Movies

Cruella

Live action inspirado na clássica animação 101 Dálmatas conta a trajetória da vilã com embates fashionistas e estética punk rock

Texto por Janaina Monteiro

Foto: Disney/Divulgação

Duas Emmas travam um embate fashionista retrô com fundo de vingança e estética punk rock na mais nova versão da vilã Cruella (EUA, 2021 – Disney). Ao contrário do que possa parecer, não há plumas no filme adaptado do clássico 101 Dálmatas, escrito pela britânica Dodie Smith em 1961, exibido nos cinemas abertos mundo pandêmico afora e agora chega à plataforma de streaming Disney+. 

O tecido que envolve a silhueta da trama mescla poliéster e algodão. É sustentável e as peles são sintéticas. Pode-se dizer que Craig Gillespie acertou a mão com sua câmera ágil para costurar a origem de Cruella. A protagonista surge como a garotinha Estella (Tipper Seifert-Cleveland), dona de uma personalidade fragmentada – rebelde e genial – refletida no tom de seus cabelos bicolores. Sua metade preta traz à tona a raiva, o ódio, o desejo de vingança. Sua metade branca revela uma menina inteligente, criativa e, por que não, doce. Essa dualidade pode até significar uma resposta ao debate filosófico entre Rousseau-Hobbes-Locke sobre a natureza humana. Afinal, o ser humano já vem ao mundo egoísta; nasce bom e somos corrompidos pela sociedade; ou chegamos aqui como uma folha em branco, a tal tábula rasa? E a genética, qual sua parcela de “culpa”?

O roteiro evoca esse dilema moral/científico da protagonista –  lembrando por vezes Coringa – durante toda a trama, destacando ora o lado “estelar” da vilã, ora o lado cruel. Na infância, a desajustada Estella/Cruella, que sonha em ser estilista de moda, é expulsa da escola. E não foi por conta do seu Converse All Star, não. Estella aprendeu desde cedo a revidar ofensas, a não deixar quieto e levar desaforo pra casa. 

A mãe da garota decide, então, ir a Londres para tentar uma vida melhor e proporcionar um futuro digno para a filha. Antes, porém, é preciso acertar as contas com a Baronesa (Emma Thompson), a estilista mais arrogante e conceituada da paróquia (chega a ser mais arrogante que a Miranda de O Diabo Veste Prada). Durante a parada, no meio do caminho, Estella é “atropelada” por uma tragédia. 

“Acidentes” mudam a vida, diz a anti-heroína. Da noite para o dia, a garota se vê órfã. Sozinha diante da fonte do Regent’s Park com seu único amigo: um cachorro. Aqui já temos uma diferença na construção da personagem. A vilã assume uma postura, digamos, mais politicamente correta do que aquela interpretada por Glenn Close nos anos 1990, que adorava desfilar com seus casacos de pele de dálmata. 

A história, então, segue seu momento Oliver Twist, quando Estella passa a conviver com dois guris, batedores de carteira, Jasper e Horace. Joel Fry e Paul Walter Hauser entregam boas interpretações, apesar de algumas piadinhas sem graça bem ao estilo inglês (culpa do roteiro). O longa, aliás, é sustentado pela ótima escolha dos coadjuvantes, como John McCrea que interpreta o dono de brechó cuja androginia se inspira em David Bowie. 

Estella e seus amigos vivem de furtos e conseguem sobreviver por conta própria. Mas num salto de dez anos, somos apresentados à protagonista em sua fase adulta. O cabelo bicolor se esconde sob uma peruca ruiva. A nossa anti-heroína usa seu dom para criar modelitos usados nos mais diversos delitos. Quando consegue emprego na boutique mais chique de Londres, sua vida se transforma: vira empregada da todo-poderosa esnobe Baronesa e, aos poucos, à medida que as reviravoltas acontecem, a persona Cruella de Vil vai se manifestando.

Por isso, nada melhor que a estética punk dos anos 1970 para narrar a origem dessa personagem às novas gerações que, se não conheciam Blondie ou Stooges, agora conhecem. Essa é uma das razões, aliás, pelas quais os remakes são feitos: adaptar clássicos à contemporaneidade.

