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As Tartarugas Ninja: Caos Mutante

Nova animação dos quatro adolescentes cascudos que fizeram muito sucesso nos anos 1990 faz crise no cinema terminar em pizza

Texto por Janaina Monteiro

Foto: Paramount/Divulgação

“Acabou em pizza” é uma expressão genuinamente brasileira. Ela vem do futebol, uma paixão nacional. Lá nos idos anos 1960, o jornalista esportivo Milton Peruzzi era setorista do Palmeiras, o time mais italiano do país, e cobria uma grave crise no time para a Gazeta Esportiva. A reunião durou horas e, para controlar o caos e a fome dos cartolas, foram pedidas dezoito pizzas gigantes. No dia seguinte, a manchete era esta: “Crise do Palmeiras termina em pizza”.  

Meu filho Marco tem nome italiano, de guerreiro. Não torce pelo Palmeiras, só come pizza de chocolate, e relutou em assistir à pré-estreia de As Tartarugas Ninja: o Caos Mutante (Teenage Mutant Ninja Turtles: Mutant Mayhem, EUA/Japão/Canadá, 2023 – Paramount). Quando chegamos ao cinema, foi um pequeno caos.

– Mamãe, quero ir embora!

– Mas, mas, mas Marco… Esse filme vai ser muito massa! Vai ter cena de cocô, etc, etc

Sim, apelei para a tática ninja escatológica – que as crianças tanto amam e se partem de rir – para contornar aquele pequeno caos. 

Aqui, preciso fazer um adendo. Marco adora ir ao cinema. Inclusive, amou o Super Mario Bros. Tanto é que ficou impressionado como o final chegou tão rápido. 

– Mamãe, já passou uma hora de filme? 

– Já, Marco!

– “Mas já?

Marco queria mais de Super Mario, mas Tartarugas Ninja… niente! Depois que o pequeno piti foi controlado à moda francesa, com muita elegância, Marco subiu, relutante, até uma das últimas fileiras do cinema. E começou o filme.

Caos Mutante é o mais novo longa da franquia adquirida pela Nickelodeon em 2009 e que fez muito sucesso no Brasil nos anos 1990 (meu irmão era fãzaço!). As personagens foram criadas originalmente para os quadrinhos, na década de 1980, pelos norte-americanos Kevin Eastman e Peter Laird. 

Nesse novo capítulo da saga somos apresentados à versão adolescente das tartarugas, batizadas com nomes de artistas renascentistas italianos: Leonardo (dublado por Nicolas Cantu), Raphael (Brady Noon), Michelangelo (Shamon Brown Jr.) e Donatello (Micah Abbey). Detalhe que, para quem não conhece direito a turma, como o Marco, os nomes das personagens só são citados lá na metade do filme. 

O início mostra como os quatro irmãos se transformaram em animais antropomórficos ao serem expostos a uma substância radiativa. Um rato chamado de Mestre Splinter (que só podia ser dublado por Jackie Chan) – que também fora vítima da mutação – cria os animais no subterrâneo de Nova York, para evitar o contato com os humanos. A cidade, aliás, é infestada por ratos na vida real. Tanto é que o prefeito chegou a criar o cargo de “diretor de mitigação de roedores” – é a vida imitando a arte.

Splinter é mais que um pai. Mestre em kung fu, ele se torna um verdadeiro mentor e passa a ensinar ninjutsu a seus filhos verdinhos, que só saem de casa à noite para comprar as “porcarias gostosas” que todo adolescente gosta. Já, logo de cara, a animação se torna deliciosa.  Como um molho caseiro temperado com manjericão, dá indícios que nos próximos minutos será bem-sucedida ao dar frescor juvenil a esse sétimo filme sobre os répteis.

Bem ao estilo dos anos 1990, quando o mundo era menos chato, esse filme não esconde nenhum merchan. Tá tudo lá: a marca do refri, a da batata frita etc, etc.  Aliás, essa é a grande diversão para aquele público que era criança (ou adolescente como eu) naquela época: provocar essa sensação nostálgica, seja na técnica da animação ou nos elementos anacrônicos. 

Mais artesanal, com imperfeições, essa animação é bem diferente dos longas anteriores, em live action, computação gráfica ou o traço chapado da TV. O resultado lembra aqueles desenhos supercoloridos feitos com giz de cera, com a intenção de refletir o ambiente rebelde das tartarugas no cenário urbano da cultura nova-iorquina com seus skates e grafites, como explicou à imprensa Jeff Rowe. O diretor também consegue, com proeza, mesclar a estética noventista com a atualidade. Isso pode ser percebido no uso de diferentes gadgets pelas personagens. 

