Music

Exodus

Oito motivos para não perder o show pelo do grupo americano que criou e consolidou o thrash metal ao lado de Anthrax, Slayer, Megadeth e Metallica

Texto por Daniela Farah

Foto: Tayva Martinez/Divulgação

Comecinho dos anos 1980. Se de um lado os britânicos jorravam bandas para uma nova onda no oceano de camisetas pretas, a tal da new wave of the british heavy metal, na costa oeste americana um bando de garotos empunhavam a bandeira de uma ousada e agressiva vertente metaleira. A mistura era de elementos como a velocidade e a potência do Motörhead, a atitude furiosa dos Sex Pistols e a complexidade de contemporâneos vindos do outro lado do Atlântico, tais quais o Iron Maiden e o Judas Priest. Assim, moleques que atendiam pela alcunha grupal de Metallica, Megadeth, Slayer, Anthrax e Exodus comandavam uma guinada radicalmente oposta a tudo o que apontava para uma bem sucedida popularização (financeira, claro!) dos sons pesados.

Este último é uma das atrações da edição 2024 do festival Summer Breeze Brasil, marcado para São Paulo entre 26 e 28 de abril (clique aqui para ler tudo sobre o evento). Antes, porém, o Exodus dá uma breve passadinha em outras duas capitais, tocando pela quinta vez em Curitiba no dia 22 (mais informações sobre local, horário e ingressos você tem clicando aqui) e chegando no dia 24 ao principal celeiro thrash nacional, Belo Horizonte (mais informações sobre local, horário e ingressos você tem clicando aqui). A atração de abertura é a Eskröta, banda do interior paulista (com formação dividida entre as cidades de Rio Claro e São Carlos) que vem ganhando destaque na cena com suas letras sobre resistência, feminismo e antifascismo.

Mondo Bacana preparou oito motivos pelos quais você não pode deixar de ver em ação a uma das referências máximas vindas da música de peso made in Califórnia.

Bay Area

Havia algo na água da baía de São Francisco, disso ninguém duvida. Exodus, Metallica, Slayer, Anthrax, Megadeth, Testament, são todos da mesma área e revolucionaram a música nos anos 1980. A facilidade do mundo do streaming permite que com um clique você escute ou até veja algum show dessas lendas. Mas nada se compara a participar de um concerto! Uma das belezas de ser audiência em uma noite é fazer parte daquele momento, in loco. E se você não pode beber a água direto da baía de São Francisco, o Exodus a traz na porta de casa.

Good, Friendly, Violent, Fun

Apesar de uma imensa discussão pairar sobre a primeira onda do thrash metal (quem a criou e quem fazia parte dela), é fato que Kill’ Em All, début do Metallica em 1983, é considerado o marco oficial. O Exodus também entra nessa “briga, já que a banda teve seu embrião formado anos antes, em 1979, por Kirk Hammett guitarra) e Tom Hunting (bateria). Ele só não entra no tão temido big four porque seu álbum só foi lançado em 1985, mediante uma estratégia da gravadora, que preferiu esperar até que o thrash estivesse consolidado. Segundo o guitarrista Gary Holt, integrante desde 1982, o lema do Exodus é Good, Friendly, Violent, Fun (ou, em tradução para a língua portuguesa, Bom, Cordial, VIolento, Engraçado). Em 1991 eles transformaram o slogan no título do primeiro álbum gravado ao vivo.

Gary Holt

Ele era apenas um roadie quando começou a se envolver com o Exodus. Aprendeu guitarra com Kirk Hammett (há tempos no Metallica) e na primeira oportunidade que surgiu, com a saída de Tim Agnello, veio para a banda em 1982. Holt não só passou a fazer parte, mas ele também se tornou a mente criativa por trás dos trabalhos autorais do Exodus, que começaram um ano antes. Mostrando que de poser ele nunca teve nada, Gary vive a cena até hoje, inclusive ouvindo novas bandas que surgem, apesar de se considerar um “vovô metal”. O guitarrista também tocou no Slayer, quando substituiu Jeff Hanneman, que contraíra fasceíte necrosante, segundo ele, por uma picada de aranha. A substituição seria coisa rápida, mas durou 10 anos (!!!). Tudo isso faz de Gary Holt uma lenda viva da primeira onda thrash.

