Movies, TV

Tarcísio Meira

Oito longas-metragens para relembrar sempre a excelência e a versatilidade das atuações deste que foi o grande galã das telenovelas

Texto por Abonico Smith e Marden Machado (Cinemarden)

Fotos: Divulgação

Na manhã de 12 de agosto de televisão a história da televisão brasileira ficou bem mais triste. O hospital Albert Einstein, em São Paulo, anunciou a morte do ator Tarcisio Meira, aos 85 anos de idade, por problemas de saúde decorrentes da covid-19. Ele estava internado havia alguns dias. A atriz Gloria Menezes, sua esposa de quase seis décadas, também internou-se com covid no mesmo hospital. Mas ela, ao contrário do marido, reagiu bem, não precisou ser deslocada do quarto até a UTI e teve alta hospitalar dias após ser informada do falecimento do marido.

O nome de Tarcísio Meira se confunde com o da história da TV nacional. Ele é um dos maiores símbolos da teledramaturgia, tendo somado durante a trajetória profissional 78 participações em produções seriadas (novelas, séries, minisséries), programas documentais e teleteatro (quando as encenações eram transmitidas ao vivo, o que era comum até o começo da década de 1960).

De formação teatral clássica e biotipo de galã, Tarcisio não precisou de muito para assumir o posto de protagonista de telenovela. Desde a primeira, aliás. E já em 2-5499 Ocupado, feita pela TV Excelsior em 1963 a partir de uma adaptação do texto original argentino, atou ao lado de Gloria, com quem, pelas próximas duas décadas, fez par constante em vários outros títulos. 

Mas foi a partir de 1969 que ele ajudou a construir junto com a Rede Globo uma indiscutível excelência nesse formato de folhetim diário, fazendo da emissora carioca um nome mundial da televisão com sucessivas exportações de produções para exibição em dezenas de outros países. Também ajudou a consolidar a chamada “novela das oito” (que com o passar do tempo foi começando mais tarde e atualmente começa às nove e meia da noite) como elemento principal do horário nobre da Globo, formado ao lado do Jornal Nacional e de um produto da linha de shows e entretenimento. Afinal, Tarcisio protagonizou muitas histórias de sucesso e popularidade, que ficaram na memória do público brasileiro tanto no formato de novela quanto de minisséries. Entre os títulos mais importantes da telinha que contaram com o ator no elenco estão 2-5499 Ocupado (1963), Irmãos Coragem (1970 – foto acima), Cavalo de Aço (1973), Espelho Mágico (1977), Guerra dos Sexos (1983), O Tempo e o Vento (1985), O Rei do Gado (1996) e Saramandaia (2013).

Só que Tarcísio Meira não foi apenas um profissional a serviço das telenovelas. Também encenou 31 peças teatrais e rodou 22 filmes. Em homenagem ao ator, o Mondo Bacana disseca oito presenças fundamentais de Tarcisão (apelido pelo qual era carinhosamente chamado, em contraponto ao filho Tarcísio Filho, o Tarcisinho), na tela grande. E entre eles não está A Idade da Pedra (1981), o confuso último filme dirigido por Glauber Rocha… (AS)

Quelé do Pajeú (1969)

Não seria exagerado dizer que Anselmo Duarte seja o artista brasileiro mais próximo do italiano Vittorio De Sica. Ambos iniciaram carreira no cinema como atores. No caso de Anselmo, na segunda metade dos anos 1940. Pouco depois já começou a escrever roteiros e no final da década seguinte estreava na direção de longas. Sua obra maior, O Pagador de Promessas, feito em 1962, ganhou a Palma de Ouro em Cannes. Quelé do Pajeú, de 1969, foi seu quarto longa e marcou a estreia de Tarcísio Meira como protagonista em um filme. A história, criada por Lima Barreto (do sucesso O Cangaceiro, de 1953), foi roteirizada pelo próprio Anselmo Duarte. Temos aqui o mais próximo em nosso cinema de um faroeste. Tudo começa quando a jovem Marizolina (Elizângela) é violentada. Seu irmão, Quelé, mente e Celidônio (Meira) sai pela região em busca de vingança. A ação se passa nos anos 1930 no interior do nordeste brasileiro. Quelé enfrenta perigos em sua jornada, além de fazer amigos e conquistar o coração da jovem Do Carmo (Rossana Ghessa). Também conhecido como A Fúria do Vingador, temos aqui uma obra faz bom uso dos elementos clássicos de bom bang bang, porém, com um toque bem brasileiro. Além disso, Meira convence plenamente no papel-título e a trama mantém nosso interesse até o final. (MM)

