Books, Movies

Pobres Criaturas

Cineasta grego Yorgos Lanthimos retoma as provocações com uma espécie de Frankenstein feminista e Emma Stone em atuação magistral

Texto por Abonico Smith

Foto: Fox/Disney/Divulgação

Se alguém ainda poderia ter dúvidas sobre esse cineasta nos últimos anos, Pobres Criaturas (Poor Things, Irlanda/Reino Unido/EUA, 2023 – Fox/Disney) chega hoje aos cinemas brasileiros confirmando o que muita gente já tinha como certeza: Yorgos Lanthimos saiu da Grécia para chegar em Hollywood para perverter e perturbar. Depois de bem-sucedidos balões de ensaio, adorados pelos fãs de um circuito mais alternativo (Dente Canino, O Lagosta e O Sacrifício do Cervo Sagrado, obras lançadas entre 2009 e 2017), ele foi alçado simultaneamente à condição de cult e pop com A Favorita, em 2018. Beliscou várias indicações durante as premiações principais da temporada e levou alguns Baftas para casa. Sua protagonista, Olivia Colman, arrebanhou não só o troféu britânico como também o Globo de Ouro e o Oscar de atriz principal.

Agora ele mete de vez o pé na porta com essa adaptação do romance de Alasdair Gray como ainda vem para bagunçar mais o coreto. A obra literária do controvertido escocês já é um primor ao recriar (ou melhor, perverter) o clássico gótico Frankenstein. Trazida para as telas, então, reforça ainda mais o caráter provocativo da trama acrescentando ritmo e imagens ainda mais perturbadores.

Um renomado cientista, cheio de si e nem aí para a ética em nome de pesquisas que podem mudar o curso da humanidade, decide reviver uma jovem grávida que acabara de se matar pulando no rio Tâmisa, em Londres. Sem perder muito tempo, ele tira o cérebro do bebê que ainda estava na barriga e o implanta na moça, a quem passa a chamar de Bella e tratar como filha. Em um corpo de adulto, ela passa a viver novamente mas tendo reações tipicamente infantis. Aos poucos ela precisa reaprender tudo: falar, comer, interagir com as outras pessoas. Tudo de acordo com o que manda a sociedade vitoriana do começo do século 20, com todos os seus absurdos patriarcais e machistas.

Como nada em Lanthimos é comum, ainda mais quando apoiada na fina ironia de Gray, o público pode esperar muitas quebras de paradigmas nesta relação entre Bella (Emma Stone) e o “pai” Godwin Baxter (Willem Dafoe). Para começar, a estética humana é justamente o oposto do que todo mundo aprende ainda criança sobre Frankenstein. A criatura representa a beldade enquanto o horror físico sobra para o criador (a quem ela chamada carinhosamente pelo apelido God – “Deus” em inglês), cujo rosto é todo marcado por grandes cicatrizes. Depois, a inteligência da jovem passa não só a se desenvolver de maneira rápida, como ainda questiona de modo pontiagudo comportamentos e dogmas sociais como também age quase instantaneamente para modificar o status quo do conformismo, da manutenção das elites e da submissão feminina.

Bella volta a se tornar “jovem”, já com desejos sexuais (mas que não cabem muito bem no papel social que todo mundo espera que ela passe a representar) e o desejo de conquistar o mundo para crescer ainda mais por dentro. Ela se casa com um nojento aristocrata (o advogado Duncan Wedderburn, interpretado por Mark Ruffalo) e parte em uma longa viagem de navio ao redor do Mediterrâneo. Começa por Lisboa, passa pelo norte africano e acaba em Paris, onde se livra do encosto marital para provocar uma fugaz revolução trabalhando como prostituta e mandando ver em discursos feministas e políticos.

O ritmo rápido e envolvente dado pela montagem e pelo roteiro divertem o público, que se rende ao encanto e talento de Emma Stone em sua atuação durante as várias etapas e facetas de Bella. Não à toa, a atriz é considerada a favorita para levar o Oscar em sua categoria e o filme somou ao todo 11 indicações para a estatueta mais comentada da indústria do cinema, perdendo em número apenas as 13 de Oppenheimer.

Independentemente do que o filme levar para casa ou perder para a concorrência, uma coisa é certa. Seguindo o fluxo da comédia farsesca impresso de modo mais amplo em um filme seu desde A Favorita, Lanthimos se consolida de vez como um dos nomes a serem seguidos de perto pelos próximos anos. Já com o apoio e o reconhecimento de Hollywood e com apenas 50 anos de idade, ele ainda tem muita coisa para trazer às telas. E com certeza trazendo na esteira com muitas provocações, burburinhos e aplausos.

