Music

Michael Bublé – ao vivo

Em Curitiba, canadense mostra na voz toda a gratidão por ter superado as adversidades enfrentadas pela família desde um pouco antes da pandemia

Texto e foto: Janaina Monteiro

Existe uma fórmula simples para constatar o caminho da nossa evolução: traçar paralelos. Feche os olhos e assista à sua vida em retrospectiva. Eu, por exemplo, era tímida, com baixa autoestima e, ingênua, acreditava em príncipe encantado. Ou seja, bem diferente da minha versão atual. 

Portanto, se o tempo serve pra alguma coisa – além de nos botar rugas na cara – é nos permitir comparar o passado e o presente, sobretudo em relação ao modo como enfrentamos as adversidades, os furacões, os tsunamis da vida. Porque num piscar de olhos, o chão pode ruir. O cantor e compositor canadense, Michael Bublé, que esteve no Brasil recentemente com a turnê denominada An Evening With…, sabe muito bem como lidar com esse cenário apocalíptico e cair na fenda provocada por um terremoto.  

A vida de Bublé virou de cabeça para baixo antes mesmo da pandemia. Em 2016, seu primogênito Noah foi diagnosticado com câncer no fígado aos 3 anos de idade. Para ele, esta notícia significou muito mais que um soco no estômago. Abalou o contagiante bom humor e por pouco custou sua carreira. Tanto é que o artista prometeu a si mesmo que só retornaria aos palcos quando o menino se curasse. 

Depois dessa rasteira, ele afirmou que a pandemia foi capaz de unir ainda mais sua grande e linda família (hoje Michael tem quatro filhos com a atriz argentina Luisana Lopilato). Por isso, quem sobe ao palco hoje com a turnê baseada no álbum mais recente, Higher, não é mais aquele rapaz boa-pinta, capaz de arrancar suspiros de multigerações. Quem sobe ao palco não é um crooner, aquele sucessor dos clássicos natalinos eternizados por Frank Sinatra. É, nitidamente, um artista que evoluiu. E nenhuma canção seria mais apropriada para iniciar a apresentação em Curitiba, realizada em 8 de novembro último na Arena do Athlético Paranaense, do que “Feeling Good”. Bublé não só demonstra sentir-se bem consigo mesmo e com seus fãs cada vez mais apaixonados – muitos deles de longa data, aliás – como mostra encarar a vida de outro jeito.

A confiança e a gratidão transbordam da sua voz e da sua performance, acompanhada de uma animada orquestra (formada boa parte por jovens e músicos locais). Bublé entretém, dança, “se joga” na plateia, faz piadas e atende ao pedido de um fã para cantar um trechinho de “Me and Mrs. Jones”, faixa que, aliás, não estava no roteiro. “Ainda bem que você escolheu uma que eu sabia”, brincou. Humilde, agradece à plateia por ter pago ingressos caros e confessa: “Quando eu vou dormir, rezo e agradeço a Deus por ter essas pessoas lindas na minha vida. Sentirei falta de vocês”. 

 Entre o “hi” e o “goodbye”, emenda um clássico no outro, temperando o set list com suas composições autorais como “Haven´t met you yet”, “Everything”, “Home” e “Higher”. Essa última, além de batizar o disco mais novo, foi composta em parceria como filho Noah. Bublé mostra ainda completo domínio da voz, sem cometer excessos, sem ao menos tomar água para refrescar a garganta. Tirando o terno violeta (um pouco justo), tudo é sob medida em sua apresentação. Sua voz, seus passos de dança aprimorados por conta da participação no programa Dancing With The Stars. A sintonia também aparece na interação com a plateia, com os músicos e o maestro da orquestra. 

