Cinebiografia do criador da escuderia mais cultuada do automobilismo traz empolgantes cenas de corrida mas derrapa na parte dramática
Texto por Abonico Smith
Foto: Diamond Films/Divulgação
Mesmo que não seja assim tão fã de Fórmula 1, todo brasileiro sabe muito bem que o sobrenome Ferrari carrega há décadas o status de símbolo máximo de grife ligada ao automobilismo. Todo piloto quer dirigir uma. Todo milionário sonha em ter uma. Alguns jogadores de futebol que já passaram temporadas em campos europeus já dirigiram uma. Seu fundador e proprietário, Enzo Ferrari, declarou, inclusive, que enquanto outras escuderias participavam de corridas para vender automóveis ele fazia exatamente o contrário: virou empresário para continuar pisando fundo no acelerador. Mesmo que nos bastidores, por trás de tudo, comandando tudo com mão de ferro em boxes, oficinas e escritórios.
Por isso, a chegada de um longa-metragem como Ferrari (EUA/Reino Unido/Itália/China, 2023 – Diamond Films) aos cinemas pode causar bastante alvoroço em tanta gente que ama a velocidade dentro de algum bólido de motor possante e quatro rodas. A assinatura de Michael Mann, então, veterano diretor especializado personagens bastante obcecados por suas atividades, tornava-se um atrativo a mais.
Eis que, com o foco ligado sempre em um Adam Driver completamente transfigurado para se assemelhar ao protagonista, o filme se mostra uma obra dividida entre o drama e a ação. Neste último quesito, a mão de Mann – que havia três décadas tentava levar às telas esta adaptação de uma biografia publicada em 1991 – mostra-se perfeita. As muitas cenas de corrida, seja em circuitos fechados ou pelas ruas e estradas da região da Emilia-Romagna, são de encher os olhos, ainda mais na grande tela. Só que nem só disso vive um bom filme e justamente na outra parte que este Ferrari derrapa.
O arco dramático, que no roteiro acaba de sobressaindo e tendo mais destaque do que as provas em si, começa em 1957, alguns anos depois que o piloto Enzo Ferrari decidiu abandonar de vez o volante depois de ver dois grandes amigos perderem a vida em acidentes ocorridos em um mesmo dia de corrida. Contudo, em uma Itália ainda se recuperando economicamente e juntando os cacos provocados pela Segunda Guerra Mundial, o futuro da escuderia que leva o seu nome parece incerto. O agora entrepeneur busca espantar de vez a assombração da falência tentando levantar dinheiro por meio da família e de empréstimos bancários. Para poder decolar e se manter profissionalmente, entretanto, era necessário se obter vitórias, sobretudo na Mile Miglia, percurso de longa distância (mil milhas, com dizia o nome) que passava por várias cidades italianas que fora retomado naquele pós-guerra. Como Enzo tinha grandes adversários nas pistas sua obsessão por chegar em primeiro aumentava a cada ano, custasse o que custasse, inclusive a vida de vários pilotos da Ferrari.
Aliás, a vida pessoal do protagonista é bastante devassada nas telas. A constante luta contra a morte aparece do início ao fim do filme. Além da perda dos pilotos da escuderia – motivo pelo qual era constantemente atacado pela imprensa esportiva local – também havia o sentimento perene na família. Ainda na adolescência, em 1916, ele já perdera pai e irmão mais velho para um surto de gripe que se espalhara por todo o país. Contudo o abalo maior ficou por conta do falecimento em 1956 de Dino, o único filho com a esposa Laura e por isso seu sucessor, aos 24 anos de idade, vitimado por uma distrofia muscular. Aliás, o nascimento de Dino também havia sido um outro forte motivo para que Enzo fizesse a transição definitiva de piloto para empresário em 1932.
O casamento com Laura, que já não vinha bem desde o período da guerra, já havia virado um leite derramado. Tanto que Enzo mantinha vida dupla com outra mulher e criando um outro filho, mesmo não podendo ser reconhecido legalmente por ele por conta da então ainda inexistente lei do divórcio em território italiano. O que quase todo mundo já sabia veladamente nos bastidores Laura acaba descobrindo, dificultando ainda mais o entendimento entre os dois “sócios” da escuderia.
Aqui, portanto, reside o grande problema de Ferrari, que é a sua parte dramática. Adam Driver termina o filme como começou: quase escondido, não apenas pelo disfarce da caracterização e os quilos de maquiagem. Fala bem pouco em cena, muitas vezes resmungando e lacônico, com a cara fechada, pisando em seus trabalhadores e interlocutores. Pode-se até argumentar que esta seria de fato a personalidade rude do “comendador”, mas também acaba jogando contra a mise-en-scène do protagonista. Penélope Cruz, por sua vez, dá vida, viço e sangue a uma Laura ofendida e impulsiva, capaz de atirar à queima-roupa no marido em casa ou ser tão grossa quanto ele nas ligações da imprensa e de financiadores. Já Shailene Woodley (a sempre resignada Lina Lardi, a amante e mãe do filho bastardo) não diz muito a que veio em seu pouco tempo de tela.
Além do desnível das interpretações, Ferrari também “sai da pista” e “bate na mureta” ao cometer o grande erro de muitas produções hollywoodianas ambientadas na Europa continental e com personagens reais que, em seu cotidiano, falam em idioma natal. Este é mais um filme de italianos, de história bem italiana, de característica italiana falado em inglês! (Detalhe: Adam Driver também estava no elenco de Casa Gucci, que chafurdou em críticas e bilheteria por este motivo.) E o que faz ali o competente ator brasileiro Gabriel Leone, fazendo um piloto espanhol (Alfonso de Portago), conversando com o patrão italiano, em inglês?
