Movies

Wes Anderson

Netflix libera de uma só vez quatro curtas-metragens do icônico diretor e roteirista, todos inspirados em contos de Roald Dahl

A Incrível História de Henry Sugar

Texto por Tais Zago

Fotos: Netflix/Divulgação

Anderson ataca outra vez e agora em todos os fronts. Quatro curtas foram liberados ao mesmo tempo no canal de streaming Netflix, há alguns dias. O projeto, que supostamente chegara a 1 bilhão de dólares, é uma jogada ambiciosa da parceria entre a plataforma e o cineasta. Compõem a tetralogia de produção anglo-americana Veneno(Poison, 17 minutos), O Cisne (The Swan, 17 minutos), O Caçador de Ratos (The Ratcatcher, 17 minutos) e A Incrível História de Henry Sugar (The Wonderful Story of Henry Sugar, 39 minutos)

Nestes quatro curta-metragens inspirados na obra de Roald Dahl (que já inspirou Wes em outros projetos como O Fantástico Sr. Raposo, de 2009, e escreveu o livro que deu origem ao cultuado filme A Fantástica Fábrica de Chocolate), Anderson adapta e dirige com mão leve um roteiro teatral. Como vimos em Asteroid City, seu ultimo longa, lançado em agosto nos cinemas brasileiros (leia aqui a resenha do Mondo Bacana), Wes mergulhou fundo na dramaturgia e na representação teatral do seu próprio roteiro. Quebra constantemente a quarta parede e vai além dos limites até então conhecidos da metalinguagem. Temos uma história dentro de uma história e , às vezes, com outra história por trás. Uma matrioska technicolor, uma trama elaborada com palavras e cenários meticulosamente trabalhados, que trazem nos narradores, praticamente, uma leitura do roteiro acompanhando a ação.

O Caçador de Ratos

Wes é mundialmente famoso pelo seu estilo único de fazer cinema usando cenários minuciosos com um detalhismo que satisfaz até aos olhares mais exigentes. A riqueza dos detalhes, a simetria da fotografia, a perfeição da maquiagem e do figurino. Nunca vemos um único fio de cabelo (pelo menos não intencionalmente) fora do lugar. 

Agora Anderson traz para as telas e encena com atores histórias que funcionariam tanto no palco quanto em forma de stop-motion. Nenhum artifício de representação estética é deixado de lado – animação, CGIs, cenários elaborados feitos manualmente, filtros vintage e tons pastel. A beleza esmaecida da idiossincrasia de seus personagens se repete, mas nunca cansa o olhar. O comportamento extra-humano, robótico, típico de nerds, é o centro e o tom das interpretações no hiperdescritivo texto elaborado pelo diretor-roteirista. O comportamento pitoresco e fora do lugar-comum de seus personagens é perfeitamente alinhado a esses textos e aos figurinos. O homem comum em situações aparentemente mundanas abre a porta para o fantástico e o lúdico.

Nos quatro contos vemos personagens aparentemente comuns se envolvendo em situações pouco convencionais com desfechos fantásticos. A digital de Anderson está em cada olhar, na postura corporal dos atores, mas descrições e nas expressões faciais. Ao fim de cada um dos curtas, o cineasta presta uma homenagem a Roald Dahl em um pequeno parágrafo contando brevemente o contexto da criação de cada um dos contos do autor.

Veneno

O elenco não poderia ser mais estelar. Tem Ralph Fiennes (que entre outros papéis interpreta o próprio Dahl em todos os curtas), Benedict Cumberbatch, Rupert Friend, Dev Patel, Ben Kingsley e Richard Ayoade. Os atores se revezam em diferentes papéis nos quatro curtas. Todos executados primorosa e intensamente, em especial Cumberbatch e Kinsgley em Veneno e Henry Sugar.