A trilha sonora é uma personagem à parte. Assinada pela dupla dinâmica Trent Reznor e Atticus Ross (leia-se Nine Inch Nails), as músicas originais dão ritmo certo à narrativa. Quando “What´s Up” (hit do 4 Non-Blondes) surge, então na versão famosa e depois mais acelerado, a viagem no tempo é garantida. 

Como toda clássica jornada do herói, ao lado do Homem-Aranha e do Batman, as tartarugas se consolidam como os defensores de NYC. Com o treinamento que recebem do ratão pai, eles se sentem confiantes primeiro para se defender dos humanos. Sim, no início, nós também somos os vilões da história, no sentido de não estarmos abertos ao novo. Afinal, se um alienígena verde surgisse na sua casa, você o atacaria ou serviria uma xícara de café?  

A confiança nos seres humanos aumenta quando conhecem uma aspirante a jornalista (e que protagoniza a tal cena de humor escatológico que o Marco curtiu à beça). A jovem está à caça de um furo e consegue uma notícia bombástica quando as tartarugas são obrigadas a proteger a população contra as ameaças do Clã do Pé, que é comandado pelo vilão Superfly (Ice Cube). Os arquiinimigos também são mutantes e querem dominar a cidade. No final, ocorre a grande luta. 

Quando o filme acabou, Marco estava com um sorriso no rosto. Por dias ele se lembrou da barata e do cocô.

– Mamãe, tem cenas pós-créditos! Então vai ter mais um!

Sim! Cowabunga! 

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Hamlet

Projeto documental acompanha uma das lideranças das ocupações realizadas por estudantes gaúchos durante o ano de 2016

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Galo de Briga Fimes/Divulgação

Em 2016, centenas de escolas de ensino médio foram ocupadas ao redor do Brasil. Nossa modesta Primavera Árabe, aquela chamada Primavera Secundarista, inseriu-se no contexto arisco da defesa da presidente Dilma Rousseff contra o golpe que sofria por parte do Congresso Nacional, de Michel Temer e demais setores dos três poderes – “Com o Supremo, com tudo”, como imortalizou Romero Jucá.

Nesse contexto, mas também reivindicando mais atenção às políticas públicas de educação, o Brasil foi tomado pelo breve protagonismo da juventude. Se o corajoso movimento não rendeu muitos frutos, afinal a democracia atual se encontra sob ataques muito mais graves que o neoliberalismo do governo Temer, ainda nos propicia uma série de reflexões.

Observando de perto a movimentação das ocupações gaúchas, Hamlet (Brasil, 2022 – Galo de Briga Filmes) é um projeto documental que acompanha Fredericco Restori, uma das lideranças dos ocupantes de uma grande escola de Porto Alegre. A narrativa dispersa é muito mais uma coleção de momentos – plenárias, assembleias, reuniões entre ocupantes, palestras e até a hora do videogame – que uma representação ampla e didática do período da ocupação.

Num primeiro momento, a câmera errática dirigida por Zeca Brito parece incerta do que quer filmar. O registro histórico se inicia numa grande plenária, em que já desponta a presença de Fredericco. Embora este seja nosso protagonista desde a primeira cena do longa-metragem, Brito parece muito mais interessado na coletividade dos ocupantes do colégio, um conjunto de sem nomes que insiste na “horizontalidade democrática”, por assim dizer, e nunca é gravada só. 

O foco constantemente desregulado, a princípio, parece sintoma de uma operação de câmera ansiosa em capturar a essencialidade do momento, mas logo se denuncia em seu exagero: ao compor as sequências cotidianas da ocupação, assim como suas seções mais dialógicas, Zeca Brito escancara seu próprio processo de formalização, ainda que busque escondê-lo sob um fino véu de naturalismo. Partimos do “parece ser” para o “quer parecer ser”, um movimento que não é ruim em si mesmo, mas interessante por nos lembrar que documentário não é realidade – é cinema.

Num segundo momento, esteticamente mais interessante, Hamlet assume seu discurso mais narrativo que repórter, utilizando ligações telefônicas de Fredericco como meio para a exposição de seu conflito interno, que também é refletido em sequências subjetivas. A bem da verdade, esse estatuto da obra sempre esteve presente, já que o filme se inicia, antes do registro histórico das ocupações, com uma conversa entre Fredericco e um homem mais velho tecendo comparações entre sua condição de liderança e a dúvida central de Hamlet: “ser ou não ser, eis a questão”.

Se o filme não esconde a condição de líder que caracteriza Fredericco, sua ideologia juvenil, a princípio, recusa-se a aceitá-la. Ao longo de Hamlet, sua posição vai de “precisamos manter a horizontalidade para não tornar este um movimento fascista” para “eu queria ser líder, e era líder, mas não tinha coragem de admitir”. A ingenuidade da mobilização secundarista permeia todos os acontecimentos do filme – desde a rusga desmobilizada com entidades de base da categoria, como a UBES e a UNE, até a escuta atenta aos ensinamentos do grande crítico e cineasta brasileiro Jean-Claude Bernadet sobre a conjuntura política. 