Ao final da sessão fica aquela lembrança histórica do maior momento de narração de Cleber Machado na F1 – aliás, uma enorme polêmica protagonizada justamente pelos dois competidores da Ferrari na temporada de 2002. Na volta derradeira do GP da Áustria, Rubens Barrichello estava bem à frente do companheiro de escuderia, Michael Schumacher e iria cruzar a linha de chegada e receber a bandeirada da vitória. Contudo, sua equipe obrigou o brasileiro a desacelerar e ceder, nos metros finais, a frente para Schumacher, já que isso contabilizaria mais pontos para que o alemão pudesse vencer o campeonato de pilotos. Ferrari, o filme, faz ecoar na mente o futuro bordão com a empolgação sendo subitamente trocada pelo tom de decepção. Hoje não, hoje não… hoje sim!
Oito motivos (entre eles alguns que envolvem o aguardado álbum The Car, que acaba de ser lançado) para não perder os shows dos britânicos no Brasil
Texto por Abonico Smith
Fotos: Divulgação
Se existe um dos nomes mais aguardados pelos fãs brasileiros de indie rock neste fim de ano, ele é o do Arctic Monkeys. Afinal, o grupo liderado pelo guitarrista, vocalista principal e letrista Alex Turner está de volta aos discos e palcos.
Passado um intervalo de quatro anos, o quarteto volta a lançar um novo álbum, The Car, o sétimo trabalho de estúdio da carreira, que chegou oficialmente às lojas físicas e plataformas digitais neste último 21 de outubro. Trazendo como base a divulgação desta coleção de dez novas faixas, Turner, Jamie Cook (guitarra, teclados), Nick O’Mailey (baixo) e Matt Helders (bateria e backingvocals) já estão na estrada desde o verão europeu.
Depois de participarem de um punhado de festivais, o grupo levou a turnê homônima aos Estados Unidos e mais alguns países do Velho Continente antes de chegar à América Latina, onde passa o próximo mês com datas marcadas para Brasil, Paraguai, Chile, Argentina, Peru, Colômbia e México. Em território nacional, o grupo é um dos headliners da primeira noite (5 de novembro) da primeira edição da edição em verde e amarelo do Primavera Sound, em São Paulo, no Distrito Anhembi (outras informações sobre o festival você tem aqui). Na véspera (dia 4), fazem um dos sideshows do Primavera no Rio de Janeiro na Jeneusse Arena. O segundo compromisso (dia 8) será em Curitiba, na Pedreira Paulo Leminski. Em ambas as oportunidades, a atração de abertura ficará por conta dos nova-iorquinos do Interpol, também escalados para o Primavera BR. Mais sobre os ingressos desses dois concertos paralelos você pode encontrar clicando aqui.
Como esquenta dessa nova vinda ao país de uma das mais importantes formações do rock britânico do século 21, o Mondo Bacana preparou oito motivos para você nem sequer pensar em perder a nova passagem do quarteto por aqui.
The Car
O sétimo álbum de estúdio demorou mais do que o previsto para ser apresentado publicamente por conta de uma interrupção forçada pela pandemia da covid-19. Neste caso, porém, o mal veio para o bem Afinal, a banda pode ter um bom tempo de sossego e calma para trabalhar na pós-produção e refinando a sonoridade até chegar com requinte e perfeição ao objetivo inicialmente proposto: fazer dos Arctic Mokeys, em um total de dez faixas, uma grande banda de sonoridade pop orquestral sixtie. Scott Walker, John Barry, Serge Gainsbourg, Burt Bacharach, George Martin… Boas referencias saltam aos ouvidos já durante a primeira audição. Também percebe-se o esmero dos vocais impressos por Alex Turner. Ele canta com estilo, livre, leve e solto. Manda diversos trechos em falsete com aquela segurança que só o tempo é capaz de dar a um grande músico (vale lembrar que aquele garoto-prodígio dos dois primeiros álbuns avassaladores dos Arctic Monkeys já chegou aos 36 anos!). E tem ainda a bela capa clicada pelo baterista Helders, com um automóvel estacionado solitariamente no terraço de um edifício-garagem.
Ao vivo no Kings Theatre
No dia 22 de setembro, os Monkeys estavam em Nova York. Mais precisamente no tradicional e recentemente renovado Kings Theatre, no Brooklyn, para fazer diante de 3 mil espectadores aquela que, até agora, foi a mais luxuosa (e intimista, se contar que era o palco de um teatro e quem viu tudo estava sentado em uma poltrona confortável) apresentação da turnê de The Car. No set list figuraram quatro das dez faixas do novo disco, sendo duas tocadas pela primeira vez ao vivo diante de seus fãs. “There’d Better Be a Mirrorball” fez o trabalho de abertura da noite. Lá pelo meio pintou ainda “Body Paint”, que já havia sido mostrada dias antes, mas desta vez na TV, durante o talk show comandado por Jimmy Fallon. O restante do repertório (18 outras canções) deram uma boa espanada na já extensa trajetória do grupo de Sheffield, com destaque para o mais popular trabalho, AM, de onde foram pinçadas seis faixas. Hits não faltaram, para mostrar que, sim, os Monkeys continuam uma grandiosa banda ao vivo, com muito peso e presença de palco. Entre eles estavam “Do I Wanna Know”, “Arabella”, “R U Mine”, “Why’d You Call Me Only When You’re High?”, “Crying Lightning”, “Brainstorm” e “I Bet You Look Good On The Dancefloor”. De quebra, pintou uma composição que não estava prevista inicialmente no set preparado para a noite (“The Ultracheese”, do álbum anterior Tranquility Base Hotel + Casino). Ficou com vontade de poder ter estado lá e assistido a este concerto de 45 minutos? Então acesse o YouTube da banda neste domingo, 23 de outubro, às 16h no horário de Brasília. O show será transmitido pela banda na íntegra por lá. Não poderá assistir a ele neste horário? Não tem problema também: tudo ficará disponível ali mais um pouco, até o dia 27.