Tom Hunting

O baterista foi um dos fundadores oficiais do Exodus. Ele tocou nos álbuns Bonded By Blood (1985), Pleasures Of The Flesh (1987) e Fabulous Disaster (1989), antes de sair por motivos de saúde e ser substituído por John Tempesta – nisso, ele foi e voltou algumas vezes. Tom se destaca como um componente essencial da paisagem sonora do Exodus, por sua precisão, velocidade implacável e volume ensurdecedor. Curou-se de um câncer recentemente e tem comemorado sua vitória tocando para os fãs. A verdade é que não dá pra perder de um músico desse naipe.

Bonded By Blood

Lançado em 1985, foi eleito um dos melhores álbuns de metal do mundo. Como o Exodus era uma banda muito conhecida pelos seus shows na época, o primeiro disco não foi novidade – e ainda reza a lenda que muita gente já tinha uma cópia pirata dele. Hoje a obra se tornou histórica, não pode faltar na coleção de qualquer thrasher que se preze (a não ser que seja um poser!). O melhor é que a faixa-título junto sempre aparece nos set lists, ao lado da clássica aula “A Lesson in Violence”.

“Toxic Waltz”

A faixa faz parte de Fabulous Disaster, segundo álbum do Exodus, lançado em 1989. Quando a compôs, Gary Holt queria uma música que representasse “o que os fãs fazem nos shows”. “Aqui está uma nova dança maníaca que está varrendo a nação/ Chama-se valsa tóxica e está causando devastação”. O responsável pela letra foi o vocalista Steve “Zetro” Souza (que também vem agora ao Brasil) e ele quis fazer uma brincadeira, uma paródia com essa coisa das bandas dos anos 1960 venderem novas modas na época. Mas Gary adorou isso e o público também! Então, ela se tornou uma música que o Exodus não pode ficar sem tocar ao vivo.

Persona Non Grata

Saindo de um hiato de sete anos, Exodus lançou recentemente finalmente um novo álbum, para a alegria dos seus fãs. Persona Non Grata chegou ao público em 19 de novembro de 2021 e a banda mostrou que ainda tem muita lenha para queimar em seu décimo primeiro álbum. “Prescribing Horror”, “The Beatings Will Continue (Until Morale Improves)”, e “R.E.M.F.” vem sendo executadas nos últimos set lists da turnê. Qual delas chega por aqui?

Summer Breeze Brasil

Uma das razões para o Exodus vir novamente ao Brasil é porque o grupo faz parte do line up da versão tupiniquim do famoso festival alemão. O evento será realizado no próximo fim de semana em São Paulo, mas algumas bandas resolveram agradar aos fãs e agendaram outros shows no país. Assim, Curitiba e Belo Horizonte foram as locações escolhidas para esse show “solo” tão especial. Será a quinta passagem pela capital paranaense, o que mostra um grande apreço do Exodus pelo seu público daqui. E BH, bem… dá para dizer que lá foi o grande celeiro de bandas brasileiras adeptas do thrash metal, por causa do selo Cogumelo e do início fonográfico arrasador do Sepultura.

Movies

A Baleia

Darren Aronofosky volta a incomodar com um espetacular Brendan Fraser como um professor em desenfreada busca pela não existência

Texto por Taís Zago

Foto: Califórnia Filmes/Divulgação

Samuel D. Hunter escreveu A Baleia tendo sua própria vida e trajetória como inspiração. Nascido em Moscow, Idaho, ele foi compelido a se assumir gay já na adolescência, sofreu com a homofobia provinciana e suas mazelas emocionais refletiram em um ganho rápido de peso durante os anos de universidade. Então, Samuel cria em A Baleia um “e se…” caso ele tivesse continuado o caminho que estava posto diante de si. Darren Aronofsky assistiu à peça em uma de suas muitas apresentações e rapidamente vislumbrou no roteiro material rico para um longa-metragem.

