Regina Casé volta ao teatro após 25 anos refletindo sobre a identidade brasileira e retoma parceria do Asdrúbal Trouxe o Trombone
Texto, entrevista e foto por Abonico R. Smith
Quase meio século atrás uma turma de jovens revolucionava o teatro brasileiro aproveitando o clima de abertura política que, junto com a gradual despedida do governo ditatorial militar, trazia a oportunidade para a turma dos vinte e poucos anos de se ver ali refletida no palco em atores que expressavam as esperanças, angústias, medos e alegrias da geração que cresceu sob o medo e o tolhimento da liberdade. Sob o complexo porém não menos inventivo nome de Asdrúbal Trouxe o Trombone, a trupe tornou-se sinônimo de sucesso, com direito a uma legião de fãs de voltava inúmeras vezes para ver as suas peças, e tentáculos posteriores na música e na televisão que consolidariam a influência para quem veio depois.
Corta para o início de 2019. Regina Casé, nome mais famoso revelado pelo Asdrúbal em suas montagens, está de volta ao teatro, depois de 25 anos afastada, fazendo trabalhos apenas no cinema e na TV. Sua reconciliação com os palcos vem com a companhia do velho parceiro da profissão, o mentor do Asdrúbal, o diretor Hamilton Vaz Pereira, o mesmo com quem trabalhou na mais recente estada nas coxias, Nardja Zulpério. De quebra, a atriz ainda traz mais dois nomes que a acompanham nas últimas três décadas na telinha: o atual marido Estevão Ciavatta (também na direção) e Hermano Vianna (assinando boa parte da concepção textual do espetáculo). Depois de uma pequena temporada experimental durante o verão de Salvador numa igrejinha baiana adaptada para a função de centro cultural, O Recital da Onça ganhou, enfim, os teatros brasileiros. A primeira escala foi realizada na capital paranaense, na semana inicial do Festival de Teatro de Curitiba (28 e 29 de março), no mesmo Teatro Guaíra onde já havia se apresentado com a peça anterior.
Apesar de ser um monólogo, O Recital da Onça, no fundo, é uma atualização do espírito verborrágico e libertário levado pelo Asdrúbal. É todo esquematizado em cima de impressões e experiências pessoais da artista, tendo como costura a leitura de trechos de importantes autores da literatura brasileira. Obras estas que, de alguma forma, têm conexão com o que Casé vai relatando à plateia.
A história tem como base um pouco das angústias vividas por Regina alguns anos atrás, após o sucesso do filme Que Horas Ela Volta?, filme no qual é a protagonista e cuja trama critica as desigualdades gritantes da sociedade brasileira através do cotidiano de uma família da classe A e a sua empregada doméstica. Quando convidada para dar uma palestra na Universidade de Harvard, ela acabou tendo contratempos com o departamento de imigração dos EUA. Estes momentos vividos pela atriz são a mola propulsora do espetáculo, que parte da premissa das diferenças culturais para propor reflexões a respeito de alma e da identidade brasileira.
Por isso o texto escalado para o encerramento, Meu Tio, o Iauaretê, de Guimarães Rosa, vai direto ao coração do Brasil. Mais precisamente ao Pantanal, à selva, à onça, à mestiçagem que sempre foi uma das grandes bandeiras culturais de Regina Casé nos programas de TV que apresenta. A parte final do conto, que conta a história de um caçador de onças que acaba por se identificar com o animal que deveria abater, dá o tom sério e dramático do espetáculo, a ponto dela se despedir do palco mandando um papo reto e sincero, bastante propício para os dias de hoje (“Não tenham medo! Coragem!”). E é justamente nela que reside – para muitos – a maior surpresa do espetáculo, Afinal, mais identificada como atriz de comédias, Regina dá um show de interpretação (com a ajuda de um telemprompter, claro, porque ninguém conseguiria decorar um trecho gigante de um livro em tão pouco tempo para reproduzi-lo ao vivo) e deixa muita gente se perguntando o porquê dela não ter se dedicado mais ao teatro neste último quarto de século.
A transição entre o deliciosamente engraçado e o inegavelmente contundente se dá pelo quatro trecho literário lido na peça (também com a ajuda do TP). Em A Mineira Calada, ela retorna ao universo de diferenças extremas entre patroa e empregada. Para ser mais preciso, entre Clarice Lispector, a autora deste conto, e Aninha, a “doméstica que gosta de ler livros complicados e dispensa histórias água-com-açúcar”. A forma com que Clarice se refere a Aninha pode até soar agressiva e presunçosa para alguns espectadores, entretanto revela uma das facetas mais duras dos grandes centros urbanos do país. Não é preciso nenhum exercício mais puxado de imaginação para estender o narrado na relação para outros vínculos empregatícios quaisquer. Assim como o texto anterior, mais atual impossível, mesmo tendo sido escrito décadas atrás.
