Music

Seu Jorge – ao vivo

Cantor deixa o groove de lado em Curitiba e faz uma bela apresentação contida e minimalista mas nem por isso menos animada

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Texto e foto por Janaina Monteiro

A música popular brasileira é recheada de Jorges. Tem o Ben Jor, com seu genial samba rock. O Mautner, do maracatu atômico. O Vercilo, das canções românticas. Outro Jorge não leva sobrenome artístico, mas é dono de uma voz tão potente e de uma história de vida tão incrível que alcançou os quatro cantos do mundo. Este Jorge usa apenas um pronome de tratamento na frente, abreviação de Senhor. Seu Jorge foi Nosso Jorge em Curitiba no primeiro dia de agosto de 2019, onde apresentou um “senhor” show de voz e violão, acompanhado pelo sambista e mestre do cavaquinho Pretinho da Serrinha.

Quem está acostumado com o groove de Seu Jorge, tendo inclusive um naipe de metais, conheceu um outro lado do multiartista. Ele, Pretinho e mais um DJ chegaram de mansinho e conduziram uma apresentação contida, mas nem por isso pouco animada. Em se tratando de Seu Jorge, mais pra quê? Sentado ou de pé, ele tem suingue e seu vozeirão é suficiente para animar a plateia. Mesmo minimalista, o cantor conseguiu dar sentido a um repertório eclético – capaz de reunir o que há de melhor no terreno da música popular – e marcado por contrastes. Vai de samba de raiz, cover de Racionais MCs, revival de canções do Farofa Carioca (banda da qual ele era integrante nos anos 1990), clássicos da bossa nova e até Tim Maia no derradeiro número. Houve, claro, alguns tropeços, tanto por conta do comportamento da plateia quanto da estrutura do set list. Mas nada que tolhesse o carisma e a competência do artista que enaltece o cotidiano das “minas” e dos “manos” para um público repleto de “burguesinhos” e “burguesinhas”.

Essa discrepância já tomava forma na chegada à Ópera de Arame, onde o público era recepcionado por música clássica (para combinar com o nome do local!) até o início do show, às 21h15. O erudito, então, deu a vez ao samba e suas vertentes. E a luz negra que iluminava o teatro se refletiu no palco. Seu Jorge entrou vestido com calças e agasalho amarelos, como um leão, e logo agarrou uma xícara de chá – com sachê à mostra – para espantar o frio (e olha que aquela não foi uma das noites mais geladas neste inverno curitibano).

Em instantes, engatou clássicos da MPB e quebrou a expectativa de todos, que cantaram “Samba da Minha Terra”, de Dorival Caymmi, e a sua “Carolina”. Mesmo sentado, Jorge dava vazão à famosa malemolência dos sambistas, charme que deixava um grupo de amigas, atrás de mim, derretidas. Em vez de cantar, elas não paravam de rasgar elogios à “pérola negra”. “Ah, eu pegava ele”, dizia uma delas…

A terceira canção foi “Negro Drama”, dos Racionais. Na plateia, um grupo de mulheres negras se levantou e empunhou as mãos para cima. Jorge aproveitou a ocasião para lembrar a presença feminina no samba, dando o exemplo de Leci Brandão. “As mulheres estão no front agora”, disse. Foi um dos únicos momentos contestadores em que o artista se levantou da cadeira e largou o violão. Depois seguiu homenageando a Mangueira com um samba de Cartola, “Preciso me Encontrar”, e “Você Abusou”, de Antônio Carlos e Jocafi. Reverenciou, também, João Gilberto num momento especial, ao convidar sua filha Flor de Maria para cantar “Retrato em Branco e Preto”. Foi uma doce homenagem a um dos pais da bossa, apesar de a composição ser de Chico Buarque e Tom Jobim. “Mas esta música estava no repertório de João”, justificou o cantor. Também foi chamado ao palco o trompetista Azeitona (Paulo Henrique) com um belo porém quase inaudível solo.

Logo que as músicas mais animadas começam a invadir o teatro, a plateia – jovem ou idoso, branco ou negro – deixava a timidez de lado e se levantava para sacolejar. Menos ele, Jorge, que continuava sentado, tocando seu violão, escorregando num acorde vez ou outra.  Então, a Ópera se enchia de boemia, alegria e simpatia do músico, que conversava sem parar, contanto causos sobre música. Só faltavam mesmo a mesa de bar e o churrasco. Porque a bebida não era problema para os presentes, apesar da restrição clara no ingresso.