Justamente por essa inerente ingenuidade, alguns dos momentos aqui retratados conferem ao filme um curioso frescor: um “vai chorar” que vaza na captação sonora durante um protesto; o canto “Bololo ha ha, quero ver desocupar”, eco da relação entre política e cultura que é muito única a cada geração que a vive; a incessante descoordenação da massa durante momentos de tensão, em que o silêncio é um episódio raro que, quando acontece, é muito efêmero.

Contudo, se esses momentos evocam no espectador não mais que a curiosidade e, quando muito, um sorriso de canto de boca, igualmente não se sente o peso que se propõe em Fredericco. A deslocada comparação com Hamlet, que pretende dar tom ao filme, só se dá com clareza na última cena, numa fraca articulação entre o concreto (a ocupação) e o abstrato (as conjecturas posteriores sobre a relação entre vida e arte) que não oferece material suficiente para se realizar. De fato, às vezes a vida imita a arte, assim como a arte imita a vida. Mas nem sempre.

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Licorice Pizza

Paul Thomas Anderson faz poesia apaixonada para a sua infância californiana em filme sobre crescer e se apaixonar

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Universal Pictures/Divulgação

Um filme não precisa de trama. Isso não quer dizer que o melhor cinema é a pura experimentação formal, mas que a significação proporcionada pela linguagem fílmica está para muito além dos limites de atos, antagonistas e um roteiro livre de “furos”. Tudo depende, claro, do que se quer expressar em cena. No caso de Licorice Pizza (Canadá/EUA, 2021 – Universal Pictures), a resposta é bem mais pessoal que em alguns dos projetos mais ambiciosos de seu diretor, o aclamado Paul Thomas Anderson.

Anderson (ou simplesmente PTA) escreveu e dirigiu seu nono longa-metragem com um olhar intimista e bastante derivado de sua infância californiana. Não à toa, Licorice Pizza retrata a Califórnia dos anos 1970 impressa nos encontros de dois amigos e um romance almejado: Alana (a cantora e guitarrista Alana Haim) e Gary Valentine (Cooper Hoffman). Enquanto Alana tem pouco mais de 25 anos, Gary é um ambicioso adolescente de meros 15. Contudo, seus comportamentos dão um nó na expectativa que temos de suas personalidades, suposições ancoradas, claro, no choque etário. 

Gary é um jovem ator que toca uma empresa de relações públicas com a mãe e é respeitado por onde vai, tal qual um adulto. Em paralelo, Alana presta minuciosas contas do que faz ao pai e tem constantes rusgas com as irmãs ainda mais velhas, todas sob o mesmo teto, tal qual uma adolescente. O longa de PTA, então, é muito mais que um romance – é uma crônica do envelhecer, um coming of age que opera pelas perspectivas do adolescente “adultizado” e da adulta infantilizada.

Anderson representa esses polos performáticos por meio da amizade que floresce, inicialmente um avanço de Gary para conquistar Alana, e acaba por mostrá-la o novo e excitante mundo do cinema e do business. Ao mesmo tempo que as personagens se aproximam, elas se afastam – afinal, a idade não deixa de impor um empecilho em suas interações. 

Estas, justamente, são o foco do filme, que se distancia do enredo tradicional para aproximar-se do livre jogo de pequenas trocas e conversas entre Alana, Gary e seus amigos no entorno. Se Era Uma Vez Em Holywood, de Tarantino, é uma carta de amor aos anos 1960 e à indústria cinematográfica da época, Paul Thomas Anderson escreve sua poesia apaixonada pela Califórnia de sua infância por entre versos sobre o crescer e o apaixonar-se.

Afinal, a relação com o outro não existe sem o olhar para si, que inevitavelmente traz à tona conflitos pessoais. Não há momento mais propício para esses debates internos que esse limbo entre a adolescência e a vida adulta no qual convivem a infantilização e a exponencial responsabilização. De modos distintos, tanto Gary quanto Alana estão presos nesse jogo, e cada vez que um vai para o lado, o outro reage pulando para o outro.

Os afetos são construídos sem pressa, de modo que cada ato significa mais no campo não verbal e dos simbolismos que na literalidade do texto – uma decisão que PTA evidencia quando, no momento climático do filme, entrecorta entre Alana e Gary correndo em separado com momentos anteriores em que fizeram o mesmo para ajudar um ao outro. 