Em seu estilo único e inconfundível, Wes Anderson cumpre de novo a tarefa de nos apresentar contos (não tão) modernos, sobre personalidades triviais que realizam feitos fantásticos. Existe a possibilidade de uma análise profunda, assim como a leveza de um humor quase inocente, o que faz dos filmes dele um deleite para todas as idades – um feito raro nos dias atuais. A tetralogia de curtas é essencial para os fãs e também uma agradável descoberta para os novatos que recém adentraram o mundo maravilhoso de Anderson.

O Cisne

Movies

Aftersun

Cineasta estreia com um dilacerante drama sobre amadurecimento e a relação da filha de 11 anos com o pai emocionalmente abalado

Textos por Leonardo Andreiko e Janaina Monteiro

Fotos: 02 Play/Mubi/Divulgação

Há filmes que desde o início prendem nossa atenção. Anunciam sua chegada e, com presença de espírito, nos catapultam para dentro de si e ocupam nossas mentes até o final. Não raro eles também sabem encerrar sua estadia, seja por meio de uma conclusão narrativa ou deixando-nos abertos à incerteza. Na vida, contudo, o fim de uma história raramente é anunciado. Nosso último encontro com alguém não vem acompanhado do letreiro onde vem escrito “fim”. Aftersun (Reino Unido/EUA, 2022 – O2 Play/Mubi), queridinho da crítica mundial e arrebatador de premiações deste ano (incluindo o Troféu Bandeira Paulista, para novos diretores na Mostra de São Paulo), consegue o feito de fazer os dois.

O longa-metragem, primeiro da diretora escocesa Charlotte Wells, retrata uma viagem de Calum (Paul Mescal) e Sophie (Frankie Corio), sua filha de 11 anos, para um resort no Mediterrâneo. Em meio às atividades de férias, mergulhos e jantares, acompanhamos o amadurecimento do olhar de Sophie sobre o mundo, a conflituosa relação de Calum consigo mesmo e o movimento de aproximação–distanciamento de pai e filha.

Wells tece um delicado véu que unifica os muitos percursos temáticos que Aftersun explora, de modo que consegue abordar questões socioeconômicas, melancólicas, psicológicas e até mesmo de coming of age mantendo um filme coeso e direcionado. É sob a decupagem simples (mas não minimalista) de suas cenas que a diretora projeta os diferentes estados de espírito que permeiam sua obra. É simples pela movimentação desperturbada: o interesse nos planos longos e nos detalhes em cena. O fora-de-campo cumpre uma função essencialmente especulativa (por imaginarmos o que se passa para além das câmeras), mas também de tensão – as elipses, omissões simbólicas e a subexposição esmagadora do mar à noite são aspectos constitutivos da forma da obra. Não somente floreiam o que se passa como discursam sobre ele, o expandem.

O resultado, primoroso de certo, é um filme que carrega consigo a complexidade de duas vidas, e não somente a superficialidade de uma trama, uma mera premissa. Enquanto Sophie descobre relações, modos de interação e o romance que permeia a vida, a operação emocional de Calum é praticamente oposta. A pré-adolescente se encontra num movimento de afastamento da magia do jogo, do karaokê e da infância, partindo ao mundo dos interesses românticos e das nuances adolescentes, que faz florescer seu próprio desejo ao mesmo tempo que descobre e se interessa pelo desejo do outro. Seu mundo é o hotel, suas piscinas e o fliperama. Em paralelo, seu pai não consegue desvencilhar-se do próprio passado, das próprias aspirações e da opressão do mundo à volta. Seu desejo é sempre presente, mas reprimido – fuma escondido de sua filha, projeta saídas de problemas materiais para além da viagem, preocupa-se com o dinheiro e rememora o passado sem noção certa do futuro.

Das muitas sequências memoráveis, vejo aquela em que Calum almeja o tapete sem poder comprá-lo como uma das mais potentes. Em um quadro repleto de tapetes, empilhados sobre os demais numa espécie de sótão/estoque, irrompem Calum, Sophie, o vendedor e um tapete estendido ao chão, no qual o protagonista finca o olhar. Não é o desejo pelo artefato que o interessa, mas a capacidade de carregar consigo as histórias daqueles que o teceram.