Entre o palco principal e o secundário, ele desfila na passarela, olhando nos olhos das fãs (inclusive tem um apelo enorme com o público masculino!), que arremessam seus lenços e echarpes, emulando um ritual ao estilo de Elvis. Do ídolo de Memphis, emociona ao interpretar “Always On My Mind” e “Can´t Help Falling In Love”, que surge no meio de um medley com “You´re The First, The Last, My Everything”, famosa na voz potente de Barry White, e “To Love Somebody”, clássico dos Bee Gees. Sua nova roupagem para “Smile”, de Charlie Chaplin, arrepia.

Enfim, esse canadense, romântico inveterado, é capaz de costurar um repertório eclético, com arranjos modernos e sofisticados, esbanjando nostalgia, como se nessa salada só existissem as melhores frutas da estação. Tanto é que em seus 20 anos de carreira, gravou versões que vão de Queen, George Michael, Eric Clapton, Marvin Gaye e Stevie Wonder a, claro, Frank Sinatra. 

Agora, observando a vida em retrospectiva: se este show fosse realizado há três anos, quando minha mãe pediu para que eu comprasse as entradas (bem lá na frente), provavelmente um outro Bublé subiria ao palco. Provavelmente uma outra eu assistiria ao espetáculo. Mesmo porque nós duas também enfrentamos nosso próprio câncer.

Por isso, quando vou dormir, rezo e agradeço a Deus por ter acompanhado a dona Silvia nesta noite. Um espetáculo de show.

Set list: “Feeling Good”, “Haven´t Met You Yet”, “L-O-V-E”, “Such a Night”, “Sway”, “When You´re Smiling”, “Home”, “Everything”, “Higher”, “To Love Somebody”, “Hold On”,“Smile”, “I´ll Never Not Love You”, “Fever”,  “One Night”, “All Shook Up”, “Can´t Help Falling In Love”, “You´re The First, The Last, My Everything”,  It´s a Beautiful Day”, “Cry Me a River”, “How Sweet It Is (To Be Loved By You)”, “Save The Last Dance For Me” e “You Are Always On My Mind”.

Music

Gilberto Gil

Oito motivos para não perder o novo show do artista, estrela de vários festivais no Brasil em 2022 e que acaba de voltar de turnê pela Europa

Texto por Abonico Smith

Foto: Fernando Young/Divulgação

Ele tem em Abelardo Barbosa, o Chacrinha, celebridade citada em uma das famosas músicas suas, a clássica “Aquele Abraço”. Contudo, quem está com tudo e não está prosa é o próprio Gilberto Gil, que está com a agenda cheia nesta temporada em que acabou completar 80 anos de idade.

Gil acaba de voltar de uma bem-sucedida turnê pela Europa, onde foi acompanhado por alguns de seus descendentes no palco. Também acaba de estrear em streaming o reality show Em Casa com os Gil, onde é o protagonista ao lado de toda a sua família. Participou de grandes festivais brasileiros (MITA, Coala, Rock in Rio), com shows concorridos de público e bastante incensados pela crítica. Também percorre o país apresentando-se aqui e ali, em grandes e importantes cidades, com sua banda de apoio, formada majoriamente por gente que carrega o talento e o sobrenome Gil em seu DNA.

Por estar bastante incensado que todos os ingressos para a sua passagem por Curitiba (Teatro Positivo, dias 27 e 28 de outubro), depois de cinco anos sem cantar na capital paranaense, estão esgotados. Quem sabe alguma mágica acontece e, se você não comprou a sua entrada, algum bilhete “premiado” aparece disponível voando por aí?

De qualquer maneira, aí vão oito motivos para não perder (pode não ser um destes mas que seja algum próximo) um concerto de Gilbert. Gil bem à sua frente

Tropicália

Ao lado do amigo e conterrâneo Caetano Veloso, Gil bolou todos os conceitos, preceitos e possibilidades sonoras do movimento que abalou as estruturas da música brasileira no biênio 1967-1968, provocou muita polêmica e desde então vem, década após década, vem rendendo frutos e discípulos maravilhosos para nossos ouvidos escutarem e os olhos verem em ação nos palcos da vida. Expandindo toda e qualquer fronteira, sempre observando e absorvendo tudo o que pudesse, adentrando as várias regiões do país ou mesmo pegando coisas boas lá de fora. Se não fosse a ação feita pela Tropicália lá atrás, que sacodiu a poeira da estagnação da bossa nova e projetou um belo futuro, onde vieram a se encaixar nomes como Sérgio Sampaio, Walter Franco, Chico Science & Nação Zumbi, Paralamas do Sucesso, Los Hermanos, Ana Cañas, Francisco El Hombre, Charme Chulo e Johnny Hooker, por exemplo.