Para os que estão familiarizados com a obra cinematográfica de Aronofsky não é segredo algum que o diretor, roteirista e produtor se expressa, não raramente, usando os extremos dos comportamentos humanos. Ora aborda o vício em drogas em obras como A Vida Não É Um Sonho (2000), ora as profundezas da alma humana como em Cisne Negro (2010). Também não é raro em seu oeuvre uma jornada de modificação corporal baseada na busca de aceitação e fama que acaba por deteriorar lentamente seus personagens, como em O Lutador (2008). O ponto convergente de sua obra é uma visão desiludida do humano, o que não raramente nos arrasta a lugares incômodos e quase insuportáveis dentro de nossas cabeças.

Em A Baleia (The Whale, Estados Unidos, 2022 – Califórnia FIlmes), Aronofsky e Hunter trabalharam juntos para transpor dos palcos para o cinema toda a gama de sentimentos de Charlie, interpretado brilhantemente por Brendan Fraser, um homem solitário que vem seguindo um caminho sem volta de deterioração física, emocional e psicológica desde a perda de seu grande amor e companheiro de vida. Charlie é um excelente professor universitário de ensaios literários, ministra suas aulas via EAD, mas nunca permitiu a seus alunos que o vissem pela câmera. Há muito tempo Charlie não sai de casa, não cuida da saúde, não vê muitas pessoas. Uma de suas grandes dores foi o seu afastamento compulsório da filha, na época com 8 anos de idade, por ele ter assumido uma relação homoafetiva com um de seus estudantes. Tudo em Charlie é machucado. Apesar do foco em sua aparência como alegoria para a ruína, a parte mais evidente da tremenda dor que carrega é revelada pelos olhos e pela voz. Ao seu lado, tem a fiel amiga Liz (Hong Chau), uma enfermeira que o acompanha e tenta fazer os seus dias o mais confortável possível sem criticar com clichês e sem esmiuçar os motivos. Liz os conhece bem, mesmo que no fundo ela não queira aceitar o caminho escolhido por ele.

O filme, mesmo antes de ser lançado, gerou uma onda de críticas em relação à patologização da obesidade e do uso das chamadas fat suits (trajes de gordura) que os atores vestem para interpretar pessoas gordas e que muitas vezes já contribuiu para o estigma do grupo com representações em filmes de gosto duvidoso – como O Professor Aloprado (1996), com Eddie Murphy interpretando diversos personagens usando fat suits como uma característica depreciativa, ou em comédias românticas como O Amor É Cego (2001) com Gwyneth Paltrow, onde, bem, o titulo em português é autoexplicativo. Não foram raras as alegações de crueldade e de voyeurismo da obesidade. Aronofsky não é famoso pela sobriedade de suas representações. Ele procura sempre o limite, o que, às vezes, pode beirar uma caricatura de mau gosto. Tanto que A Baleia foi classificada como uma espécie de fat horror por uma ala da crítica. 

Sabendo isso de antemão, apelei para um artifício ao assistir A Baleia – reduzi a luminosidade da minha tela, diminuindo assim a importância e o impacto da apelação visual e concentrando apenas nas vozes, e, algumas vezes, nos olhares. E só pude chegar a uma única conclusão: Brendan Fraser é espetacular. Desconectando a caracterização, o que nos resta é uma alma partida de alguém que perdeu completamente o interesse de continuar vivendo. O que sentimos é um ser humano em rota de colisão irremediável e desesperançada. E nesse caminho pouco importa o figurino, a maquiagem ou o método escolhido para se alcançar o objetivo, quer seja ele por meio de drogas, comida, ausência de comida, sexo ou qualquer outra forma de se obter o resultado desejado – a não existência.