Em um jogo de cena entre esse plano conjunto e um tocante close-up de Paul Mescal (que desde Normal People, série que projetou o astro às telas mundiais, é uma marca de sua carreira), o delicado olhar da direção faz o papel de nos impor a realidade emotiva que vive o protagonista. Em crise por não ver no tempo presente cumpridos seus sonhos de criança e muito menos os próximos passos na vida adulta, Calum se deita num de muitos tapetes e respira – busca sentir a história, mas não é capaz de tê-la.

Pincelando sua narrativa com o recurso da filmagem caseira que marcou o final dos anos 1990 e o começo do novo milênio, Wells opera uma exploração vívida da psique de suas personagens e o poder cristalizador da matéria-prima do cinema: o vídeo. São muitas as instâncias em que as brincadeiras de Frankie segurando a câmera, bem como os registros mais aterrados e “documentais” de Calum, são monumentos da memória, revelando ao espectador um passado muito latente e carregado de afetos. Não à toa, em dado momento, a espectadora é a própria Frankie, já adulta, que ao assistir as filmagens rememora e reinterpreta sua história e relação com o próprio pai.

Aftersun é, sem dúvidas, um dos lançamentos mais potentes deste ano, um sopro de ar fresco sobre o claustrofóbico e agonizante cenário das franquias intermináveis e lançamentos decepcionantes. Esse é um filme que emociona ao ser assistido, mas também é um dos raros que emocionam ao escrever sobre. Charlotte Wells, ao trabalhar a partir de sua própria memória, parece recuperar uma constatação óbvia, mas não menos potente: não há letreiro de “fim” para anunciar o último encontro. E é isso que os torna especiais. (LA)

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Gatilhos mentais podem ser acionados de várias maneiras, fazendo revisitar memórias guardadas nas mais profundas gavetas e que trazem à tona calafrios e sensações nada agradáveis. Tem gente, por exemplo, que associa assistir a vídeos caseiros a uma certa melancolia. Talvez porque saiba que quando alguém querido, da família, se for, essa é uma das formas de se perpetuar as lembranças, sejam elas alegres ou não. 

Por isso, assim que a personagem Sophie (a estreante Frankie Corio) aperta o play no registro de suas férias na Turquia com o pai Callum (Paul Mescal) só tive uma certeza: a de que seria engolida por uma imensa onda gigante de nostalgia, chamada Aftersun (Reino Unido/EUA, 2022 – O2 Play/Mubi).

Quando este primeiro longa-metragem da escocesa Charlotte Wells terminou, fiquei atônita por alguns momentos na frente da tela. E mesmo que eu tentasse me desvencilhar de tudo aquilo que havia assistido nos últimos cem minutos não conseguia recuperar o fôlego de jeito nenhum. Não conseguia me soltar daqueles fragmentos de uma história avassaladora. 

Charlotte me deixou completamente hipnotizada pela narrativa desenhada de forma melancolicamente deslumbrante para mostrar o período em que um pai separado, de 30 e poucos anos, e sua filha pré-adolescente de 11 passam juntos.

Do início ao fim, a diretora nos proporciona um mergulho na relação entre os dois, mostrando a paternidade por um viés diferente daquele que costumamos ver no cinema. Podemos lembrar de vários longas, por exemplo, como o delicado O Mundo de Jack e Rose, protagonizado por Daniel Day-Lewis, mas dificilmente algum título supere Aftersun no quesito profundidade.

Em entrevistas à imprensa estrangeira, Charlotte revelou que concebeu o filme a partir do momento em que se deparou com álbuns de fotografias antigas da família. Portanto, existe muito de autobiográfico no roteiro assinado por ela. 