Família no palco

Com 80 anos de idade completados em 26 de junho e dono uma carreira musical ímpar, Gil agora desfila nos palcos toda a sua generosidade em ceder espaço para seus descendentes (filha/os, neta/os, nora) como integrantes de sua banda de apoio. Aliás, quase todo mundo que o acompanha carrega no DNA traços da família Gil – o que faz pensar o quanto os tentáculos deste sobrenome poderoso de três letrinhas se alastraram pelo Rio de Janeiro e que, de uma ou outra maneira, cada profissional da música que esteja radicado na Cidade Maravilhosa está de uma ou outra maneira, até no máximo seis graus de separação (quando muito isso, olha lá!) de Gilberto Passos Gil Moreira. O mais recente membro do clube com o branding Gil é a neta Flor, de apenas 13 anos, com quem chegou a dividir recentemente os vocais principais, no Rock In Rio, em uma versão bilíngue de “Garota de Ipanema”. 

Reality show

Por falar em família, se você tem acesso ao streaming da Amazon Prime não deixe de assistir Em Casa com os Gilreality show criado pela Conspiração Filmes para documentar – da criação à realização de uma turnê de quinze datas feita meses atrás por alguns países europeus, passando por várias reuniões com a participação de todos os membros do clã, que, de uma ou outra maneira, aparecem em cena passando pelo sítio do artista em Araras, onde ele se isolou durante a pandemia da covid-19. Tem até a bisneta Sol de Maria. É interessante ver toda a dinâmica familiar regida por Gil e a esposa Flora, que coordena não só a carreira do artista como também organiza e rege tudo o que envolve os encontros familiares.

Repertório clássico

Não faz muito tempo que Gil deu uma declaração tão polêmica quanto provocativa: ela passara a gravar pouco ou quase nada porque, de uma forma ou de outra, todas as músicas já haviam sido compostas e registradas. Claro que isso é uma hipérbole, mas não deixa de ser algo que faz pensar. Afinal, quanto mais oferta há de obras e artistas neste oceano que é a internet com suas plataformas de comunicação e divulgação, menos chance de se ter tanto um lugar verdadeiramente ao sol como ainda alcançar uma popularidade que tenha a mesma eficácia ou impacto de outrora. Portanto, nada mais natural também que o repertório da atual turnê de Gil seja um belo passeio por clássicos de várias fases de sua extensa trajetória. Afinal, se Gil conseguiu enfileirar hit atrás de hit nos tempos em que as rádios ainda tocavam a boa música brasileira do presente ou pelo menos algumas belezas não muito conhecidas pela massa, tudo o que menos se precisa enfiar em um show seria um punhado de faixas recentes que quase ninguém conhece ou já ouviu, só pela obrigação de se divulgar um disco novo e a justificativa de fazer (mais) uma turnê.

Laços com o reggae

Um dos destaques do repertório clássico de Gil é a sua forte conexão com o reggae. No disco Realce, de 1979, ele verteu português o clássico “No Woman No Cry”, de Bob Marley (Gil tinha acabado de assinar com a recém-inaugurada filial Warner, que era dirigida pelo seu ex-diretor na Phillips, o já falecido André Midani; Bob Marley era um dos grandes nomes do selo Island, representado em nosso país pela Warner, que inclusive chegou a trazer o artista jamaicano para cá). Vinte anos atrás ele chegou a gravar um álbum (Kaya N’Gan Daya) dedicado só ao gênero, com um monte de releitura de Marley inclusive. E em uma ou outra música tocada ao vivo sua o arranjo traz traços de reggae.