Music

Morrissey – ao vivo

Ídolo britânico presenteia os fãs com repertório multifacetado e performance inspirada em São Paulo

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Texto por Abonico R. Smith e Silvia Macedo

Foto: Fernando Pires/Ultimate Music/Divulgação

Qual Morrissey é o que você quer ver? A maioria de quem já passou dos 40 anos de idade certamente prefere manter na memória aquele jovem topetudo do tempo dos Smiths, que cantava palavras de dor e sofrimento emolduradas pela luxuosa combinação entre batida e dedilhado das cordas da guitarra de Johnny Marr? Tem também aquele horroroso monstro, desprovido de escrúpulos e forrado de preconceitos, que volta e meia veículos corporativos sobre música pop (incluindo aqueles que outrora era independentes e hoje pertencem a grandes grupos de comunicação) andam pintando por aí, como se frases de impacto negativo corressem soltas em sua boca. Tem ainda um impávido senhor quase sexagenário, sagaz, perspicaz e muito bem-humorado, que não perde a chance de brincar com quem está na sua frente e fazer declarações pelas quais escorrem ironia e sarcasmo. Tem também o ídolo decadente, para quem ele parou de fazer algum álbum de boa qualidade faz tempo – as mesmas pessoas, aliás, que procuram sempre ouvir os mesmos discos mais antigos e esperam que os recentes sejam um ctrl C + ctrl Vdas mesmas coisas de sempre. Tem os que se deliciam a cada boa novidade que chega, ao notar que a atual banda está cada vez mais afiada e o acréscimo de parceiros musicais (quatro dos cinco músicos que o acompanham) só resultou em um genial painel de diversidade na sua literatura sonora.

Todos estes Morrisseys eram esperados, de uma forma ou de outra, por quem esteve em 2 de dezembro no Espaço das Américas, em São Paulo. Tinha até aquele fã mais desesperado e obcecado, formando fila na casa desde a manhã daquele domingo com o objetivo de pegar aquele lugar privilegiado à beira do palco, junto à grade da frente da Pista Premium. Tinha também quem não era nem nascido quando o poeta de Manchester irrompeu no cenário musical britânico à frente de sua primeira banda, entre os anos de 1982 e 1987. Mas o Morrissey que subiu ao palco era apenas um: a pessoa inspirada e de bem com a vida, desfrutando de novo período de intensa fertilidade criativa, gravando um disco após o outro, fazendo longas turnês no intervalo entre as sessões de estúdio e sem nenhum grande protesto por ora, interessado apenas em fazer aquilo que faz de melhor, que é cantar.

E como canta! Às vésperas de completar 60 anos, Morrissey canta hoje muito mais e melhor do que já cantava, sem abrir mão de estilo, técnica, doçura e interpretação das palavras. Sua performance também está mais tranquila, sem os arroubos de antes, mas ainda intimamente ligada a seus fãs mais histéricos, como aqueles que levam vinis para o ídolo assinar em plena ação no palco (e ele, bem simpático, fez isso!) ou disputam a tapas pedaços das camisas que ele tira do corpo, rasga e arremessa à plateia.

Antes da subida do sexteto ao palco a já tradicional seleção de repertório em audiovisuais feita a dedo pelo próprio vocalista. Desta vez, começou o punk dos Ramones e culminou com o glam de David Bowie em “Rebel Rebel”. Depois foram cem minutos de intenso bom humor e  boa forma de Morrissey. Quem queria um reencontro com faixas dos Smiths ganhou três delas de presente (“William It Was Really Nothing”, “Is It Really So Strange?” e “How Soon Is Now”). Quem queria novidades ficou com outras três do mais recente trabalho, o álbum Low In High School, lançado no final do ano passado (“Spent The Day In Bed”, “Jacky Is Only Happy When She’s Up On a Stage”, “I Wish You Lonely”). Quem queria o resgate de faixas que havia tempos não apareciam no repertório dos shows também pode saborear preciosidades como “Sunny”, “Jack The Ripper”, “Hold On To Your Freinds”, “Break Up The Family e “Hairdresser On Fire”. Teve o novíssimo single ainda inédito em álbum, a cover de “Back On The Chain Gang”, dos Pretenders (aliás, ele pediu aos fãs que comprasse o trabalho de regravações que lançará no início do ano que vem). Quem procurava por raridades também ganhou “Dial-a-Cliché” (do primeiro pós-Smiths, Viva Hate, de 1988, e até a atual turnê latino-americana nunca cantada em shows) e b sidesde compactos como “If You Don’t Like, Don’t Look At Me” e “Munich Air Disaster 1958”. Também teve hitsda primeira fase solo (“Alma Matters”, “November Spawned a Monster”, “Everyday Is Like Sunday). Por fim, uma breve espanada pelos bons trabalhos mais recentes (“Life Is a Pigsty”, “The Bullfighter Dies” e uma inesperado “First Of The Gang To Die” para encerrar o bis e jogar mais uma camisa na direção dos fãs).

Steven Patrick Morrissey incorpora tantos Morrisseys – tanto em seu dia a dia quanto no imaginário de seus fãs e detratores ou ambos ao mesmo tempo – que ele ainda se dá ao luxo de usar no show uma camiseta estampada com seu próprio nome e rosto (daquelas oficiais à venda foi a que se esgotou mais rapidamente, deixando muita gente a ver navios após o show) e por isso mesmo se torna a cada dia ainda mais fascinante. Desta vez ao menos, todos devem ter saído contentes do show. Sem reclamações.

Set list: “William, It Was Really Nothing”, “Alma Matters”, “I Wish You Lonely”, “Is It Really So Strange?”, “Hairdresser On Fire”, “November Spawned a Monster”, “Break Up The Family”, “Back On The Chain Gang”, “Spent The Day In Bed”, “Sunny”, “If You Don’t Like Me, Don’t Look At Me”, “Munich Air Disaster 1958”, “Dial-a-Cliché”, “The Bullfighter Dies”, “How Soon Is Now?”, “Hold On To Your Friends”, “Life Is a Pigsty”. “Jack The Ripper” e “Jacky’s Only Happy When She’s Up On The Stage”. Bis: “Everyday Is Like Sunday” e “First Of The Gang To Die”.