Ao passo que o espectador é apresentado aos protagonistas, é possível perceber também que Charlotte busca uma certa inspiração na sua compatriota Lynne Ramsay, também conhecida por dirigir filmes complexos sobre as fraquezas humanas de uma outra perspectiva, como fez com o também avassalador Precisamos Falar Sobre Kevin

Aftersun é muito mais que uma história sobre a conexão entre pai e filha. É sobre o vazio, o desespero. Sobre ter de sorrir e zelar pela vida de outra pessoa enquanto se está dilacerado por dentro. Para traduzir essa relação delicada de afeto e dar pistas do estado mental de Calum, Charlotte nos brinda com muito plano detalhe, como na cena em que mãos de pai e filha se unem, e movimentos de câmera sutis, quando enquadra os livros de meditação dispostos em cima de uma estante.

Em início de carreira, Paul Mescal (o galã de Normal People) se mostra gigante quando de costas consegue representar com seu choro desesperador toda a agonia da personagem. Frankie Corio é a personificação de toda pré-adolescente, que faz suas descobertas e não tem papas na língua ao falar as verdades para o pai. 

Para contextualizar a época, a cineasta recorre a objetos e outros artifícios: a filmadora de Sophie, o walkman de Callum, as canções que marcaram a época, como “Tender”, da banda de britpop Blur. Assim, pouco a pouco, vamos nos guiando por fragmentos dessa viagem registrada pelos olhos de Sophie. E nos dando conta do sofrimento de seu pai e a luta dele para sobreviver. Seja quando ele diz para a ex-mulher, numa cabine telefônica, que ainda a ama (“Por que você disse eu te amo pra mamãe?”, pergunta Sophie logo em seguida). Seja na cena do karaokê em que a filha, ao contrário de todas as outras vezes, canta sozinha. E uma das cenas mais arrebatadoras do filme é, sem dúvida, a “última dança” de Callum ao som de “Under Pressure”.

Depois de Aftersun, será difícil ouvir a canção de David Bowie com o Queen sem se lembrar dessa estreia arrebatadora de Charlotte Wells. (JM)

Movies

Garoto dos Céus

Representante sueco ao Oscar deste ano traz forte disputa de poder dentro de uma das mais prestigiosas universidades do Egito

Texto por Carolina Genez

Foto: Pandora Filmes/Dilvugação

Adam (Tawfeek Barhom), filho de pescador, recebe uma bolsa de estudos para uma das mais prestigiosas universidades da cidade do Cairo, Al-Azhar, o epicentro do poder do islamismo sunita. Porém, ainda com pouco tempo dentro da instituição de ensino, o Grande Imã – a maior autoridade religiosa no Egito – acaba falecendo. Assim começa a disputa de quem irá ocupar o cargo, à qual Adam acaba sendo levado.

Segundo o diretor e roteirista Tarik Saleh, que nasceu na Suécia e tem raízes paternas egípcias, a ideia para Garoto dos Céus (Walad Min Al Janna, Suécia/França/Finlândia/Dinamarca, 2022 – Pandora Filmes) nasceu quando ele releu o livro O Nome da Rosa, de Umberto Eco, e começou a pensar sobre como seria essa história em um contexto mulçumano. Apesar de ter pensado no filme sobre a obra de Eco, as histórias são bem diferentes.

A trama envolve justamente por conseguir trazer uma história recheada de suspense e mistério – o longa inclusive foi um dos destaques da premiação de Cannes de 2022 onde acabou levando a estatueta de melhor roteiro. Além disso, a obra consegue trazer bastante da cultura árabe para o espectador, como as tradições, regras, política, religião e o cotidiano da universidade. A relação entre a política e religião, inclusive, é mostrada de maneira explícita, evidenciando não só sua importância dentro da universidade, mas no país como um todo, impactando todas as vidas, até daqueles que nem tinham tanta conexão assim, como o próprio protagonista. Saleh  ainda consegue ser mais abrangente e tocar em assuntos como o extremismo, a manipulação, a fé e o próprio destino.