Fase pop

Depois de assinar com a  Warner, Gil também passou a desenvolver uma fase tão pop quanto polêmica. Sem deixar de lado a música brasileira, empunhou a guitarra e soube misturar o popular com o pop. Muitos críticos passaram a torcer o nariz para o Gil dos anos 1980, mas não há dúvida de que dali saiu muita coisa boa que ainda levou o artista a ganhar um público mais abrangente que o das rádios FM voltadas à elite cultural. São desta época pérolas dançantes (como “Palco”, “Toda Menina Baiana”, “Realce”, “A Gente Precisa Ver o Luar”, “Andar Com Fé”, “Vamos Fugir”, “Extra”, “Punk da Periferia”, “Extra II”, “Pessoa Nefasta”, “Nos Barracos da Cidade” e “Não Chores Mais”) e baladas de arrepiar (como “Drão”, “Tempo Rei”, “Super-Homem, a Canção” e “Se Eu Quiser Falar Com Deus”.) Ainda tem obras compostas por ele e gravadoras originalmente por outros artistas na época ( “A Paz”, “Um Trem Pras Estrelas”, “A Novidade”). Muitas destas citadas aí são presença constante no repertório dos concertos mais recentes.

Ex-ministro da cultura

Entre 2003 e 2008, nos dois mandatos presidenciais de Lula, Gil esteve à frente do Ministério da Cultura, rebaixado à condição de secretaria durante o (des)governo de Jair Bolsonaro. Esta não fora a primeira incursão do cantor e compositor na política. Em 1988, então filiado ao PMDB, elegeu-se vereador em sua cidade natal, Salvador. Em Brasília, porém, driblou desconfiança de colegas do meio artístico como os atores Marco Nanini e Paulo Autran, para realizar um bom trabalho na Esplanada dos Ministérios. Afastado dos palcos pero no mucho (como ministro, em seu primeiro ano de atuação, botou as Nações Unidas para dançar durante o Show da Paz na Assembleia Geral da ONU), implementou uma série de políticas públicas voltadas à difusão cultural, em um tempo onde o governo federal ainda se preocupava, de fato, com o desenvolvimento e o avanço da arte. Em tempos onde a cultura brasileira anda tão combalida e arrasada, nada melhor do que uma nova mudança de governo e um novo ministro como fora Gilberto Gil para reerguer toda essa riqueza de volta.

Imortal da ABL

Em novembro de 2021, Gil foi eleito para uma vaga na Academia Brasileira de Letras, por meio de 21 votos, para ocupar a cadeira de número 20. Sua inclusão no quadro de imortais da ABL se deu uma semana depois da de Fernanda Montenegro. Uma mostra não apenas de que a instituição (que em julho último celebrou 125 anos de existência) mostra estar se abrindo para textos não formais da literatura tupiniquim como também mais uma faceta pública de Gilberto Gil que vai além dos palcos, instrumentos e microfones. E ele merece, também. Primeiro porque nas últimas décadas revelou-se um dos mais hábeis autores musicais de nosso país. E também porque já demonstrava uma certa queda para o fardão já na capa de seu álbum de estreia, de 1968, quando posou, com olhar matreiro, para as lentes do fotógrafo David Drew Zingg como um dos personagens daquele projeto gráfico. Portanto, mais de meio século antes e ainda no auge da Tropicália, Gil – cuja posse na instituição ocorreu em 8 de abril de 2022 – já revelava sua paixão para as letras e antecipava aquilo que ocorreria às vésperas de chegar à oitava década na idade.

