Music

Elza Soares

Cantora, morta aos 91 anos, não hesitava em mostrar sua fome de botar a boca no mundo para exorcizar todos os problemas do passado

Textos por Abonico Smith e Fabio Soares 

Fotos: Divulgaçao/Deckdisc (Elza) e Reprodução (Elza e Garrincha)

No fim da tarde desta quinta-feira, 20 de janeiro de 2022, a conta oficial de Elza Soares no Instagram fez o anúncio de seu falecimento. Com mais de seis décadas de carreira, ela morreu em casa, no Rio de Janeiro, às 15h45, de causas naturais. Tinha 91 anos de idade.

De trajetória profissional longeva, Elza celebrava nos últimos anos não apenas seu renascimento artístico com também o auge de sua carreira. Contando com o apoio e adoração de novas gerações de músicos e fãs, ela ganhou Grammy, apresentou-se no Rock In Rio, desfilou no carnaval carioca como enredo da escola de samba de seu bairro e do coração, lançou álbuns badaladíssimos pela crítica (como A Mulher do Fim do Mundo, em 2015 e o primeiro após oito anos de intervalo, e Deus é Mulher, em 2018). A receita do sucesso – que vinha sempre em dobradinha com o poder arrasador de sua voz rouca, capaz de transformá-la em um vulcão ativo em cima de um palco – ela nunca escondia em suas entrevistas: a simpatia extrema, a veia afiada para críticas (sociais, políticas, de gênero) e, acima de tudo, o fato de manter sempre a cabeça aberta para as novidades do mundo. Sempre em defesa das mulheres, dos negros, dos pobres, do universo LGBTQIA+.

Elza não gostava de falar muito de seu passado, embora o fizesse sempre que necessário. Preferia sempre celebrar o presente e projetar o futuro. Por isso, passou longe de se tornar uma mera caricatura daquela genial Elza sambista que o brasil e o mundo vieram a conhecer nos anos 1960. Ligou-se a novidades musicais, novos timbres, roupagens eletrônicas e criou uma nova Elza tão genial quanto aquela da História (embora ainda possa haver discordâncias quanto a isso, como você pode ler no texto final desta matéria). Inclusive parou em fazer “discos cheios” (os famosos álbuns) em 2019 e desde então vinha focando seus lançamentos em “faixas soltas”, distribuídas apenas digitalmente por meio das plataformas de streaming musical entre elas singles em parceria com os Titãs (“Comida”) e o rapper Flavio Renegado (“Negão Negra” e “Divino, Maravilhoso”, o clássico de Caetano e Gil). Aliás, seguiu cantando até o fim: dois dias antes de morrer, gravara, sem plateia, um DVD no Theatro Municipal de São Paulo.

Para homenagear esta que foi uma das maiores cantoras de toda a música brasileira, o Mondo Bacana publica abaixo dois textos. O primeiro reproduz uma entrevista dada em setembro de 2019 ao criador e editor deste site, Abonico Smith, publicada originalmente no portal RicMais naquela época. Na ocasião, Elza Soares havia acabado de lançar seu último álbum, Planeta Fome. O outro, assinado por Fabio Soares, relembra sua vida difícil, marcada por sofrimento e luta e também pela famosa relação dela com um dos maiores jogadores de futebol de todos os tempos, tanto do Brasil quanto do planeta. Aliás, uma curiosidade: Elza, 39 anos depois, faleceu no mesmo dia 20 de janeiro de seu amado Mané Garricha. (AS)

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Nem bem Elza Soares lançou um álbum bastante celebrado por crítica e público no ano passado e, agora, apenas dezesseis meses depois, volta com mais uma pancada tão forte e impactante quanto. Mais uma coleção de faixas, entre inéditas e regravações, todas escolhidas a dedo e formando um repertório que tem um poder devastador sem igual para o enorme guarda-chuva sonoro que convencionou-se chamar de música popular brasileira.

Na verdade o que Elza fez com Deus é Mulher em 2018 volta a repetir com Planeta Fome é algo que não vem sendo comum no mercado fonográfico: chama-se misturar ousadia com a coragem de erguer a voz sobre todas as intempéries para protestar e se expressar. Já faz um bom tempo que a grande fatia do mainstream da música brasileira – isto é, as duas grandes gravadoras mundiais que restaram depois da revolução digital, das estações de rádio de grande audiência, das emissoras de TV que insistem em produzir programas musicais e de auditório, da lista das músicas mais executadas em plataformas de streaming – aninhou-se na acomodação. Sempre reciclagem de mais do mesmo, fórmulas batidas, elementos já conhecidos, ingredientes que funcionam para hipnotizar um povo cujos ouvidos também se acostumaram a rejeitar o novo, o diferente, o inusitado.