Independência ou Morte (1972)

Quando das comemorações dos 150 anos da independência do Brasil, em 1972, Oswaldo Massaini e Aníbal Massaini Neto produziram um dos grandes épicos do cinema nacional. Com direção do paulista Carlos Coimbra, que vinha de uma série de filmes populares tendo o cangaço como premissa, a obra teve roteiro escrito pelo próprio Coimbra junto com Anselmo Duarte, Dionísio Azevedo e Lauro César Muniz. Acompanhamos aqui a trajetória de Dom Pedro I (Tarcísio Meira) responsável pelo famoso grito dado às margens do rio Ipiranga, em São Paulo, e que proclamou a independência de nosso país de Portugal. Misturando aventura com política e romance, o filme procura traçar um painel multifacetado do primeiro imperador brasileiro ao abordar sua grande paixão pelo Brasil, sua postura política e seu envolvimento com a Marquesa de Santos (Glória Menezes), sua amante. Meira esbanja carisma no papel principal, a exemplo do que viria a fazer, 13 anos depois, na minissérie O Tempo e o Vento, quando interpretou o capitão Rodrigo Cambará. Sucesso de público quando de seu lançamento, Independência ou Morte continua sendo a melhor cinebiografia do filho mais velho de Dom João VI. (MM)

O Marginal (1974)

O diretor carioca Carlos Manga foi um dos maiores nomes das chanchadas da Atlântida, que reinaram absolutas nas bilheterias nacionais dos anos 1950. Mais conhecido por suas comédias, tanto no cinema como na televisão, Manga dirigiu O Marginal, em 1974, e surpreendeu todo mundo ao abandonar o gênero que o consagrou. Com roteiro do próprio diretor, escrito junto com Lauro César Muniz, a partir de um argumento de Dias Gomes, o filme segue a cartilha dos policiais hollywoodianos. Incluindo alguns flashbacks e razões psicológicas para justificar o comportamento de Osvaldo de Moraes (Tarcísio Meira), na época o grande galã da TV buscando aqui fugir um pouco do estereótipo de bom moço. Ele, quando criança, fugiu de um orfanato, onde sofria maus tratos, e acabou por entrar, já adulto, para o crime. Ambicioso, Valdo termina dando “um passo maior do que a perna” e acaba preso. No melhor estilo femme fatale dos clássicos policiais noir dos anos 1940, a mulher, ou como é o caso em O Marginal, as duas que cruzam o caminho de Valdo, têm papel decisivo em sua vida. Manga imprime ritmo e realiza uma obra que não nega sua inspiração made in Hollywood, mas também não a compromete. E este filme ainda tem trilha sonora composta pela dupla Roberto e Erasmo Carlos. (MM)

República dos Assassinos (1979)

É curioso perceber que Tarcísio Meira procurou no cinema, pelo menos entre meados dos anos 1970 até o final da década seguinte, fugir do estigma de galã que a televisão lhe havia imposto. Essa busca fica mais do que evidente em República dos Assassinos, com direção de Miguel Faria Jr. A história tem por base o romance de mesmo nome escrito por Aguinaldo Faria, que assina o roteiro junto com o próprio diretor. A ação acontece no Rio de Janeiro e gira em torno de um Esquadrão da Morte composto por policiais e liderado por Mateus Romeiro (Meira). Alçado pela mídia ao posto de heróis da sociedade, o grupo é chamado de Homens de Aço. No entanto, o modus operandi é de uma milícia. Macho até a medula, na pior acepção da palavra, Mateus trata as mulheres com quem se relaciona como meros objetos. Apesar da presença forte de Tarcísio Meira à frente do elenco, quem “rouba” o filme é Anselmo Vasconcelos, no papel do travesti Eloína. Mesmo tendo envelhecido mal, República dos Assassinos traz um retrato preciso do Brasil daquela época. Um retrato que, em muitos aspectos, infelizmente, continua o mesmo. (MM)