Apesar de possuir todos esses detalhes, muito pode acabar se passando despercebido aos brasileiros, não só por falta de contextualização sobre aquela cultura e conhecimento do público, mas também pelo grande número de informações disparadas em duas horas de duração (o que provoca confusão em diversos momentos). A narrativa é interessante, mas pela falta de tempo para a quantidade de informações, boa parte acaba pouco desenvolvida e aproveitada. Mesmo com este percalço, entretanto, o filme consegue se sustentar e entregar uma história com diversas reviravoltas.

Um fator que auxilia muito na conexão do brasileiro com o longa é a sua ambientação, já que o filme se passa em um contexto atual. Além disso, a obra transporta quem está no cinema para dentro da realidade dos personagens, onde paredes têm ouvidos e o perigo é sempre iminente. Por conta da sensação de alerta, Garoto dos Céus também consegue imprimir ótimo ritmo, deixando o espectador na ponta da cadeira e se preparando para o que pode acontecer. 

No decorrer do filme, acompanhamos a visão de Adam, descobrindo tudo juntamente com o personagem. Ele não só é arrastado para dentro do jogo de poder, como também passa por um período de amadurecimento e crescimento. Na primeira metade, o jovem tem pouco desenvolvimento e falta de personalidade. Na segunda, porém, Adam muda e estabelece conexões com o espectador.

Garoto dos Céus é o representante sueco para uma vaga para o Oscar de filme internacional (o longa ficou entre os finalistas para as cinco indicações, que saem no próimo dia 24). Envolta em um mistério muito interessante, a história vale a pena ser assistido pela narrativa envolvente e também por conseguir trazer muito sobre a cultura árabe. Mesmo que de forma atropelada.

Movies

Hamlet

Projeto documental acompanha uma das lideranças das ocupações realizadas por estudantes gaúchos durante o ano de 2016

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Galo de Briga Fimes/Divulgação

Em 2016, centenas de escolas de ensino médio foram ocupadas ao redor do Brasil. Nossa modesta Primavera Árabe, aquela chamada Primavera Secundarista, inseriu-se no contexto arisco da defesa da presidente Dilma Rousseff contra o golpe que sofria por parte do Congresso Nacional, de Michel Temer e demais setores dos três poderes – “Com o Supremo, com tudo”, como imortalizou Romero Jucá.

Nesse contexto, mas também reivindicando mais atenção às políticas públicas de educação, o Brasil foi tomado pelo breve protagonismo da juventude. Se o corajoso movimento não rendeu muitos frutos, afinal a democracia atual se encontra sob ataques muito mais graves que o neoliberalismo do governo Temer, ainda nos propicia uma série de reflexões.

Observando de perto a movimentação das ocupações gaúchas, Hamlet (Brasil, 2022 – Galo de Briga Filmes) é um projeto documental que acompanha Fredericco Restori, uma das lideranças dos ocupantes de uma grande escola de Porto Alegre. A narrativa dispersa é muito mais uma coleção de momentos – plenárias, assembleias, reuniões entre ocupantes, palestras e até a hora do videogame – que uma representação ampla e didática do período da ocupação.

Num primeiro momento, a câmera errática dirigida por Zeca Brito parece incerta do que quer filmar. O registro histórico se inicia numa grande plenária, em que já desponta a presença de Fredericco. Embora este seja nosso protagonista desde a primeira cena do longa-metragem, Brito parece muito mais interessado na coletividade dos ocupantes do colégio, um conjunto de sem nomes que insiste na “horizontalidade democrática”, por assim dizer, e nunca é gravada só. 

O foco constantemente desregulado, a princípio, parece sintoma de uma operação de câmera ansiosa em capturar a essencialidade do momento, mas logo se denuncia em seu exagero: ao compor as sequências cotidianas da ocupação, assim como suas seções mais dialógicas, Zeca Brito escancara seu próprio processo de formalização, ainda que busque escondê-lo sob um fino véu de naturalismo. Partimos do “parece ser” para o “quer parecer ser”, um movimento que não é ruim em si mesmo, mas interessante por nos lembrar que documentário não é realidade – é cinema.