I Ain’t Quite Where I Think I Am
A performance desta nova música do show no Kings Theatre também virou o videoclipe oficial dela. Executada na parte final do set list, a canção ganhou uma aura soul com a combinação entre o vocal estiloso de Turner, o efeito wah wah da sua guitarra, uma percussãozinha discreta e aquela mãozinha poderosa dos backings em falsete feitos por vários músicos no palco. Para completar, a reunião de versos bastante abstratos criados pelo frontman desenham um certo sentimento de entranheza e nao pertencimento durante um passeio pela Riviera francesa com sua namorada também francesa.
There’d Better Be a Mirrorball
Faixa de abertura de The Car e também de boa parte dos shows da nova turnê. Quando tocada ao vivo, com os músicos recém-chegados ao palco, pode até causar estranheza em fãs mais desavisados, esperando uma pancadaria sonora para injetar adrenalina na plateia logo de cara. Só que não. O desafio da trupe de Turner no novo disco é provocar um mergulho retrô pela sofisticação do pop sessentista, quando belas melodias e harmonias bem trabalhadas se encontravam com muitos arranjos de cordas que em muito ainda contribuíam para a riqueza auditiva. Não é diferente em “There’d Better Be a Mirroball”. Com versos que flertam com ares reflexivos provocados pela deparação do protagonista/narrador com uma ambientação de explícita decadência e aquela sonoridade de boate da boca do lixo, a faixa é o cartão de visitas da nova fase do grupo. Portanto, nada melhor do que também começar o concerto com ela, com as cordas disparadas em bases pré-gravadas ou mesmo recriadas em sintetizador. Curiosidade: Alex também assina a direção e a fotografia do videoclipe. As imagens foram todas captadas por ele durante as sessões de gravação do novo disco em Los Angeles, para onde carregou a tiracolo uma câmera de 16mm para também brincar de cineasta dentro do estúdio.
Body Paint
Mais uma faixa de The Car que ganhou videoclipe oficial antes mesmo do disco ter sido lançado oficialmente. Com direção de Brook Linder e imagens captadas entre Londres e Missouri, o clipe é, na verdade, um metaclipe. Mostra os bastidores da filmagem e da edição de um filme e brinca com diversas referências de formas circulares e retilíneas, além de fazer da projeção dentro da projeção um elemento vivo de cena, que comanda por meio de luzes uma determinada linha melódica de um riff ou ainda faz o vocalista se multiplicar em três para cada um deles cantar uma parte do mesmo verso. Os cinéfilos poderão notar a reverência ao cineasta norte-americano Alan J. Pakula (Todos os Homens do Presidente, A Trama, A Escolha de Sofia, Klute: O Passado Condena).
Tranquility Base Hotel + Casino
The Car é um passo além daquele dado pelo grupo há quatro anos, quando relevou ao mundo o surpreendente sexto álbum da carreira. O peso, a urgência e a ansiedade explosiva dos primeiros trabalhos deram lugar, em 2018, a um trabalho muito maduro, que mesclava referências sonoras díspares (entre elas glam, progressivo, jazz e psicodelismo). Certamente The Car não teria sido feito se não tivesse existido Tranquility Base Hotel + Casino – que, inclusive, chegou a abocanhar o Grammy de melhor disco de rock alternativo. Suas duas principais faixas continuam mantidas no novo repertório ao vivo (a música-título e “Four Out Of Five”) e devem ser tocadas para os fãs brasileiros.
505
Favourite Worst Nightmare (lançado em2007), rendeu três grandes hits naquele ano: “Brainstorm”, “Fluorescent Adolescent” e “Teddy Picker”. Quinze anos depois, mais uma faixa daquele trabalho veio a se juntar à mesma galeria de sucessos. Trata-se do final daquele segundo álbum da carreira. “505”, a famosa “última do lado B”, descoberta meses atrás pela geração Z e que viralizou a tal ponto no TikTok que impulsionou a canção, outrora obscura e desconhecida, ao pódio das maiores execuções dos Monkeys no Spotify. O título se refere ao número do quarto do hotel onde está a namorada do narrador/protagonista da canção, que preenche os versos com muita imaginação e os sobrecarrega com pimenta sexual (“In my imagination you’re waiting lying on your side/ With your hands between your thighs”, diz o refrão). Turner, em entrevista ao website britânico NME, diz achar curioso e legítimo o revival intenso da canção por uma geração que ainda era bem criança quando ela foi gravada e fechava os shows da banda na mesma época, mas também confessa ter ficado um tanto quanto confuso sobre o porquê da escolha e da adoração desta faixa. De qualquer modo, ele que não é bobo, já encaixou “505” no repertório desta turnê e em um lugar especial: o encerramento do bis, logo antes de todos os músicos deixarem o palco em definitivo.