Quando chegou a hora do sucesso “É Isso Aí” (versão de “The Blower’s Daughter”, tema do filme Closer – Perto  Demais), Jorge mostrou que dá conta do recado sem Ana Carolina. Cantou com tanto vigor que, provavelmente, os versos foram ouvidos em toda a vizinhança. Apesar de quase engolir o microfone, sua voz não agredia, apenas abafava a do público que tentava acompanhá-lo.

Para a alegria dos fãs, cantou “Quem Não Quer Sou Eu”, “Tive Razão”, “Amiga da Minha Mulher” (dando um show de interpretação!), “Mina do Condomínio” e “Burguesinha”. De covers teve também “Mas Que Nada” (do então Jorge Ben e que ficou conhecida no exterior com Sérgio Mendes) e “Chega de Saudade”, marco inicial da bossa nova, feito por Tom Jobim e Vinícius de Moraes.

E veio mais bossa no bis. Parte do público que já estava aquecido – como as “burguesinhas do condomínio” que estavam atrás de mim – não conseguiu entrar no clima de “S’Wonderful” e “Dindi”. Muitos conversavam em voz alta, de pé, ensejando pedidos de silêncio. Seu Jorge permanecia compenetrado, dedilhando seu instrumento. Outros foram embora antes mesmo do gran finale. Estes perderam a contagiante “Felicidade” (ou nossa versão tupiniquim de “Happy”), do álbum Música Para Churrasco II, e “Não Quero Dinheiro”, clássico de Tim Maia. Só no finalzinho é que o cantor ficou em pé e deu aquela sacudida no estilo James Brown, ao som do genuíno funk.

Seu Jorge, batizado assim pelo falecido Marcelo Yuka, tem sobrenome, sim senhor: ele é Jorge Mário da Silva. Goste dele ou não, o fato é que o músico representa um tremendo case de sucesso. Negro, pobre, nascido em Belford Roxo, região metropolitana do Rio de Janeiro, ele perdeu o irmão assassinado e, depois disso, passou três anos vivendo como mendigo. Lembro que fiquei impressionada quando assisti a uma entrevista dele no programa do Jô Soares (ainda nos tempos de SBT) na qual relatava como fora resgatado das ruas e entrara em contato com a música e o teatro, até se tornar um dos artistas brasileiros mais conhecidos mundo afora, inclusive com diversas atuações no cinema nacional (como em Cidade de Deus) e internacional (A Vida Marinha Com Steve Zissou, dirigido por Wes Anderson, para o qual escreveu catorze versões em português do repertório de David Bowie). Aliás, a vida de Jorge daria um belo filme. Radicado nos Estados Unidos, ele, há anos, viaja o mundo representando a música popular brasileira.

Music

Morrissey – ao vivo

Ídolo britânico presenteia os fãs com repertório multifacetado e performance inspirada em São Paulo

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Texto por Abonico R. Smith e Silvia Macedo

Foto: Fernando Pires/Ultimate Music/Divulgação

Qual Morrissey é o que você quer ver? A maioria de quem já passou dos 40 anos de idade certamente prefere manter na memória aquele jovem topetudo do tempo dos Smiths, que cantava palavras de dor e sofrimento emolduradas pela luxuosa combinação entre batida e dedilhado das cordas da guitarra de Johnny Marr? Tem também aquele horroroso monstro, desprovido de escrúpulos e forrado de preconceitos, que volta e meia veículos corporativos sobre música pop (incluindo aqueles que outrora era independentes e hoje pertencem a grandes grupos de comunicação) andam pintando por aí, como se frases de impacto negativo corressem soltas em sua boca. Tem ainda um impávido senhor quase sexagenário, sagaz, perspicaz e muito bem-humorado, que não perde a chance de brincar com quem está na sua frente e fazer declarações pelas quais escorrem ironia e sarcasmo. Tem também o ídolo decadente, para quem ele parou de fazer algum álbum de boa qualidade faz tempo – as mesmas pessoas, aliás, que procuram sempre ouvir os mesmos discos mais antigos e esperam que os recentes sejam um ctrl C + ctrl Vdas mesmas coisas de sempre. Tem os que se deliciam a cada boa novidade que chega, ao notar que a atual banda está cada vez mais afiada e o acréscimo de parceiros musicais (quatro dos cinco músicos que o acompanham) só resultou em um genial painel de diversidade na sua literatura sonora.