Movies

Filme Particular

Dezenove minutos de antigo filme sobre viagem familiar à Africa do Sul do apartheid levam a um longa de formidável investigação política

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Olhar de Cinema/Divulgação

Já assistiu a alguma coisa que te instigou a pausar e fazer uma investigação no Google? Aquela imagem de arquivo ou vídeo antigo repletos de rostos sem nome, retratando um passado misterioso mas obviamente importante? A diretora Janaína Nagata passou por isso ao comprar um carretel de filme que continha um filme particular. Essa investigação virou, claro, Filme Particular (Brasil, 2022 – Olhar de Cinema), longa que figurou a mostra competitiva da décima primeira edição do recém-realizado festival curitibano Olhar de Cinema.

Esse é um desktop movie: toda a ação está contida pelas bordas de uma tela de computador. O dispositivo não dá as caras até o vigésimo minuto de Filme Particular, que denuncia a investigação em letreiro antes de rodar os 19 minutos da viagem de uma família branca à África do Sul sessentista – ou seja, no auge do apartheid. Quando a tela trava e uma aba do navegador Google Chrome se abre, um burburinho toma a sala de cinema – ouve-se até um tímido “que m* é essa?”. O susto é rapidamente substituído por uma completa imersão no percurso do mouse de Janaína e se engana quem espera uma incursão entediante a um passado enfadonho. 

O senso de humor de Filme Particular é muito aguçado, surpreendendo com suas locuções do tradutor do Google e tramas interrompidas por um paywall. Após a primeira projeção do filme de 19 minutos, acompanhamos passo a passo o desvelamento da profunda história da costa leste sul-africana. Se não podemos saber quem são os familiares que registram o empreendimento turístico racista, podemos ver o eco da opressão em vídeos de YouTube astutamente posicionados ao lado da montagem original. Aos poucos, saímos do safari à mística histórica do milionário bruxo Khotso Sethuntsha, culminando em uma investigação histórico-política de seu mais influente cliente: Hendrik Verwoerd, o neerlandês que marca a História como o arquiteto do apartheid.

Filme Particular é uma deliciosa experiência que leva do riso à angústia com rapidez ímpar, ancorada na sensação de que o espectador é agente da ação, analisando os links em que o mouse clica, conjurando qual será a próxima estratégia. Se não tivesse a exibição do longo vídeo de base, cuja tensa trilha composta pela produção do longa-metragem torna tenso e por vezes maçante, esta obra carregaria consigo, também, um frescor empolgante.Sobreviva aos primeiros vinte minutos, portanto, e conheça um pouco mais de como a aparente particularidade de um filme de viagem pode esconder uma trama política formidável – reiterando que, no fim das contas, tudo que fazemos é político e está contido nas implicações da política.

Music

Boogarins + Oruã – ao vivo

No palco do Circo Voador, a experiência sensorial promovida por duas bandas que fogem do lugar-comum da música

Boogarins

Texto e fotos por Luciano Vitor

Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. O Circo Voador, palco de centenas de shows, centenas de bandas, centenas de horas (na minha humilde contagem, o que talvez esteja muito errado e é bem possível!), no último dia 21 de maio serviu de encontro para duas bandas que nasceram no erro da música. Mas por que “erro”? Porque a grande massa enxerga a música como algo objetivo, reto, sem muitas surpresas. Algo que beire ali um minuto e meio (ou dois ou três minutos no caso do pop), com letras terríveis, sonoridade pasteurizada e refém de aplicativos de dancinhas e afins. Justamente por isso Oruã (do Rio de Janeiro) e Boogarins (de Goiânia) são bandas que fogem do lugar comum. Suas apresentações são experiências não apenas sonoras, mas sensoriais.

Depois de mais de duas décadas pisei novamente no templo musical da Lapa, bairro central do Rio de Janeiro. O último show ao qual eu havia assistido ali tinha sido do Buddy Guy (EUA) com o Baseado em Blues (RJ). Salvo engano, muitíssimo antes da nova estrutura do Circo Voador. Outros tempos, outra era. Entretanto, se a estrutura mudou, a essência talvez não. A ideia continua a mesma: um palco, uma lona de circo, com entradas espaçosas e piso superior para quem não quem quer ficar em pé. Na área externa, banquinhas com material das bandas, material independente de cinema, locais para comprar bebidas, alimentos e afins. É nostálgico pisar no Circo Voador tanto tempo depois.