Menino-prodígio
Lá em meados dos anos 2000, quando o MySpace bombava entre os fãs de rock e pop como a plataforma de divulgação musical mais democrática e interessante na recente internet 2.0, nomes como Arctic Monkeys, Lily Allen e Cansei de Ser Sexy pegaram muita gente de surpresa ao voarem do quase anonimato para a fama mundial. No caso da banda de Sheffield, Whatever People Say I Am, That’s What I’m Not (2006) entrou para a História como o álbum de estreia de maior vendagem no mercado fonográfico britânico (contabilizou quase 400 mil exemplares somente na primeira semana nas lojas. E mais: lançado por um selo independente chamado Domino, faturou o Brit Awards de melhor álbum da temporada e ainda passou a ser incensado como um dos mais fantásticos primeiros discos de um artista em todos os tempos. Alex Turner era o cérebro por trás de toda essa força-motriz. As faixas empolgavam por conseguirem encaixar um canto falado em um arranjo básico (leia-se guitarra, baixo e bateria) poderoso, urgente e de alto teor de adrenalina. Algo que, guardadas as devidas proporções, não acontecia na ilha da Rainha Elizabeth desde os tempos do punk rock. As letras escritas pelo vocalista também eram fantasticamente criativas e elaboradas, cinematograficamente literárias, com vocabulário rico pouco comum para um jovem de apenas 20 anos. O bom é que tudo isso não se mostrou um fogo-de-palha. Favourite WIrst Nightmare veio no ano seguinte para dar prosseguimento ao grande estilo dos Monkeys. Depois, a banda elaborou o som, adotando mais peso e sujeira em discos como Humbug e AM, seu álbum mais popular até hoje. As letras escritas por Turner – ainda bem – continuaram com o sarrafo sendo posto lá em cima, ajudando o quarteto a se tornar uma das maiores bandas britânicas deste século 21. E tudo isso sem contar os projetos paralelos do rapaz, como a trilha sonora do filme Submarine e o Last Shadow Puppets, formação criada ao lado de Miles Kane ex-Rascals) e o produtor James Ford (nome seminal do indie disco dos anos 2000, membro do cultuado Simian Mobile Disco, produtor de todos os álbuns dos Monkeys e que já trabalho com gente do quilate de Depeche Mode, Gorillaz, Haim, Foals, Beth Ditto, Peaches, Florence & The Machine, Little Boots, Mumford and Sons, Kalxons, Kylie Minogue e Jessie Ware)
Oito motivos para não perder o show da banda animada de maior sucesso do mundo em sua volta ao Brasil
Texto por Abonico Smith
Fotos: Divulgação
Tudo começou como um despretensioso projeto paralelo para se divertir e desopilar das obrigações à frente do Blur e da posição de porta-estandarte do britpop. Afinal, criar uma banda virtual não demandaria assumir a frente de um palco ou colocar a cara em fotos, entrevistas e videoclipes. Franca ingenuidade. O Gorillaz não só não demorou para tornar-se a primeira e mais importante ocupação de Damon Albarn como também já contabiliza uma discografia com onze títulos (entre trabalhos de carreira mais compilações com remixes, raridades e singles) lançados em 21 anos. E um Grammy, entre várias indicações para esta e outras premiações importantes da indústria fonográfica mundial. Mais seis turnês.
A mais recente, batizada Song Machine Tour e iniciada no ano passado, começou de forma virtual, sendo transmitida em três oportunidades para diferentes continentes em cada uma delas. Agora, depois de dois anos sem grandes show sinternacionais por conta da pandemia da covid-19, é a chance de ver tudo ao vivo e in loco aqui no Brasil. Albarn, suas criaturas animadas e seus asseclas instrumentistas (sim, há todo um aparato de superbanda montado para tocar e cantar ao vivo, enquanto as personagens aparecem em um telão), passarão novamente pelo Brasil, onde já estiveram para fazer um show em 2018. O mês será maio, com três datas marcadas. O grupo britânico será um dos headliners do festival MITA (acrônimo para a expressão Music Is The Answer), que será realizado nos dias 14 e 15 em São Paulo e 21 e 22 no Rio de Janeiro (o Gorillaz encerra a programação em 15 e 21 – clique aqui para saber sobre local, ingressos, atrações e demais informações). No meio disso, o combo, agora como figura solitária da programação paralela chamada MITA Day, passará por Curitiba, na Pedreira Paulo Leminski, no dia 18 (cliqueaqui para as demais informações sobre este concerto; os ingressos também podem ser comprados pessoalmente na Bilheteria 1 do estádio Couto Pereira, de terça a sábado exceto em dias de jogos de futebol, das 10h à 17h).
Para celebrar o retorno do Gorillaz a terras brasileiras, o Mondo Bacana enumera oito motivos para você nem pensar em perder qualquer um destes três concertos – sem contar o fato de que o show na capital paranaense serve de encomenda para quem não tem mais paciência nem físico para aguentar um dia inteiro de pé durante um festival com um monte de atração se apresentando antes.
