu feitiço. Com mais atuações deste porte, Efron pode até apagar a mancha de sua terrível filmografia.

Não obstante, o elo fraco do filme é sua confusa montagem, que parece não entender seus momentos de respiro e, por consequência, acaba por suprimi-los. Não é uma coletânea de edições terríveis, mas com certeza reduz a capacidade de imersão do produto final.

Assim, Ted Bundy: A Irresistível Face do Mal é um docudrama envolvente, que não inova muito, mas presenteia seu espectador com um ponto de vista diferenciado às histórias de serial killer. Por mais semanticamente confuso, vale a experiência e é capaz de atingir tanto os aficionados pelas histórias de assassinos em série quanto aqueles que não têm estômago suficiente para o nicho.