Já havia escrito a respeito do Oruã há alguns anos, mas com uma formação bem diferente do que pude presenciar ali no Circo. O grupo carioca gravita em torno de uma ideia que, na minha humilde opinião, traz a música para um sistema coletivo, onde uma banda pode e deve ter vários colaboradores, várias formações, vários direcionamentos e, principalmente, diversos significados e significâncias. Por isso enxergá-lo não apenas como um grupo musical, mas como algo para ter diversos direcionamentos diferentes com instrumentistas diferentes.

Se alguns anos atrás consegui ver o Oruã com quatro músicos no palco, na formação clássica de uma banda de rock na sua acepção mais conhecida (baixo, bateria, guitarra e vocal), desta vez no Circo Voador estava algo muito mais grandioso: duas baterias, maracas, guitarra, baixo, programação e teclados, dois vocais e muita vontade de agradecer o público presente com uma apresentação ímpar. Karin, Lê Almeida, Daniel, Bigú, Cascaes, Joab e Russo encheram o Circo com música sinuosa, torta mesmo, de uma maneira que as próprias incongruências cariocas divididas por dezenas de bairros se encontrassem ali, diante de uma plateia cheia de caras e aspectos diferentes. Foi um puta show!

Oruã representa algo muito mais à frente que os dials tradicionais podem suportar. Entre tantas mesmices, eu oro (e aqui vem o famoso trocadilho) para que um dia possamos ver uma música torta, com dissonâncias e a assinatura do quarteto-barra- septeto servindo como trilha sonora de uma das séries dos streamings mundiais da vida.

Oruã

Agora, sobre o Boogarins. Não lembro qual foi a última banda que se manteve tanto tempo dentro do mainstream do universo independente. Na realidade, este ingrato pódio é volúvel demais. Não se consegue acompanhar a evolução que o indie avançou de maneira única dentro do cenário. E o Boogarins conseguiu isso, com constância e muito trabalho.

O quarteto goiano ganhou a ribalta há dez anos, com o estouro de “Lucifernandis”. Depois disso, foi mundo afora! Após mais uma turnê na Europa, o Boogarins desceu no Rio de Janeiro e logo após um simples acorde hipnotizou a plateia. E esse show foi a imersão quase tradicional na psicodelia da banda. Acordes longos, entrega total no palco, faixas quase que instantaneamente reconhecidas pelo enorme público e um domínio absurdo de palco. A cozinha rítmica é algo de surreal. Erro zero, músicas estendidas na sua execução e um quarteto que se conhece pelo olhar. O bônus da noite foi a presença de Bonifrate, musico do Rio de Janeiro que deu uma sábia contribuição à dinâmica do grupo. Foi uma interação precisa como toda a apresentação.

Por fim, o Circo Voador presenciou uma noite incrível, com duas bandas que não precisam mais de apresentações. Precisam penas invadirem de vez o mainstream do indie mundial (como o caso do Oruã) para não saírem de vez de lá!

Set List Oruã: “Dinorá”, “Real Grandeza”, “Outros Santos”, “Miragem”, “Cravina Flor”, “Ramais”, “Cavalo Branco”, “Caboclo”, “Escola”, “Obrei Orei”, “Osíris”/“Essência Bruta” e “Maldição”.Set List Boogarins: “Derramado”, “Sombra ou Dúvida”, “Te Quero Longe”, “Passeio”, “Sai de Cima”, “Cães do Ódio”, “Correndo em Fúria”, “Dislexia ou Transe”, “Inocência”, “Onda Negra”, “Benzin”, “San Lorenzo”, “LVCO 2”, “Noite Bright” e “Foi Mal”. Bis: “Erre”, “600 Dias (ou Mantra dos 20 anos)”, “Lucifernandis” e “Auchma”.