Banda de cartoon
OK, vamos descontar os chipmunks de Alvin e os Esquilos, criados em 1958 para a literatura infantil e transformados em desenho animado televisivo para as crianças em 1961. Os bichinhos cantavam num agudo infernal, produzido pela rotação aceleradíssima da gravação dos vocalistas originais recrutados para o projeto. Não havia banda, porém. Nenhum instrumento: apenas cantores. Então tudo começou mesmo lá no finalzinho dos anos 1960, quando o mainstream já começou a assimilar os elementos musicais da contracultura e levou as bandas de rock para dentro dos roteiros de desenhos animados para as crianças. Então, na manhã de sábado, começaram a desfilar vários grupos formados por jovens que, com suas guitarras, contrabaixos e baterias (às vezes, uns teclados e pandeiros também) adicionavam melodias grudentas e letras doces às narrativas de suas histórias. O exemplo de maior sucesso nas paradas foi a canção “Sugar, Sugar”, feita para a animação Archies (1968). Os estúdios Hanna-Barbera exploraram essa fórmula à exaustão em Banana Splits (1968), Gatolândia (1969), Josie e as Gatinhas (1970, 1972), Bambam e Pedrita (1971), As Aventuras de Charlie Chan (1972), Butch Cassidy and The Sundance Kids (1974) e Tutubarão (1976). Até artistas de carne e osso foram transformados em cartoon, como os irmãos Jackson 5 (1971) e os atores/personagens da sitcomFamília Dó-Ré-Mi (1974). Em 1985, a Hasbro, empresa de brinquedos concorrente da Mattel (que fazia bastante sucesso com as animações de He-Man e She-Ra para vender produtos dos personagens para as crianças), produziu por três temporadas a série Jem e as Hologramas, que serviu mesmo para vender bonecos às meninas na pré-adolescência. Só que aí veio a última década do século 20 e a televisão deixou de ser a mídia preferida de crianças e teenagers…
Dupla dinâmica
… Até vir o Gorillaz, quarteto que começou a ser criado em 1998 pelo músico Damon Albarn e o ilustrador Jamie Hewlett, que, desde o ano anterior, passaram a dividir um apartamento em Londres. Eles já se conheciam desde 1990, quando, ainda antes de lançar seu primeiro álbum, o Blur foi entrevistado por Hewlett para o fanzine Deadline. O encontro entre os dois foi proporcionado pelo guitarrista Graham Coxon, um grande fã de quadrinhos e admirador do trabalho que Jamie fazia na série de HQ Tank Girl, que vinha como um dos grandes atrativos da publicação, editada pelo cartunista. Inicialmente um não ia lá muito com a cara do outro, sobretudo porque a disputa entre eles envolvia a mesma garota. Quando apararam as arestas, chegaram à conclusão de que a melhor maneira de se acertarem definitivamente seria somar o que ambos sabiam fazer de melhor e fazer com que as duas mídias se comunicassem e se complementassem. Claro que o fato de se tratar do mundo da animação permitiu fazer com que a criatividade de ambos voasse longe e não tivesse limites.
Vida louca vida
Que bandas de rock sempre apresentaram as mais loucas histórias nas biografias de seus integrantes isso não é novidade. Só que Hewlett e Albarn capricharam na diversidade que forma o segredo do sucesso do Gorillaz. O fundador e líder do quarteto é o baixista Murdoc Niccals, satanista de carteirinha (atente para a data de seu nascimento: 6.6.66), que fez um contrato com o demo para conseguir fama por meio da música, tendo sido obrigado a colocar Faust como seu nome do meio e ganho um contrabaixo de presente batizado como El Diablo. Fora dos palcos e estúdios, só se mete em confusão com drogas, prisões, acidentes e incidentes provocados por ele mesmo, chegando até a curtir um período de afastamento da banda, sendo temporariamente substituído por Ace, personagem do desenho animado das Meninas Superpoderosas. Foi Murdoc, inclusive, o responsável pelo acidente de carro que colocou o vocalista Stuart 2-D Pot em coma, fazendo-o perder seu olho esquerdo. Logo depois, o mesmo Murdoc fez um cavalo-de-pau de 360 graus que fez o passageiro 2-D enfiar a cabeça no vidro frontal e perder a visão direita. O garoto, por sua vez, era acostumado a bater a cabeça desde criança. Seu cabelo azul é resultado disso, uma queda de uma árvore durante a infância (?!?!). Já o visual do rapaz, inspirado meio que no próprio Albarn, meio que em dois amigos em comum dos criadores (um deles, o vocalista do Menswear, outro grupo de destaque durante o levante britpop em meados dos anos 1990), reproduz aquele estereótipo do “vocalista bonitinho e aparentemente não muito inteligente de uma banda popular de rock”. A guitarrista Noodle não veio sob encomenda mas chegou literalmente pelo correio. Com onze anos de idade no início da banda, ela foi despachada pelo serviço secreto japonês como forma de se livrar de uma experiência mal sucedida com crianças criadas para dominar igualmente armas, idiomas e instrumentos. No caso de Noodle (o apelido veio da única palavra em inglês que ela soube dizer à banda ao sair da caixa), as tentativas não deram muito certo, a não ser pela guitarra. Completa a formação o baterista Russell Hobbs, bolado para ser uma representação da faceta hip hop do Gorillaz, uma simbologia da parte rítmica casada à poesia. Criado no Brooklyn e mandado a Londres pelos pais para não se meter mais em encrenca pelas ruas de Nova York, o jovem incorpora o espírito de um grande amigo de adolescência, também rapper, morto a tiros. O melhor desta diversidade toda é que os personagens vão tendo suas narrativas e histórias desenvolvidas a cada álbum, tendo como suporte as faixas e os videoclipes. Portanto, ao contrário de todas as bandas de cartoon antecessoras, o tempo passa para os integrantes do Gorillaz e eles vão sendo transformados aos poucos.
Filme na Netflix
O que nos leva àquele que talvez seja, há anos, o mais aguardado produto com a marca Gorillaz: um longa-metragem. Sabe-se que o projeto está em desenvolvimento e que o filme será lançado diretamente por streaming, via Netflix. Entretanto, apenas este detalhe foi confirmado pela dupla criadora da banda. Nada mais foi dito ainda a respeito da história, como ela será e quem mais estará envolvido no projeto.