Num segundo momento, esteticamente mais interessante, Hamlet assume seu discurso mais narrativo que repórter, utilizando ligações telefônicas de Fredericco como meio para a exposição de seu conflito interno, que também é refletido em sequências subjetivas. A bem da verdade, esse estatuto da obra sempre esteve presente, já que o filme se inicia, antes do registro histórico das ocupações, com uma conversa entre Fredericco e um homem mais velho tecendo comparações entre sua condição de liderança e a dúvida central de Hamlet: “ser ou não ser, eis a questão”.

Se o filme não esconde a condição de líder que caracteriza Fredericco, sua ideologia juvenil, a princípio, recusa-se a aceitá-la. Ao longo de Hamlet, sua posição vai de “precisamos manter a horizontalidade para não tornar este um movimento fascista” para “eu queria ser líder, e era líder, mas não tinha coragem de admitir”. A ingenuidade da mobilização secundarista permeia todos os acontecimentos do filme – desde a rusga desmobilizada com entidades de base da categoria, como a UBES e a UNE, até a escuta atenta aos ensinamentos do grande crítico e cineasta brasileiro Jean-Claude Bernadet sobre a conjuntura política. 

Justamente por essa inerente ingenuidade, alguns dos momentos aqui retratados conferem ao filme um curioso frescor: um “vai chorar” que vaza na captação sonora durante um protesto; o canto “Bololo ha ha, quero ver desocupar”, eco da relação entre política e cultura que é muito única a cada geração que a vive; a incessante descoordenação da massa durante momentos de tensão, em que o silêncio é um episódio raro que, quando acontece, é muito efêmero.

Contudo, se esses momentos evocam no espectador não mais que a curiosidade e, quando muito, um sorriso de canto de boca, igualmente não se sente o peso que se propõe em Fredericco. A deslocada comparação com Hamlet, que pretende dar tom ao filme, só se dá com clareza na última cena, numa fraca articulação entre o concreto (a ocupação) e o abstrato (as conjecturas posteriores sobre a relação entre vida e arte) que não oferece material suficiente para se realizar. De fato, às vezes a vida imita a arte, assim como a arte imita a vida. Mas nem sempre.

Movies, TV

O Mistério de Marilyn Monroe: Gravações Inéditas

Documentário traz os áudios de minuciosa pesquisa de jornalista que investigou vida e morte da atriz que abalou Hollywood e a política dos EUA

Texto por Carolina Genez

Foto: Netflix/Divulgação

Marilyn Monroe é uma das mais marcantes, senão a mais marcante estrela de Hollywood. Sua morte, que fará 60 anos no próximo dia 4 de agosto, sempre foi cercada de mistérios e dúvidas. Por isso, qualquer coisa que destrinche a trajetória da estrela sempre gera curiosidade no público cinéfilo. Mesmo que venha uma novidade sem muito a acrescentar no quesito ineditismo.

O documentário O Mistério de Marilyn Monroe: Gravações Inéditas (The Mystery Of Marilyn Monroe: The Unheard Tapes, EUA, 2022 – Netflix) é baseado no trabalho do jornalista Anthony Summers que, durante a década de 1980, época em que o caso de Marilyn foi aberto, resolveu investigar minuciosamente a vida da atriz, entrevistando pessoas que de certa forma cruzaram a vida dela.  O trabalho de Summers durou mais de três anos por causa da grande dificuldade de obter informações junto às fontes consultadas. Por conta disso, Summers optou por traçar neste audiovisual uma linha do tempo da vida da atriz desde 1940 até sua morte em 1962.

A primeira metade do documentário acompanha o início da carreira da atriz e acima de tudo reforça a dedicação e a paixão que Norma Jeane Mortenson (seu nome verdadeiro) tinha pelo cinema – o que é evidenciado tanto nas entrevistas com amigos e outros atores e diretores de Hollywood, quanto em relatos da própria atriz. Durante a produção, são mostrados clipes de Marilyn que não só glorificam a velha Hollywood, como também comprovam seu talento em cena e mostram como sua presença era magnética.