A trilha retrô, assinada pelo premiado Nicholas Britell é repleta de canções das décadas de 1960 e 1970, incluindo Supertramp, Bee Gees, Doors, Nina Simone e, claro, os punks por natureza Clash. A inserção sonora acaba dando a impressão de que as sequências se transformam em videoclipes. Se para os ouvidos parece uma overdose, para os olhos o filme é um deleite. O tom noir (o cartaz de Cruella até lembra Sin City) glamouroso é fascinante especialmente para quem se interessa por moda: o figurino excêntrico, com seus vestidos de cetins e lamês; a maquiagem carregada sobretudo nos batons cor de carne, e os penteados extravagantes são, de fato, impecáveis. É uma organza total!

Emma Stone está de parabéns ao incorporar sua personagem estilosa que referencia Vivienne Westwood (a estilista do punk!). A atriz não precisa botar um ovo na boca para inventar seu sotaque britânico e consegue a proeza de pilotar uma motocicleta com salto 12. Genuinamente inglesa, Emma Thompson também brinda o espectador com uma antagonista que há muito tempo estava nos seus planos interpretar. As duas Emmas deverão ainda se reencontrar num futuro não muito distante. Bem ao estilo Marvel, o final dos créditos sugere uma nova adaptação de 101 Dálmatas em formato live action. Mais um spin off à vista!

Series, TV

O Gambito da Rainha

Minissérie faz jus ao hype com dinamismo e uma cativante adolescente órfa que ganha o mundo através do tabuleiro do xadrez

Texto por Ana Clara Braga

Foto: Netflix/Divulgação 

À primeira vista, O Gambito da Rainha (The Queen’s Gambit, EUA, 2020 – Netflix) pode não parecer ter o potencial de um hit. O trailer, mais focado em uma frase dita ao longo da série sobre machismo do que no enredo em si, engana. A produção da Netflix é uma surpresa positiva e se tornou a série limitada a mais assistida da história do streaming. O hype é justificável. O xadrez ganha vida nos sete episódios baseados no livro de mesmo nome de Walter Tevis. 

Beth Harmon (Anya Taylor-Joy) é levada para um orfanato após um grave acidente. Lá ela desenvolve a paixão pelo xadrez e um vício em calmantes. Ambos serão formativos para os próximos anos da jovem. Após ser adotada, Beth passa a ter como maior exemplo uma mãe amorosa, porém alcoólatra. Tomando seu primeiro drinque antes mesmo da maioridade, a menina não consegue escapar do abuso de substâncias. 

Ambientada na década de 1960, a série já ganhou pontos pelos acertos no setor de cabelo e maquiagem e pelo design de produção. O xadrez, obviamente, é o principal, mas é surpreendente como temas como identificação, família, saúde mental e solidão percorrem a história. A relação entre Beth e sua mãe adotiva (Marielle Heller, com quem Anya já havia trabalhado no longa-metragem Emma) é construída aos poucos, com a ajuda do xadrez e torna-se um dos elementos mais interessantes de assistir. A dinâmica, as conversas, as trocas de experiência são fascinantes. São duas mulheres que compartilham o amor e o vício. 

Para quem não é praticante, o xadrez pode ser um jogo chato, parado. A série encontra recursos de filmagem e montagem satisfatórios para quebrar a monotonia das partidas. Em alguns jogos, os diálogos quebram ou aumentam ainda mais a tensão. Ao longo da série, Beth enfrenta apenas uma jogadora mulher e todos os seus outros oponentes são homens. A atmosfera de “Clube do Bolinha” do esporte perdura até os dias de hoje. Enxadristas mulheres se manifestaram após a série estrear, afirmando que ainda são minoria e os desafios que Beth Harmon passou para ser aceita continuam atuais.

Anya Taylor-Joy é uma das melhores atrizes a surgir nos últimos anos. Ela, que já mostrou talento no horror em longas como Fragmentado e A Bruxa, em O Gambito da Rainha dá vida a uma complexa personagem que em muitos momentos fala mais pelo olhar. O tema do vício é delicado e a minissérie mostra responsabilidade ao retratá-lo, especialmente nos momentos mais críticos. 

O Gambito da Rainha tornou-se um fenômeno nessess últimos meses. É bem construído e não precisa forçar para engajar. O sucesso também é resultado de uma série de tentativas. Antes do contrato com a Netflix, já tentaram adaptar a história nove vezes – em 2008, o produtor Allan Scott queria que Heath Ledger fosse o diretor do então filme baseado no livro.

Em um ano tão atípico como 2020, uma série que dá destaque ao xadrez ganhou os holofotes e a produção fez jus ao seu hype. Logo de cara, afinal, é impossível largar da história de Beth Harmon, uma cativante menina órfã que encontra o vício, uma mãe e a redenção pelo esporte.