Braços dados com o hip hop
Uma das propostas de Damon Albarn ao montar o projeto paralelo foi se aproximar de suas paixões na adolescência (como o Clash ou as bandas two-tone, por exemplo) distanciar o máximo possível da sonoridade traçada pelo Blur naquele auge da banda nos meados dos anos 1990. Faz sentido, afinal, nos anos anteriores ele foi catapultado ao estrelato como um dos cânones do britpop, que resgatou a sonoridade clássica sixtie do rock britânico e a levou de volta às paradas mundiais. Portanto, sobrou para o Gorillaz um terreno fértil apontando para outros caminhos da música pop. Mais groove. Menos destaque para guitarras e violões. Mais diálogo com outros gêneros, como a world music e o hip hop. Aliás, a fusão com o hip hop foi o principal acerto da nova sonoridade. Era um começo de anos 2000 e o rock ainda flertava timidamente com programações eletrônicas, sintetizadores e sobretudo o canto falado e ritmado criado pelos pretos nova-iorquinos. Então, mesmo enfrentando uma forte concorrência com o potente novo rock retrô e regressivo daquele início de década (Strokes, White Stripes, Franz Ferdinand, Killers, Libertines, Interpol, Yeah Yeah Yeahs), foi justamente a adição do rap como um forte elemento que fez o Gorillaz apontar para o futuro e dialogar com uma geração mais nova de fãs por todo esse tempo. Não só isso: provou que o rock poderia abraçar o hip hop justamente quando o gênero passou a ter extrema importância mercadológica, vendendo cada vez mais milhões e milhões no novo século, chegando a encabeçar escalações diárias dos mais tradicionais festivais de rock e música pop.
Clint Eastwood
Já em seu álbum de estreia, epônimo, de 2001, o maior cartão de visitas do projeto era um casamento perfeito com o hip hop. No som e no discurso. “Clint Eastwood” não foi o primeiro single do disco, mas foi aquela faixa responsável pelo breakthrough da banda nas rádios e programações da MTV ao redor do mundo. Em cima de uma harmonia por demais simplória, Albarn e o rapper norte-americano Del The Funky Homosapien (e primo de Ice Cube, também ator e ex-NWA), comanda a história do finado amigo de Russell cujo espírito volta à terra para se apossar do corpo do baterista e promover uma grande ode ao mundo dos mortos-vivos. Aliás, a temática zumbi sempre foi uma das grandes paixões da dupla criadora. E é justamente ela que domina a história do videoclipe, que já começa com uma citação do filme Despertar dos Mortos, um dos vários clássicos assinados pelo cultuado diretor George Romero. Na trama, um monte de gorila desperta das catacumbas para perseguir os vivos, sobretudo Murdoc, 2-D e Noodle (já que Russell dá início ao levante protagonizando a atividade paranormal). Duas décadas depois, a faixa ainda é poderosa demais para não deixar ninguém parado, sem dançar, nem calado, sem cantarolar ao menos o refrão. E o que o famoso ator e diretor hollywoodiano – mais ligado a produções de dramas e faroestes – tem a ver com a história para dar título à música? Com a história nada. Entretanto, no início do arranjo, um fraseado instrumental criado inadvertidamente por Damon no estúdio durante os rascunhos para a canção lembra vagamente o principal tema musical do western spaghetti O Bom, O Mau e O Feio (1966), dirigido pelo italiano Sergio Leone e com Eastwod como um dos protagonistas.
Feel Good Inc.
Grande destaque do segundo álbum, Demon Days (2005), tendo inclusive recebido um Grammy (melhor colaboração pop com vocais) e outras duas indicações (gravação do ano, melhor videoclipe) ao prêmio máximo do mercado fonográfico mundial. Aqui, Albarn se junta ao trio de rap De La Soul para detonar uma grande dinamite sonora capaz de explodir qualquer pista de dança ou multidões em gigantes arenas. A letra, a começar pelo nome jocoso e sarcástico, faz uma critica severa à obrigação de demonstrar bem-estar e felicidade extremada (sobretudo nas redes sociais) que tem tomado de assalto a população mundial desde a internet virou vício diário. O clipe, com fortemente inspirado pelo trabalho do japonês Hayao Miyazaki e seu estúdio Ghibli, trata da imbecilização promovida pela cultura de massa e questiona a falta de liberdade intelectual vinda a partir dela. Aliás, a risada malévola do DJ Maseo arrepia a cada audição – ainda mais quando o De La Soul é convocado por Albarn para participar ao vivo da música, em turnês e apresentações especiais.