O Beijo no Asfalto (1981)

Nelson Rodrigues, o maior dramaturgo brasileiro, escreveu uma de suas peças mais conhecidas, O Beijo no Asfalto, em 1960. A primeira encenação ocorreu no ano seguinte e três anos depois ganhou sua primeira adaptação para o cinema, chamada simplesmente de O Beijo, dirigida por Flávio Tambellini e com o jovem Reginaldo Faria à frente do elenco. Esta segunda versão, de 1981, com direção de Bruno Barreto, teve o roteiro adaptado por Doc Comparato. No papel de Arandir temos Ney Latorraca, um bancário que ao presenciar o atropelamento de um homem por um ônibus, vai em seu socorro. Um ato de bondade termina por transformar inteiramente a vida de Arandir, tornando-o alvo de preconceito, além de investigado pela polícia. Sem contar o que acontece em sua própria casa na sua relação com a esposa, Selminha (Christiane Torloni), a cunhada Dália (Lídia Brondi) e o sogro Aprígio (Tarcísio Meira). A abordagem de Barreto procura ser fiel ao texto de Rodrigues e consegue seu objetivo. Existe uma terceira versão dessa peça, mais sofisticada em sua abordagem, dirigida em 2018 pelo ator Murilo Benício e com Lázaro Ramos e Débora Falabella nos papéis principais. (MM)

Eu Te Amo (1982)

Quem só conhece Arnaldo Jabor de seus comentários políticos na imprensa não faz ideia de que ele fora um grande cineasta antes. Jabor iniciou sua carreira na segunda metade dos anos 1960, na esteira do Cinema Novo e construiu, ao longo das décadas seguintes, uma sólida filmografia. Eu Te Amo, de 1981, é a parte dois da chamada Trilogia do Apartamento, iniciada em 1978 com Tudo Bem e concluída em 1986 com Eu Sei Que Vou Te Amar. O roteiro, do próprio Jabor, parte de uma história criada por Leopoldo Serran e apresenta o empresário Paulo (Paulo César Pereio). Duplamente falido, nos negócios e na vida pessoal, ele convida Maria (Sônia Braga), que conhecera na noite anterior, para visitá-lo em seu apartamento cheio de aparelhos de televisão. Abandonados, ambos se encontram em suas solidões. Ele, pela lembrança de Bárbara (Vera Fischer). Ela, pela de Ulisses (Tarcísio Meira). Há um misto de dor e desespero na forma como Paulo e Maria se relacionam. E Jabor, ciente do talento de seu elenco e da força ácida dos diálogos que escreveu, tira todo proveito das situações apresentadas. Com produção de Walter Clark, o então todo poderoso da Rede Globo, Eu Te Amo, apesar de marcado pela estética neon do cinema feito na época, conseguiu envelhecer bem e manter-se relevante 40 anos após seu lançamento. (MM)

Eu (1987)

Assim como o autor de novelas Manoel Carlos tem suas Helenas, o cineasta Walter Hugo Khouri tinha seus Marcelos, que apareceram em dez dos 25 longas que ele escreveu e dirigiu. Eu, de 1987, marca a oitava aparição do personagem, vivido aqui pelo ator Tarcísio Meira. Marcelo é um empresário muito rico e possui um desejo incontrolável por belas mulheres, que sempre estão ao seu lado. Apesar disso, nunca fica satisfeito. Na verdade, ele nutre uma paixão secreta e proibida por Berenice (Bia Seidl), sua única filha. A ação se concentra na casa de praia do milionário, no período das festas de fim de ano. É para lá que ele vai acompanhado de Renata (Monique Lafond), Lila (Nicole Puzzi) e Diana (Monique Evans). Para sua surpresa, a filha também aparece levando Beatriz (Christiane Torloni), uma psicóloga amiga sua. Marcelo é um homem, pode-se dizer, que tem tudo e, ao mesmo tempo, nada. Já que, por mais que seus desejos sejam realizados, sempre parece faltar alguma coisa. E Tarcísio Meira transmite esse vazio interior misturado com arrogância de maneira perfeita. (MM)