Esse apreço pelo simbólico, entretanto, não poderia existir senão pela atenção do diretor à técnica do cinema. Em seu segundo longa acumulando as cadeiras de direção e fotografia, o preciosismo do cineasta com lentes, luzes, ângulos e enquadramentos se torna ainda mais central, num movimento bastante claro de sua filmografia. Por meio de seu estilo já conhecido de takes dinâmicos, tracking shots que acompanham as personagens e mise-en-scènes ora requintadas, ora simples e diretas, Anderson traz à vida sua Califórnia que respira e se move no frescor da infantilidade de Alana e Gary. 

Não ao acaso, a trilha sonora escolhida para o filme é a imagem dos anos 1970 em sua face mais animada e pulsante. A faixa que leva o nome do filme, composta por Jonny Greenwood (integrante do Radiohead e já com diversas colaborações com as obras de Anderson), é a representação musical da leve brisa que entremeia Licorice Pizza.

Em uma análise comparativa da trajetória de Anderson, Licorice Pizza talvez não seja o mais “profundo” de seus filmes. Passa longe de ser o mais sério. Mas é, sem dúvidas, um dos melhores, capturando muito do que há de bom espalhado entre Vício InerenteMagnólia e até Trama Fantasma (meu confesso favorito) para, longe de qualquer pretensão moral ou sequer de enredo, presentear o espectador com duas horinhas de um olhar apaixonado pelo processo, como já mencionei antes, de crescer consigo mesmo ao apaixonar-se pelo outro.

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Georgetown

Christoph Waltz acerta em sua estreia na direção ao dar uma demonstração na prática como tornar mentiras convincentes

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Paris Filmes/Divulgação

Filme de estreia de Christoph Waltz na cadeira de diretor de cinema, Georgetown (EUA/Áustria, 2021 – Paris FIlmes) retrata a história de um, se muito, anti-herói – também interpretado por Waltz, ator imortalizado como o personagem Hans Landa, de Bastardos Inglórios, de Quentin Tarantino. Aqui, ele é Ulrich Mott, um diplomata de sua própria ONG financiado – e tutorado – pela esposa Elsa Breht (Vanessa Redgrave). Quando ela, já com seus 91 anos, é encontrada morta em seu apartamento, o também general de brigada do exército iraquiano é considerado o principal suspeito. Começam, então, as investigações sobre o passado de Mott.

O filme é escrito por David Auburn e inspirado livremente em um artigo jornalístico sobre uma história real bem similar a esta. Em seu roteiro, bem como na mise en scène de Waltz, o longa-metragem convida o espectador ao ceticismo a todo momento, ilustrando de maneira muito bem-humorada o conceito de pós-verdade. Somos constantemente apresentados a exageros, narrativas falaciosas e mentiras descaradas, que são a fundação dos feitos de Mott. Nessa teia de dúvidas, Waltz imprime um protagonista muito carismático, que encontra tamanho eco na química com Breht que assistimos suas manobras com entusiasmo e, por vezes, esquecemos sua suspeição.

A arquitetura sutil das mentiras (ou pós-verdades) de Mott é confrontada com igual delicadeza – seus dois “antagonistas”, a enteada Amanda (Annette Bening) e o advogado Volker (Corey Hawkins), tratam-no de maneiras muito distintas, mas nunca recebemos diálogos condescendentes. Quando interagem entre si, prova-se como a figura de Ulrich é capaz de suscitar questionamentos a qualquer um, a todo momento.

Em seu longa de estreia, Waltz não brilha com um formalismo ímpar, quadros e movimentos dinâmicos ou um maneirismo que salta os olhos. Pelo contrário, sua abordagem à mise en scène é, por vezes, convencional, restando à montagem das sequências, construída por Brett M. Reed, o frescor do novo diretor. Ele demonstra cada passo de seu personagem rumo ao sucesso político com foco naquilo que costuma cair nas salas de edição. A elipse criada por sua direção omite, precisamente, nos diálogos mirabolantes e argumentos que Mott usou para receber o dinheiro de George Soros, Robert McNamara e afins. Waltz se interessa em mostrar-nos o nervosismo da cozinha durante um jantar, até mesmo o papo nervoso com a secretária antes de uma reunião.

Georgetown apresenta momentos brilhantes de demonstração prática de como se constroem as mentiras convincentes, especialmente em meio político. Contudo, para uma análise frutífera de sua construção de linguagem, são necessários muitos spoilers, o que torna esse caminho textual inviável aqui. No entanto, à medida que se acostuma com a imprevisibilidade, é possível enxergar padrões narrativos tornando a história previsível. Se no começo Georgetown prende o público com redes bem amarradas de versões (verdadeiras ou não), seu arco é concluído com cartas que já víamos antes de expostas e um ritmo aquém dos minutos iniciais.