Um milhão de amigos
Desde o início a proposta do Gorillaz foi ter um monte de convidados especiais em suas faixas. A cada disco, na ficha técnica, fazendo participações ou assinando remixes, desfila um panteão de grandes representantes da música em todas as vertentes. Olha a lista de “alguns” destes nomes: Dan The Automator, Kid Coala, Miho Hatori (Cibo Matto), Del The Funky Homosapien, Ibrahim Ferrer (Buena Vista Social Club), Dave Rowntree e Graham Coxon (Blur), Tina Weymouth e Chris Frantz (Talking Heads e Tom Tom Club), Soulchild, Phi Life Cypher, Danger Mouse, Simon Tong (Verve), Demon Strings, Neneh Cherry, De La Soul, U Brown, Ike Turner, MF Doom, Roots Manuva, Martina Topley-Bird (Tricky), Shaun Ryder (Happy Mondays e Black Grape), Dennis Hopper (ator e diretor de Easy Rider – Sem Destino), Spacemonkeyz, Snoop Dogg, Mos Def, Bobby Womack, Gruff Rhys (Super Furry Animals), Little Dragon, Mark E. Smith (Fall), Lou Reed (Velvet Underground), Paul Simonon (Clash), Mick Jones (Clash, Big Audio Dynamite), Jean-Michel Jarre, Grace Jones, Pauline Black (Selecter), Terry Hall (Specials), Bees, Einar Orn (Sugarcubes), Hot Chip, Metronomy, Soulwax, Danny Brown, Mavis Staples (Staples Singers), Pusha T, Little Simz, Kali Uchis, Benjamin Clementine, Jehnny Beth (Savages), Noel Gallagher (Oasis), Rag’n’Bone Man, Kilo Kish, Carly Simon, George Benson, James Ford (Simian Mobile Disco, Last Shadow Puppets), Beck, Robert Smith (Cure), Schoolboy Q, Prince Paul, St Vincent, Peter Hook (New Order, Joy Division), Slowthai, Slaves, Unknwon Mortal Orchestra, Joan As Police Woman, Tony Allen (Fela Kuti), Leee John, Earl Sixteen, Skepta, Stuart Zender e Simon Katz (Jamiroquai) e Elton John. É pouco?
Vocalista da Nação Zumbi pisa em solo sagrado com releituras de Gonzagão em show solo vibrante e com protocolos
Texto e foto por Fabio Soares
Qual foi seu último concerto antes da pandemia? Muitos terão a resposta, outros não, mas o certo é que após quase dois anos, o circuito de shows no Brasil regressa, muito embora combalido pela inatividade, associado a novos hábitos. O tão falado e necessário protocolo é o novo Norte. Assistir a uma apresentação musical “calçando” máscaras? Não brinquem, doravante será assim, aceitem que dói menos.
E foi sob este clima de recomeçar a andar que em 28 de Novembro último me dirigi ao SESC Vila Mariana, em São Paulo, para vivenciar minha primeira gig após quase dois anos: Jorge Du Peixe (corpo, alma e voz da Nação Zumbi) realizaria a derradeira de três apresentações na unidade para promover Baião Granfino, seu recente trabalho solo em que revisita o repertório de ninguém mais, ninguém menos que Luiz Gonzaga. Acompanhado por um competentíssimo e diverso sexteto, o cantor abriu os trabalhos com “Assum Preto”, clássico gonzaguiano recheado de tristeza (“Assum Preto, o meu cantar/É tão triste como o teu/Também roubaram meu amor/Que era a luz, ai, dos ‘óios’ meus”). “Sanfona Sentida” veio a seguir na forma de um sofisticado xote com percussão pujante. Neste momento houve a primeira quebra de protocolo, com parte dos presentes dirigindo-se às laterais da plateia para dançar. A rouca voz do artista emoldurava o clássico de maneira singular. Aliás, em Baião Granfino, a particular assinatura musical do artista tira o disco de covers da zona de conforto. Ah, se todos os álbuns de versões fossem assim!
O baile seguiu com uma matadora trinca de clássicos: “Orelia”; “Sabiá” (com seu indefectível refrão “A todo mundo eu dou psiu [psiu, psiu, psiu]/ Perguntando por meu bem/ Tendo o coração vazio/ Vivo assim a dar psiu/ Sabiá vem cá também” e “Acácia Amarela”. Esta, por sua vez, despertou gatilhos neste que vos escreve ao fazer lembrar os discos de Luis Gonzaga que a mãe colocava numa alaranjada vitrola Sonata – vale ainda destacar que o refrão da canção é uma ode à desigualdade social (“Sou um feliz operário/ Onde aumento de salário/ Não tem luta nem discórdia/ E o Grande Arquiteto do Universo/ É harmonia, é concórdia”).
Entre os intervalos das canções, Peixe lembrou a plateia que Gonzagão foi o primeiro popstar da história do Brasil. “Ele foi pré-bossanova, pré-iê iê iê, pré-tropicália. Apontou caminhos que ninguém havia imaginado até então”. A plateia, extasiada, aplaudiu ao mesmo tempo que quebrava todo e qualquer protocolo.
Depois, “Festa” fez o baile de máscara explodir e a sequência formada por “Pagode Russo”, “Qui Nem Jiló” e “O Fole Roncou” colocou um fim a noventa mágicos minutos em que a sofisticação caminhou lado a lado com o popular. “Nossa missão é levar a música de Gonzagão a todos os lugares possíveis e imagináveis. Enquanto eu estiver vivo, seguirei tentando”.
Você está conseguindo, Jorge, acredite. Você está conseguindo. E com protocolos!
Set list: “Assum Preto”, “Sanfona Sentida”, “Orelia”, “Sabiá”, “Acácia Amarela”, “Baião Granfino”, “Rei Bantu”, “Festa”, “Pau de Arara”, “Cacimba Nova”, “Maria, Minha Maria”, “Erva Rasteira”, “Roendo Unha”, “Pagode Russo”, “Qui Nem Jiló” e “O Fole Roncou”.