Já a primeira metade do espetáculo é reservada àqueles textos que poderão variar de cidade em cidade. Em Curitiba, o início se deu com O Turista Aprendiz e o relato de viagem do modernista Mário de Andrade a Natal, quando passou por várias capitais nordestinas entre novembro de 1928 e fevereiro de 1929 para pesquisar as culturas populares da região. Para brindar os espectadores paranaenses, foram escolhidos Dalton Trevisan e Paulo Leminski para o cardápio do Festival de Teatro. Do primeiro, o conto escolhido foi Moreno Ingrato, que parece não ter agradado a uma boa parcela da plateia (também, o que esperar da republiqueta diante da aspereza e das sacanagens típicas do autor?). Do segundo, um trecho do romance Agora é Que São Elas (“muita gente diz que esse é o pior livro que ele escreveu, mas eu vou ler assim mesmo”, desafiou Regina antes de pegar a edição e abrir na página previamente marcada. A homenagem à terra dos polacos e polaquinhas terminou com um monte de gente branquela subindo ao palco a convite da atriz para sambar ao som do Maxixe Machine.
Não é de agora que a narrativa transmídia bate ponto em peças teatrais. Contudo, pode se dizer que Regina e sua trupe fiel ousam ao escolher levar a literatura brasileira de qualidade aos palcos em O Recital da Onça. Funciona tanto na intimidade de uma igrejinha baiana, quanto no tradicional palco de um dos maiores teatros brasileiros como o Guaíra. Funciona também em qualquer lugar do país, sempre com a artimanha de aproximar o público de seus autores conterrâneos também (em Salvador, por exemplo, leu-se Jorge Amado). Funciona sempre tendo o viés pessoal da artista, que inclui ali um pouco de sua pessoalidade e assim consegue criar maior intimidade com quem está ali lhe vendo no conforto da poltrona. Funciona também pela ligação com um ou outro interlúdio musical, cuja temática acaba se conectando com o que está sendo dito ali em cena. Funciona por sair do quadrado, tal qual era feito lá atrás, sempre com muito humor, com o Asdrúbal Trombone o Trombone.
Três perguntas
Em tempos sombrios, com tantas brigas e falta de entendimento entre as pessoas, qual é o papel do humor?
Hamilton Vaz Pereira: Lá em 1974, no comecinho do Asdrúbal, compositores como Chico Buarque e Gonzaguinha falavam em suas letras que o importante é ser feliz neste momento. O que vale é a alegria de viver, a inteligência, a certeza da beleza da vida. Melhor do que o humor só a morte e isso não a teremos. A vontade é sempre a de dizer que não importa qualquer situação que estejamos vivendo. A vida é maior do que tudo.
Como está a juventude de hoje em relação à juventude de quatro décadas atrás, do tempo do Asdrúbal Trouxe o Trombone?
Hamilton Vaz Pereira: Acho que posso falar com propriedade sobre isso. Afinal tenho um filho de 25 anos. Ele se chama Iuri, é um garotão classe média e um excelente exemplar de como são os novos brasileiros. Eu já tenho 67 anos e percebo como eles são melhores em tudo em relação à nossa juventude. São mais finos, mais educados, mais inteligentes. Possuem um grau imenso de sensibilidade, uma referencia bem maior de cidadania. Veem beleza física em absolutamente tudo. São o inverso daquele valor de beleza dos gregos antigos. Também faço um trabalho com o grupo Teatro da Laje. Eles são da Vila Cruzeiro, um lugar bastante barra-pesada no Rio de Janeiro. Lá eu vejo como o teatro serve como exercício de cidadania. Vivem me contando tudo o que aprenderam com o teatro, sobretudo a ter respeito aos pais e professores, embora na hora do tiroteio eles se joguem no chão ou pulem pela janela porque o mais importante é se manter vivo. Lá também é arma contra o bullying. Esses meninos falam que ninguém mexe mais com eles depois que começaram a fazer teatro. Sabe, não foi a academia, não foram as artes marciais, foi o teatro. Este é o encanto. A arte salva e dá moral para todo mundo.
Qual o principal objetivo de O Recital do Onça?
Regina Casé:É muito saudável acabar com a barreira que divide o que chamam de alta e baixa cultura. Fazer uma ponte high-low social, econômica e cultural. Unir o high, que, em tese, é do branco, com dinheiro e que tem acesso aos estudos, e o low, que, também em tese, vem dos pobres, negros e analfabetos. Como falar do Brasil hoje sem que se brigue com o amigo ou alguém da família? Não vamos chegar a lugar algum ao nos antagonizarmos. É necessário que se estabeleça uma relação da gente com os nossos valores, identidades e a biodiversidade. É resgatar o verdadeiro sentido da palavra popular, seja na literatura, na música ou qualquer outra área. Não se pode ficar em um pedestal, preso em uma torre de marfim. O Brasil precisa se reconhecer nas coisas suas. O melhor meio para isso é através do amor e do afeto. Para isso existe a arte. Cito como um grande exemplo disso o meu amigo Zeca Pagodinho. Para começar, ele ir ao teatro já é um fenômeno. Não vai, não gosta de ir, mas foi me ver uma noite lá na temporada inicial em Salvador. Ele comentava junto com as minhas falas igual a uma criança na plateia de um espetáculo infantil. Sem contar o fato de que ele fazia isso justamente porque não sabia que a peça já havia começado. Achava que eu estava ali perto da plateia sei lá o quê, conversando, batendo papo com as pessoas.