Isso não funciona com Elza Soares. Mesmo. “Eu canto o que estou vendo neste país. Vou ouvindo aqui e ali, muitas músicas novas que me apresentam e que de uma certa forma contam o que anda acontecendo por aí. Aí vou formando a dedo o repertório de cada um destes discos”, diz a cantora, em entrevista por telefone.

O título Planeta Fome, segundo ela explica, não precisa ser necessariamente subentendido ao pé de letra. “Não só é comida não, apesar deste ser um período em que o brasileiro precisa de muita força também. Mas também é fome de saúde, de respeito, de cultura, de leitura. Queremos e precisamos de tudo isso.”

Já a arte da capa, assinada pela cartunista Laerte Coutinho, ilustra toda esta diversidade de fomes “do bem” que podem existir em um planeta. “A ideia de todas as ilustrações foi dela”, complemente Elza, a respeito do trabalho gráfico que ainda traz uma boa curiosidade nas entrelinhas: é tanta informação a ser buscada pelos olhos de quem a vê que lembra antigos trabalhos de designers especializados em capas de discos de vinil. Aliás, muito provavelmente em breve deve sair uma fornada de long-plays, já que a fábrica da Polysom pertence à mesma gravadora de Elza, a Deckdisc. Sendo assim, a arte de Laerte vai ficar ainda mais brilhante no mesmo tamanho do bolachão.

Quanto ao caldeirão sonoro, Elza apresenta, orgulhosamente, uma grande mistura sonora. Tem melodias melancólicas (“Tradição”, “Lírio Rosa”) e a fúria verborrágica do hip hop da vertente funky representada pelo Dream Team do Passinho Rafael Mike e do rock com riffs pesados de guitarra de BNegão (“Não Tá Mais de Graça” e “Blá Blá Blá”). Tem batidas dançantes com elementos eletrônicos (“Não Recomendado”) e uma vinheta quase a capella e que puxa pro afoxé (“Menino”). Tem um míssil do BaianaSystem com Virgínia Rodrigues e Orkestra Rumpilezz (“Libertação”) e o resgate de duas canções mais obscuras do repertório autoral de Gonzaguinha (“Pequena Memória Para um Tempo Sem Memória”, “Comportamento Geral”). Tem versos celebrando a necessidade atual da resistência tanto coletiva (“País do Sonho”) quanto individual (“Virei o Jogo”). Tem também citações e referências espalhadas por todo o álbum e que vão de Titãs (“Comida”) a Chico Buarque (“Geni e o Zepelim”), de Tim Maia (“Me Dê Motivo”) a uma canção de Seu Jorge eternizada na voz da própria Elza (“A Carne”). “Canto sempre aquilo que me dá vontade de cantar. Estas duas músicas do Gonzaguinha são demais. Dizem bem o que está acontecendo no Brasil hoje. Ele escrevia para o futuro. Cazuza é outro que também fazia isso.”

As letras das doze faixas, de uma certa forma, fazem um grande coro de descontentamento e indignação de Elza com a situação apresentada há alguns anos no Brasil. Social, econômica e sobretudo politicamente falando. “Esta nova geração está dormindo muito. O que será que aconteceu com a juventude? Está um silêncio profundo por aí… Não vemos mais os estudantes na rua, como já vimos antes. Gente que brigava e buscava alguma coisa. O que colocaram na água do brasileiro, meu Deus? Anda todo mundo amedrontado, só na internet. Parece que não se dá mais liberdade para o povo”, queixa-se a cantora, sem, porém, ousar esconder o brado de insatisfação com a apatia geral de adolescentes e jovens adultos.

Elza reclama e também está longe de querer ficar parada, esperando algo acontecer. Por isso, está sempre ligada ao quem está vindo aí no seu futuro, sem querer muitas amarras com o que já foi. “Vem o filme com a Taís Araújo no papel de Elza Soares. Também vou ser homenageada no carnaval carioca no ano que vem. Serei o tema da minha escola de coração, a Mocidade Independente de Padre Miguel. Vou cantar no Rock In Rio no fim deste mês. Já lancei três discos de 2015 para cá. Aliás agradeço a Deus por ter dois produtores tão carinhosos e competentes como o Juliano Almeida e o Pedro Loureiro. Eles vão atrás, agilizam tudo, fazem as coisas acontecerem. Pedro ainda canta, toca, compõe. Ele se envolve na questão na criação. Pena que só chegaram agora há pouco na minha vida.”

Antes tarde do que nunca. Porque, afinal, com Elza o negócio é sempre falar, gritar, botar a boca no mundo. “Blá blá blá é comigo mesmo”, brinca. (AS)

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Elza Soares tinha 53 anos no dia 20 de Janeiro de 1983 quando Garrincha, seu companheiro por 17 anos, sucumbiu a complicações decorrentes do alcoolismo.