Não Se Preocupe, Nada Vai Certo (2011)

Em quase 60 anos de carreira, Hugo Carvana atuou em muitas frentes na TV e no cinema, seja como ator, roteirista, produtor e diretor. Foram mais 100 obras e dentre elas, nove longas dirigidos por ele. O penúltimo foi Não Se Preocupe, Nada Vai Dar Certo, de 2011, derradeiro trabalho de Tarcísio Meira na telona. O roteiro de Paulo Halm apresenta Lalau Velasco (Gregório Duvivier). Ele viaja pelo interior do nordeste brasileiro com seu stand up onde conta histórias hilárias das trapalhadas de seu pai, Ramon Velasco (Meira). Certo dia, no Ceará, ele recebe uma proposta irrecusável de Flora (Flávia Alessandra) para se passar por um guru indiano contratado para uma palestra motivacional. Sem que seu pai saiba, Lalau vai para o Rio de Janeiro, onde, mais tarde, é encontrado por Ramon. Esta é uma comédia que se sustenta em situações de pura farsa que, em certa altura, assumem uma aura de mistério policial. Meira e Duvivier acertam na química, que fica melhor ainda quando entra em cena um velho amigo de ambos, Zimba, vivido pelo próprio Carvana. (MM)

Music

Ranking Roger (1963 – 2019)

Toaster do grupo Beat, expoente do movimento Two Tone, foi um símbolo dos descendentes caribenhos na música pop britânica

ranking roger

Texto por Emmanuel do Valle (Célula Pop)

Foto: Reprodução

Figura de proa no movimento Two Tone, que aglutinou de vez o ska jamaicano ao som pop britânico da virada dos anos 70 para os 80, Ranking Roger morreu aos 56 anos no último dia 26 de março. Alçado à popularidade como um dos frontmen do Beat – banda fundamental do período, também conhecida como English Beat nos Estados Unidos – ao lado do vocalista e guitarrista Dave Wakeling, Roger se destacava pelo toasting, estilo de canto falado próprio dos ritmos da ilha do Caribe. Mais ainda: era um dos símbolos de uma geração de descendentes dos imigrantes afro-caribenhos que aportaram no Reino Unido entre o fim dos anos 1940 e começo dos anos 1970, impactando decisivamente no cenário cultural do país.

Nascido Roger Charlery, em Birmingham (segunda cidade mais populosa do Reino Unido), em 21 de fevereiro de 1963, era filho de um casal que imigrou da ilha caribenha de Santa Lúcia. Na adolescência, tornou-se fã do então nascente punk rock, passando a tocar bateria num grupo chamado Nam Nam Boys. Nos encontros da cena local, fez amizade com os integrantes de um grupo de ska, o Beat, dando uma canja nos shows com sua performance no toasting. Logo estava convidado a se juntar de vez à banda, que não demoraria muito a estourar.

No finzinho de 1979, a formação lançou seu primeiro compacto contendo uma regravação quicante para “Tears Of A Clown” (imortalizada pelo mestre do soul Smokey Robinson) e, do outro lado, “Ranking Full Stop”, na qual Roger comandava o microfone. Único lançamento do grupo pelo selo Two Tone – que batizou o movimento e divulgou novos e importantes nomes como os Specials, o Madness e o Selecter –, o disquinho chegou ao sexto posto da parada britânica em janeiro do ano seguinte e levou o Beat a tocar pela primeira vez no Top Of The Pops, o mais famoso programa musical de TV da BBC.

O grupo era um sexteto racialmente miscigenado: três ingleses brancos oriundos da classe operária de Birmingham (o já citado Dave Wakeling, o guitarrista Andy Cox e o baixista David Steele) e três negros de origem caribenha: além de Ranking Roger (então com apenas 16 anos), havia o baterista Everett Morton e o veterano saxofonista Lionel Augustus Martin, o Saxa, já beirando os 50 anos, e que ao longo da carreira havia acompanhado nomes históricos do ska como Laurel Aitken, Desmond Dekker e Prince Buster. Era um símbolo de que não só a influência como também a presença negra na música pop britânica havia chegado para ficar.