Todos estes Morrisseys eram esperados, de uma forma ou de outra, por quem esteve em 2 de dezembro no Espaço das Américas, em São Paulo. Tinha até aquele fã mais desesperado e obcecado, formando fila na casa desde a manhã daquele domingo com o objetivo de pegar aquele lugar privilegiado à beira do palco, junto à grade da frente da Pista Premium. Tinha também quem não era nem nascido quando o poeta de Manchester irrompeu no cenário musical britânico à frente de sua primeira banda, entre os anos de 1982 e 1987. Mas o Morrissey que subiu ao palco era apenas um: a pessoa inspirada e de bem com a vida, desfrutando de novo período de intensa fertilidade criativa, gravando um disco após o outro, fazendo longas turnês no intervalo entre as sessões de estúdio e sem nenhum grande protesto por ora, interessado apenas em fazer aquilo que faz de melhor, que é cantar.

E como canta! Às vésperas de completar 60 anos, Morrissey canta hoje muito mais e melhor do que já cantava, sem abrir mão de estilo, técnica, doçura e interpretação das palavras. Sua performance também está mais tranquila, sem os arroubos de antes, mas ainda intimamente ligada a seus fãs mais histéricos, como aqueles que levam vinis para o ídolo assinar em plena ação no palco (e ele, bem simpático, fez isso!) ou disputam a tapas pedaços das camisas que ele tira do corpo, rasga e arremessa à plateia.

Antes da subida do sexteto ao palco a já tradicional seleção de repertório em audiovisuais feita a dedo pelo próprio vocalista. Desta vez, começou o punk dos Ramones e culminou com o glam de David Bowie em “Rebel Rebel”. Depois foram cem minutos de intenso bom humor e  boa forma de Morrissey. Quem queria um reencontro com faixas dos Smiths ganhou três delas de presente (“William It Was Really Nothing”, “Is It Really So Strange?” e “How Soon Is Now”). Quem queria novidades ficou com outras três do mais recente trabalho, o álbum Low In High School, lançado no final do ano passado (“Spent The Day In Bed”, “Jacky Is Only Happy When She’s Up On a Stage”, “I Wish You Lonely”). Quem queria o resgate de faixas que havia tempos não apareciam no repertório dos shows também pode saborear preciosidades como “Sunny”, “Jack The Ripper”, “Hold On To Your Freinds”, “Break Up The Family e “Hairdresser On Fire”. Teve o novíssimo single ainda inédito em álbum, a cover de “Back On The Chain Gang”, dos Pretenders (aliás, ele pediu aos fãs que comprasse o trabalho de regravações que lançará no início do ano que vem). Quem procurava por raridades também ganhou “Dial-a-Cliché” (do primeiro pós-Smiths, Viva Hate, de 1988, e até a atual turnê latino-americana nunca cantada em shows) e b sidesde compactos como “If You Don’t Like, Don’t Look At Me” e “Munich Air Disaster 1958”. Também teve hitsda primeira fase solo (“Alma Matters”, “November Spawned a Monster”, “Everyday Is Like Sunday). Por fim, uma breve espanada pelos bons trabalhos mais recentes (“Life Is a Pigsty”, “The Bullfighter Dies” e uma inesperado “First Of The Gang To Die” para encerrar o bis e jogar mais uma camisa na direção dos fãs).

Steven Patrick Morrissey incorpora tantos Morrisseys – tanto em seu dia a dia quanto no imaginário de seus fãs e detratores ou ambos ao mesmo tempo – que ele ainda se dá ao luxo de usar no show uma camiseta estampada com seu próprio nome e rosto (daquelas oficiais à venda foi a que se esgotou mais rapidamente, deixando muita gente a ver navios após o show) e por isso mesmo se torna a cada dia ainda mais fascinante. Desta vez ao menos, todos devem ter saído contentes do show. Sem reclamações.

Set list: “William, It Was Really Nothing”, “Alma Matters”, “I Wish You Lonely”, “Is It Really So Strange?”, “Hairdresser On Fire”, “November Spawned a Monster”, “Break Up The Family”, “Back On The Chain Gang”, “Spent The Day In Bed”, “Sunny”, “If You Don’t Like Me, Don’t Look At Me”, “Munich Air Disaster 1958”, “Dial-a-Cliché”, “The Bullfighter Dies”, “How Soon Is Now?”, “Hold On To Your Friends”, “Life Is a Pigsty”. “Jack The Ripper” e “Jacky’s Only Happy When She’s Up On The Stage”. Bis: “Everyday Is Like Sunday” e “First Of The Gang To Die”.