Aliás, a palavra “fácil” jamais caminhou lado a lado na vida de Elza Gomes da Conceição. Nascida em 1930 no bairro de Padre Miguel, no Rio de Janeiro, foi molestada aos 12 e obrigada, pelo pai, a casar com seu abusador. Aos 14, deu à luz o primeiro filho. Viu seu segundo filho morrer de fome como o primogênito. Trabalhou num manicômio onde conseguia, ao menos, realizar uma refeição por dia. Aos 20, teve uma filha recém-nascida sequestrada em 1950 e conviveu com esta angústia por três décadas. Reencontrou sua Dilma em 1980, que não sabia que era filha da cantora. Devido ao tempo decorrido, o casal responsável pelo crime fora beneficiado com a prescrição da pena.

Em 1953, Elza apresentou-se no programa de Ary Barroso, chamado Calouros em Desfile, na Rádio Tupi, no Rio de Janeiro. O episódio é dissecado na biografia Elza, escrita por Zeca Camargo e lançada em 2018. “Cantar ali era o sonho de muitos cantores e cantoras aspirantes, um caminho para o estrelato. ‘Entrei segurando minha roupa para ela não desmontar e arrastando uma sandália muito vagabunda, que era a única que eu tinha, e o Ary logo me olhou com aquela cara de quem ia aprontar alguma comigo’, lembra a cantora.”

As gargalhadas só cresciam e com elas o apresentador se sentiu ainda mais à vontade para ironizar a candidata ‘fresquinha’. ‘O que você veio fazer aqui?’, perguntou, impiedoso. ‘Vim cantar’, respondeu Elza, achando que era melhor não ceder às brincadeiras. Ele dobrou então a provocação: ‘E quem disse que você canta?’ Outra resposta curta: ‘Eu, seu Ary.’ Apesar da aparência risível, parecia uma caloura difícil de ‘quebrar’ com qualquer piada. Por isso, talvez, a próxima pergunta tinha beirado a grosseria: ‘Então, agora, me responda, menina, de que planeta você veio?’ Elza: ‘Do seu planeta, seu Ary!’ O apresentador, já perdendo a paciência, insistiu: ‘E posso perguntar que planeta é esse?’ Parecia que a resposta já estava na ponta da língua: ‘Do planeta fome.’

Em 1962, iniciou um romance com Garrincha logo após a conquista do bicampeonato mundial no Chile. O craque, casado, recebeu um ultimato: ou a assumiria ou a perderia. Garrincha desquitou-se da esposa mas o público não reagiu bem ao fato. Acusada de ser “destruidora de lares”, Elza era hostilizada por onde passava. Entretanto, em artigo publicado na Folha de S.Paulo em 20 de Janeiro de 2013, o gigante Ruy Castro, desconstrói esta história. “Para os desinformados, ela ajudou a destruí-lo. A verdade é o contrário: sem Elza, Garrincha teria ido muito mais cedo para o buraco. Quando ela o conheceu (em fins de 1961, e não em meados de 1962, durante a Copa do Chile, como até hoje se escreve), Elza estava em seu apogeu como estrela do samba, do rádio e do disco. E ninguém imaginava que Garrincha, logo depois de vencer aquela Copa praticamente sozinho, logo deixaria de ser Garrincha. Ninguém, em termos. Os médicos e preparadores físicos do Botafogo sabiam que Garrincha, com o joelho cronicamente em pandarecos (e agravado pela bebida), estava no limite. Mas ele não se permitia ser operado – só confiava nas rezadeiras de sua cidade, Pau Grande. O que Garrincha fez na Copa foi um milagre. Mas, assim que voltou do Chile, os problemas se agravaram. Um outro Garrincha (gordo, inchado, bebendo às claras ou às escondidas) incapaz de repetir seus dribles e arranques pela direita continuou se arrastando pelos campos, vestindo camisas ilustres (do próprio Botafogo, do Corinthians, do Flamengo, do Olaria e da seleção) por mais inacreditáveis dez anos, até o famoso Jogo da Gratidão, organizado por Elza Soares. Foi sua despedida oficial, a 19 de dezembro de 1973, com um Maracanã inundado de amor”.

Artisticamente falando, os últimos trabalhos de Elza Soares foram um calvário a céu aberto a quem quisesse ver. Nestes sete anos, discos sofríveis foram lançados. A Mulher do Fim do Mundo (2015), Deus é Mulher (2018) e Planeta Fome (2019) nem um pouco lembraram o assombro de genialidade de álbuns como Com a Bola Branca (1966) e o espetacular trabalho com Wilson das Neves, de 1968. Tempo quando estava com Garrincha, aliás.

Seja como for, com muito mais genialidade que erros, o nome de Elza Soares ecoará pela eternidade fazendo não só fazendo jus ao título de Voz do Milênio, concedido em 1999 pela BBC, de Londres. Para sempre reinará absoluta no panteão de nossa cultura brasileira. (FS)