O dado negro na música e na cultura pop britânicas é relativamente recente em comparação com suas correspondentes norte-americanas. A explicação é simples, mas vem de longe. Como matriz colonial, o Reino Unido utilizou mão de obra escrava de africanos majoritariamente em suas colônias (entre elas os Estados Unidos), e não em seu próprio território – a escravidão foi legalmente abolida dentro do país em 1772, embora tenha continuado na prática, de forma sub-reptícia, ainda por quase um século.

Desta forma, até a Segunda Guerra Mundial, a população afrodescendente no Reino Unido não passava de 1% do total, ou pouco mais de 10 mil. Com o país em ruínas ao fim do conflito após os bombardeios alemães, além das expressivas perdas humanas, havia a necessidade urgente de se reconstruir. O governo britânico então passou a incentivar a imigração de habitantes das colônias, inclusive concedendo cidadania do país por meio do British Nationality Act, de 1948.

Em 22 de junho do mesmo ano, o navio HMT Empire Windrush desembarcou no porto de Tilbury, perto de Londres, com cerca de 800 imigrantes oriundos das chamadas Índias Ocidentais (ou o conjunto de colônias do Caribe). O nome da embarcação virou símbolo do fluxo que se estendeu até o início dos anos 1970, já em meio ao processo de descolonização do antigo Império Britânico: os imigrantes afro-caribenhos do período – entre eles, o teórico cultural jamaicano Stuart Hall e os próprios pais de Ranking Roger – ficaram conhecidos como “geração Windrush”.

A chegada massiva de imigrantes começou aos poucos, a partir dos anos 1960, a se fazer notar na cultura britânica. Incorporado ao mainstream da música pop mundial só em meados dos anos 1970, o reggae já marcava presença nas paradas do Reino Unido mesmo em plena Swingin’ London. Antes disso, outros gêneros como o ska e o rocksteady já haviam sido incorporados ao repertório dos mods – tribo urbana juvenil oriunda da classe operária, que ganhou notoriedade no país naquela década – ao lado do soul e do rhythm & blues norte-americanos.

Em abril de 1969, o astro jamaicano do ska Desmond Dekker chegou ao topo da parada britânica de singles com seu clássico “Israelites”. No ano seguinte, ele arrastou multidões de jovens como a principal atração de um festival de música caribenha realizado no estádio de Wembley. Enquanto isso, em 1971, o censo britânico apontava uma população de cerca de 304 mil habitantes de origem afro-caribenha no país, trinta vezes mais do que os números praticamente estáveis das quatro primeiras décadas do século.

Previsivelmente, houve forte reação das alas conservadoras da política e da sociedade britânicas. Ainda em abril de 1968, o parlamentar conservador Enoch Powell fez um inflamado discurso anti-imigração que ficou conhecido informalmente como “Rivers Of Blood” (“Rios de Sangue”) e entrou para a História do país. Citando uma conversa que havia tido com trabalhador de meia-idade pouco tempo antes, Powell afirmava que, caso os fluxos migratórios não fossem contidos, “neste país, dentro de 15 ou 20 anos, o negro terá o domínio sobre o branco”.

Dez anos antes, os distúrbios raciais ocorridos no bairro de Notting Hill marcaram o primeiro grande tumulto deste tipo no país. Ao longo da década de 1970, eles se tornariam mais frequentes, graças ao crescimento de grupos de extrema-direita com matizes neonazistas, como o National Front e o British Movement, que organizavam passeatas e ataques a áreas urbanas com grande concentração de imigrantes, como na chamada Batalha de Lewisham, que envolveu milhares de pessoas no bairro do sudoeste de Londres em agosto de 1977.

Dentro deste contexto, era previsível que o componente sociopolítico se tornasse marcante nos grupos do movimento Two Tone, que revigoraria o skae o reggae, fundindo-os à chamada new wave, que despontava na música britânica no fim dos anos 1970. Em maio de 1980, quando o Beat lançou seu álbum de estreia, I Just Can’t Stop It, as canções sobre relacionamentos e os tributos aos velhos mestres do som jamaicano dividiam espaço com afiadas crônicas sociais (“Mirror In The Bathroom”, “Big Shot”) e políticas (“Stand Down Margaret”, que exigia a saída da primeira-ministra conservadora britânica, eleita um ano antes).

