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The Flash

Estreia solo de Barry Allen acaba ofuscada pela enxurrada de efeitos especiais e intromissão de mais heróis da DC

Texto por Abonico Smith

Fotos: Warner/Divulgação

“Eu sou o zelador da Liga da Justiça”, diz Barry Allen em determinado momento do início de The Flash (EUA, 2023 – Warner). A reclamação em forma de constatação irônica não é infundada. É bem difícil lutar por um espaço ao sol nas produções cinematográficas de uma casa de super-heróis que mantém em seu panteão de principais figuras Superman, Batman e Mulher-Maravilha. Por isso não deve ser fácil mesmo encarar a resignação de ficar sempre em segundo plano quando o assunto é o holofote da DC para trabalhar seus personagens na sequência de longas-metragens que chegam anualmente às salas de projeção de todo o planeta. Nos quadrinhos era bem mais fácil ganhar projeção e assim o personagem o fez quando foi criado em 1956, durante o início da Era de Prata dos Quadrinhos. Mas quando o assunto vira um blockbuster do cinema, repleto de segredos, altos cachês, incontáveis efeitos de CGI e expectativa de grandes bilheterias, fica sempre mais difícil que a empresa volte seus olhos para nomes de seu elenco de escalões inferiores, a não ser quanto à reserva da cota de seriados de TV e streaming. Com muito dinheiro envolvido não se brinca em Hollywood.

Barry não foi o primeiro personagem a ser chamado de Flash nas páginas impressas com o selo DC Comics na capa. Mas tornou-se o mais conhecido justamente porque chegou quando se apresentava um momento em que a empresa havia decidido dar um reboot em seus heróis e recomeçá-los do zero, trazendo traços e características para o presente. Assim, editoras como a DC e a rival Marvel começaram a se tornar soberanas ao readequar algumas de suas mais conhecidas criações para a juventude daquele período pós-guerra. Foi assim que Allen conquistou popularidade e ingressou na primeira formação da também recém-criada Liga da Justiça.

Eis que é em torno da Liga da Justiça que começa a história do primeiro filme protagonizado e batizado pelo herói cujo poder é correr em uma velocidade fantástica, quase podendo parar o movimento de rotação do planeta e chegando a paralisar os acontecimentos ao redor para mover-se e fazer o que quiser neste intervalo de milionésimos de segundos. O mordomo Alfred tenta localizar os heróis para uma emergência em um hospital de Gotham City. Allen é o primeiro a ir ao local. Logo depois chegam Batman e Mulher-Maravilha e o espectador logo percebe que o tão esperado primeiro longa-metragem do Flash não será somente com o Flash, centrado tão somente no Flash. Para completar, a subtrama principal – e que dá origem à secundária, que une outros heróis e toma conta da narrativa a partir da metade do filme – envolve dois Flashes.

Como é bem comum no cinema de super-herói, aqui a audiência não consegue escapar da inevitável deslizada de quase toda produção do gênero que tenta apresentar um herói para as pessoas mais novas: o flashback contando as origens dele e como foram adquiridos tais poderes que o diferenciam do resto dos humanos. Barry, incomodado com a prisão de seu pai, que alega não ter cometido o assassinato da esposa, descobre como voltar no tempo para consertar a situação e garantir a continuidade da vida da mãe. Nisso, o Barry que veio do futuro ainda se encontra com o Barry do passado quase saindo da adolescência. Antes de se aventurar pelo continuum espaço-tempo, porém, é advertido pelo amigo Bruce Wayne sobre os perigos tenebrosos e irrecuperáveis que a tentativa pode provocar. Claro que, por ser jovem, inexperiente e desastrado, Flash vê a iniciativa dar errado e acaba ficando preso no período onde está, sem poder retornar ao seu tempo.

O maior desafio para Ezra Miller – contratado para viver o herói nos cinemas desde o longa da Liga da Justiça (2017) – é justamente provar ter sido a escolha mais correta para o diretor Andy Muschietti e os produtores executivos do filme. Badalado como uma das grandes promessas de Hollywood no início da década passada, o ator vinha de performances arrasadoras em obras cult como Precisamos Falar Sobre Kevin (2011) e As Vantagens de Ser Invisível (2012). A entrega ao personagem, que sempre fica ali no limiar entre o histriônico e o intenso – favorece bastante Miller nos alívios cômicos da história do Flash, embora também não o faça comprometer nos momentos de maior drama. Em dose dupla, na pele dos Barries de ontem e de hoje, destaca-se na interpretação, a despeito de todas as confusões e polêmicas recentes (abusos, brigas, acusações, escândalos) na qual se envolveu e acabou manchando a reputação profissional e ganhando a pecha de enfant terrible do século 21.

Se Ezra passa ileso na primeira metade, acaba caindo na armadilha provocada pelo roteiro para o seu personagem logo depois. Ao voltar no tempo e ficar preso, Flash percebe que um perigo imenso ameaça o mundo (quer dizer, mais precisamente Nova York e as cidades de Gotham e Metropolis): a chegada do general Zod, o maior inimigo kryptoniano de Superman, que vem para dominar a Terra, para onde fora mandado Kal-El ainda bebê para escapar da destruição de seu planeta e garantir a preservação de sua raça. Zod ainda vem atrás do herói, mas ninguém sabe por onde ele anda. Para salvar Superman, os Flashes acabam convencendo o Batman daquela época a lhes ajudar e no meio do caminho ainda topam com uma outra figura de grande heroísmo no universo das recentes séries da DC, a prima de Kal-El que atende pela alcunha de SUpergirl (Sasha Calle, atriz americana de origem latino-americana que ainda vai dar muito o que falar nos próximos filmes da casa). O que esperava-se ser um filme do Flash torna-se embolado por outros heróis, sobretudo quando as cenas de ação e lutas tornam-se mais frequentes a ponto de quase dominar o arco final. Sem falar que as atuações ficam quase todas subjugadas à proliferação massiva dos efeitos de CGI, com presença ostensiva aqui.

A transição de Barry Allen de um universo para o outro vem a calhar no timing reservado à questão dos multiversos, elemento que anda se propagando feito febre em Hollywood (filmes e animações de super-herói e até no Oscar) nestas duas últimas temporadas. Isca certeira para atrair bilheteria e o interesse de cinéfilos mais ligados à cultura pop. Só que este detalhe, além de abrir espaço para a maçante torrente de CGI, ainda traz consigo um festival de easter eggs daqueles de levar a turba nerd a múltiplos orgasmos nas poltronas. Outros heróis da Liga da Justiça e até aqueles que estão batalhando contra Zod aparecem constantemente em pequenas referências na tela em todas as suas versões, do passado e do presente, do cinema e da televisão. Superman, Batman, Supergirl, Mulher-Maravilha, Aquaman… Quase todos os atores que os interpretaram – como os icônicos Christopher Reeve e Michael Keaton – também são trazidos de volta neste filme para as novas gerações de fãs.

Pena que a enxurrada de efeitos especiais que toma conta da tela sem parar mais acabe por apagar o brilho da história humana durante o restante da projeção e transforme a tão esperada estreia “solo” do Flash no cinema em uma experiência enfadonha até quase o finalzinho.