Com comovente simplicidade, longa mostra o esforço de uma família de imigrantes coreanos na busca pelo sonho americano de prosperar na vida
Texto por Andrizy Bento
Foto: Galeria Distribuidora/Divulgação
Minari é uma planta originária do leste do continente asiático, com um forte sabor de ervas, utilizada para temperos na Coréia do Sul e que possui fins medicinais. Por aqui, no Brasil, alguns costumam se referir como agrião coreano. O cultivo dela na nova terra em que seus descendentes têm grande probabilidade de crescer e iniciar o seu legado é o principal elo que se forma entre uma excêntrica avó e seu aparentemente frágil e esperto neto. Assim, Lee Isaac Chung – que acumula as funções de diretor e roteirista – compõe um delicado drama familiar, repleto de camadas e com um toque autobiográfico.
Os Estados Unidos são conhecidos como a terra das oportunidades. É para onde muita gente vai disposta a correr riscos, sair da zona de conforto e, às vezes, até abrir mão do pouco que têm em busca do famigerado sonho americano. O tal sonho americano já serviu de plot para inúmeras narrativas, especialmente no grande ecrã. Já vimos filmes que retratam essa ilusão de variadas formas: românticas, idílicas, líricas, trágicas. Mas poucas vezes o tema foi abordado com tamanha honestidade e pureza como em Minari – Em Busca da Felicidade (Minari, EUA, 2020 – Galeria Distribuidora).
O longa versa sobre imigração, diferenças culturais e religiosas, dificuldades de adaptação e, sobretudo, os tão poderosos quanto tênues laços familiares. A trama é extremamente simples, focando na tocante trajetória do clã Yi, os problemas ocasionados devido à sua não familiaridade com a vida, os costumes e tradições provincianos e os conflitos geracionais emergentes da relação entre as crianças e a exótica avó.
Na trama, que se passa na década de 1980, uma família coreana deixa a cidade da Califórnia em busca de um recomeço na zona rural de Arkansas. É evidente que as coisas não saíram como o planejado no antigo lar, portanto, Jacob toma a iniciativa de mudar-se com a mulher e os filhos e começar a plantar em suas novas e inexploradas terras, dando início a uma fazenda. Sua esposa não vê com bons olhos o empreendimento arriscado de seu marido. Ela já está contrariada com a situação de ter de morar em uma casa móvel com os filhos, em um local afastado de seu novo emprego, em uma granja e, especialmente, do hospital. Isso porque o caçula, David, tem uma doença cardíaca e, segundo o que ela ouviu dos médicos na Califórnia, seu coração pode parar a qualquer momento.
O casal entra em conflito, o que aborrece os pequenos. Para agravar esse quadro de tensão, outra personagem é inserida na trama: a mãe da mãe das crianças, que chega da Coreia do Sul, com hábitos curiosos e por quem David, inicialmente, mostra uma sincera antipatia. “Ela não parece uma avó de verdade”, repete ele constantemente. Segundo o garoto, uma avó deveria saber fazer biscoitos, não deveria praguejar e nem usar roupas íntimas masculinas. Contudo, logo a antipatia se converte em curiosidade e, pouco a pouco, David vai estabelecendo uma bonita relação com a sua avó.
Lançado mundialmente no Festival de Sundance de Cinema em janeiro do ano passado, no qual se sagrou vencedor do Grande Prêmio do Júri, o longa traz ao menos um rosto conhecido do grande público, Steven Yeun (o Glenn de The Walking Dead) no elenco e na produção executiva, além do adorável ator-mirim Alan S. Kim (ganhador do prêmio de melhor ator Jovem no Critics’ Choice Awards) que forma uma deliciosamente improvável dupla com a magnânima Youn Yuh-jung (vencedora do SAG Awards de melhor atriz coadjuvante) – dois atores de faixas etárias diametralmente opostas que mostram uma inegável sintonia na tela. E é essa interação entre o afinado, grandioso e merecidamente premiado elenco que constitui a força-motriz do longa.
Ainda que pareça tentador explorar cenários tão magníficos, o diretor de fotografia, Lachlan Milne, não se rende à perfumaria, planos reverentes e eloquência na construção de imagens. Apostando em uma câmera discreta e elegante e na composição de quadros singelos que garantem naturalidade à trama, Minari apresenta paisagens luminosas, cores saturadas e vibrantes que trazem uma sensação de acalento, calidez e refúgio. Lee Isaac Chung ainda deixa seus atores à vontade em cena, extraindo boas e honestas atuações de todos eles. O realizador se preocupa em capturar a vida acontecendo na tela, filmando com extrema simplicidade. Para completar, a trilha sonora confere tanto tensão quanto melancolia a momentos bem pontuados, corroborando um clima acertadamente trágico em algumas das cenas essenciais.
Até mesmo a mensagem que Minari transmite é de uma simplicidade comovente, mas que não permite que o filme enverede pelo sentimentalismo barato. Tudo o mais pode se dissipar: os sonhos, as conquistas, a própria família, porém, o afeto e os laços perduram. Ainda que seja um momento difícil, os obstáculos enfrentados nos fortalecem. E Minari consegue nos dizer isso de modo objetivo, direto, simples, mas sem lançar mão de recursos manjados, padrões narrativos e atalhos dramáticos.
Quase todo falado em coreano e com pontuais linhas de diálogo em inglês, o filme de Lee Isaac Chung talvez seja o mais americano dos longas a chegar às telas nos últimos anos, expressando bem a aventura pelo tal sonho americano e o apresentando como um sofismo. No fim, o que resta é mesmo o sentimento que, por sua vez, não tem restrições territoriais. É universal.
>> Minari concorre no dia 25 de abril ao Oscar 2021 em seis categorias: filme, diretor, ator, atriz coadjuvante, roteiro original e trilha sonora