O som enérgico do Beat conquistou a molecada e chegou a reverberar até mesmo deste lado do Atlântico: o grupo foi uma das grandes inspirações no som dos primeiros discos dos Paralamas do Sucesso, até mais do que o Police, com o qual se costuma associar o trio liderado por Herbert Vianna. Everett Morton, por exemplo, era influência declarada do baterista João Barone. E o hit paralâmico “Óculos”, de 1984, “pegava emprestado” o riff de marimba de “Hands Off, She’s Mine”, segundo compacto do Beat, que chegou ao nono lugar da parada britânica em março de 1980 – além de ter sido o primeiro lançamento do selo próprio da banda, o Go Feet.

Lançado no ano seguinte, o segundo disco do grupo, Wha’ppen, era mais lento e sombrio, refletindo o momento calamitoso vivido pelo país naqueles primeiros anos de Thatcherismo, com profunda recessão econômica e desemprego recorde, além da série de novos conflitos raciais deflagrados em várias das principais cidades do país entre abril e julho. Apesar disso – e embora tenha sido recebido com maior frieza pelo público –, o álbum ainda oferecia momentos sublimes, como a emocionante “Doors Of Your Heart”, que ganhou um clipe maravilhoso, gravado em plena euforia do carnaval de rua afrocaribenho de Portobello Road.

O terceiro ábum, Special Beat Service, lançado em outubro de 1982, ampliava ainda mais a paleta sonora do grupo: “Save It For Later” – considerada por Pete Townshend uma de suas canções favoritas da vida – puxava mais para um estilo guitar band, enquanto a funkeada “I Confess” remetia aos grupos new romantic. Ambas foram lançadas em single. Mas o grande momento de Ranking Roger era a canção na qual ele apresentava um certo toaster novato chamado Pato Banton, “Pato And Roger A Go Talk”.

Aquele seria o último disco de estúdio da banda, que se despediria no ano seguinte com a coletânea What Is Beat? e uma turnê que incluiu uma participação antológica no US Festival, na Califórnia, em maio de 1983. O grupo se desintegrou aos pares: enquanto Andy Cox e David Steele formaram o Fine Young Cannibals recrutando o vocalista Roland Gift, Everett Morton e Saxa, os mais experientes do grupo, passaram a acompanhar outros artistas, antes de formarem o International Beat, que seguiria na ativa até a década de 1990.

A dupla de frente, Ranking Roger e Dave Wakeling, por sua vez, seguiu junta no projeto seguinte, o General Public, que lançou dois álbuns e teve sucesso com a canção “Tenderness”, de 1984, que volta e meia aparece em coletâneas de flashback de sons oitentistas. Com o fim de mais esta empreitada, Roger lançou um disco solo, formou o Special Beat, com ex-integrantes dos Specials e gravou com Sting e com o Smash Mouth Até trazer o Beat de volta à ativa nos anos 2000 – ou melhor, um dos Beats, já que Wakeling, agora residindo nos Estados Unidos, também fez shows pelo país com o nome da banda. Nunca houve, porém, qualquer animosidade.

A formação que tinha Ranking Roger à frente, da qual também fazia parte seu filho Ranking Junior, chegou a gravar dois álbuns de inéditas: Bounce, de 2016, e Public Confidential, que saiu em janeiro deste ano, na mesma época em que o cantor anunciou pelas redes sociais que havia sido operado de dois tumores no cérebro, além de passar por tratamento contra um câncer no pulmão – antes, em agosto, já havia sofrido um infarto. “Ele lutou & lutou & lutou. Roger era um lutador”, disse o comunicado que anunciou sua morte no perfil oficial do Beat no Facebook, antes de revelar que o cantor falecera “em paz em sua casa, rodeado por sua família”.

Também pelas redes sociais, amigos de bandas contemporâneas como Neville Staple (Specials), Pauline Black (Selecter), Billy Bragg e o UB40 lamentaram a morte de Ranking Roger, que se torna a segunda perda na formação clássica do Beat, após o falecimento de Saxa em maio de 2017, aos 87 anos. O cantor havia recentemente acabado de escrever sua autobiografia, que leva o mesmo nome do primeiro álbum do grupo, I Just Can’t Stop It, e deve ser publicada em breve.