Através das entrevistas, liberadas pela primeira vez pelo autor, o público é convidado a conhecer mais sobre afigura Marilyn Monroe, principalmente sobre sua personalidade e vida fora das câmeras. Ela era corajosa, dedicada e talentosa; estas são algumas das impressões passadas através dos relatos. As entrevistas também são ilustradas de maneira muito interessante ao utilizar de atores para dublar as gravações originais, o que deixa o documentário mais dinâmico. Além disso, diversos clipes de filmes e fotografias da atriz que apenas confirmam aquilo que já é sabido por todos: Marilyn era uma mulher única e insubstituível. A direção de fotografia ainda foca num sentimento de melancolia, solidão e tristeza, com diversos vídeos em preto e branco trazendo alguma citação da atriz, modelo e cantora ao fundo. 

O documentário também evidencia a masculinidade tóxica de Hollywood e da mídia jornalística. Essa invasão de privacidade da mídia foi muito vista até recentemente, com o trabalho paparazzi que constantemente invadia os espaços dos artistas para conseguir um furo por meio de fotos a serem publicadas. 

O longa ainda cobre a infância de Marilyn de maneira breve e fazendo suposições de como seu passado teria afetado seu futuro, principalmente os seus relacionamentos amorosos, ao mostrar que mesmo com o extremo sucesso algumas feridas jamais seriam curadas. Um dos focos é a visão trazida a respeito dos casamentos da Monroe com o atleta Joe DiMaggio e com o dramaturgo Arthur Miller. Através de pessoas próximas de Marilyn durante ambos os relacionamentos, Summers relata o que se escondia nos bastidores dessas uniões.

Já a segunda metade da obra traça teorias em relação à morte da atriz e explora sua polêmica relação com os irmãos Robert e John Kennedy, expondo o contexto político e histórico da época e a ligação de Marilyn com todas essas questões. O caso de Monroe com os dois Kennedy compõe a mais conturbada passagem de sua vida, quando a atriz passou a ingerir diversos medicamentos. O longa vai além: apresenta arquivos paranoicos do FBI a respeito de Monroe ter ligações com pessoas tachadas como comunistas e joga a sugestão de que a morte dela poderia ter sido provocada para uma possível queima de arquivo, já que ela sabia muito sobre os fatores políticos do país devido suas conversas com Robert e John, que naquele momento eram respectivamente procurador-geral e presidente dos Estados Unidos (Nota do Editor: algo como a dobradinha conchavista brasileira formada por Jair Bolsonaro e Augusto Aras.)

O Mistério de Marilyn Monroe, porém, falha ao não trazer qualquer nova conclusão sobre a misteriosa morte da atriz. O título da obra leva o público a crer que a misteriosa morte será enfim solucionada no final. Porém, o longa com as pesquisas de Summers se preocupa mais em reconstruir os dias que antecedem a morte naquele verão de 1962, mostrando o estado mental em que a atriz se encontrava e trazendo um retrato humanizado da grande estrela do cinema. O jornalista realiza uma pesquisa completa sobre as últimas horas vividas por Marilyn, evidenciando as diversas controvérsias dos acontecimentos. Ainda assim, o próprio jornalista explica que mesmo com aquelas descobertas registradas nas fitas nada o convencera de que a morte de Marilyn, aos 36 anos de idade, não teria sido um suicídio ou uma overdose acidental de barbitúricos (a resposta correta ninguém saberá porque nenhuma carta de despedida foi deixada!).

Apesar de decepcionar aquela grande expectativa de trazer à tona alguma novidade para a morte de Marilyn, O Mistério de Marilyn Monroe: Gravações Inéditas é uma produção muito interessante e instigante, que de fato traz uma leitura muito detalhada da vida do ícone hollywoodiano. A obra acerta em cheio ao retratar a vida da atriz trazendo emoção e aproximando o espectador das diversas camadas desta magnífica bombshell.