A dor de Charlie é profunda demais para ser remediada. O luto diário que mantém pelo seu amor perdido de forma violenta é insuperável, a ausência da filha e a culpa que o ronda de forma repetitiva o oprimem. Charlie tanto ruminou suas dores que se entregou a elas. O ponto de retorno já foi há muito abandonado. A depressão retirou a luz quase que completamente de sua rotina. E é exatamente nessa reta final de sua jornada que ele faz um último esforço desesperado para reatar o contato com sua filha Ellie (Sadie Sink), uma adolescente, que segundo as palavras da própria mãe (Samantha Morton, em aparição relâmpago) é simplesmente uma menina má. Charlie se nega a acreditar nisso. Mesmo em toda a escuridão em que vive, ele ainda nutre a esperança na luz de Ellie. Da mesma forma acolhe Thomas (Ty Simpkins), jovem que escolheu pregar a palavra de Deus como sendo a forma irrefutável da salvação humana.

A Baleia, em parte por ser uma dramaturgia adaptada do teatro, é encenada com poucos personagens, tendo como única locação a casa de Charlie e, na maioria das cenas, apenas sua sala de estar. A fotografia é escura em quase sua totalidade, em parte para cooperar com os esforços de tornar a caracterização física mais verídica, mas também como alegoria da profunda depressão do protagonista. A música segue o mesmo caminho, assim como a edição. Tudo nos conduz para a melancolia e para a desesperança. Aronofsky sendo Aronofsky, portanto.

A Baleia é uma tragédia humana real sendo arrastada para o macabro, uma câmara de vácuo e ausência de luminosidade, um palco trágico, uma jornada de redenção e purificação por meio do sofrimento e do sacrifício. Poderia não ser assim, como aponta Samuel ao falar de seu roteiro, mas foi. Brendan Fraser recebeu o merecidíssimo Oscar de melhor ator, preenchendo todos os requisitos que Hollywood busca: um protagonista que retorna das cinzas após ser massacrado e abandonado pela indústria cinematográfica; um roteiro tenso, teatral e dramático; e um personagem que requer modificações físicas complexas da parte do ator para ser interpretado.

Movies

Paloma

Longa brasileiro sobre mulher trans que luta por um casamento religioso ganha prêmios mas não deixa de ser desastrado no percurso narrativo

Texto por Leonardo Andreiko 

Foto: Pandora Filmes/Divulgação

Na arte contemporânea, assim como no cinema, o século 21 trouxe consigo uma mudança nos paradigmas que definem o que é a ‘boa arte’ e a ‘arte ruim’. Em linhas gerais, a parte relevante ao discurso não é mais a forma com que ele é estabelecido, mas o tema sobre o qual versa. A arte toma seu lugar no mundo não somente como expressão do sujeito, mas sua expressão sobre algo. 

No cinema, a situação é a mesma, a se demonstrar pelas recentes polêmicas e mudanças de rumo sobre diversidade e inclusão na indústria. Em um cenário em que a vivência de quem está diante e detrás das câmeras é essencial para a compreensão do filme enquanto obra, a autoficção e o retrato de si vêm ganhando corpo e notoriedade. Sobre o que as vozes que nunca tiveram o direito de portar o megafone das artes falarão senão delas mesmas?

Nesse panorama, Paloma (Brasil/Portugal, 2022 – Pandora Filmes) ganha tração como um dos fortes nomes do cinema nacional. Desde sua estreia no Festival de Munique de 2021, o longa sobre uma mulher trans que luta por um casamento religioso foi exibido ao redor do mundo e comemorou os prêmios de Melhor Filme da mostra competitiva e Melhor Atriz do Festival do Rio 2022 para Kika Senna, que interpreta a personagem-título. O destaque, contudo, é que a situação não é tão autoficcional assim.

Inspirado em uma notícia de jornal que dá a premissa já citada, Paloma se constrói narrativamente como uma ficção atenta à realidade, tecendo em si mesmo um comentário sobre o mundo sem fazer do concreto seu objeto de análise. A protagonista é mãe da pequena Jenifer (Anita de Souza Macedo) e vive junto de Zé (Ridson Reis), um pedreiro que não parece embarcar no sonho do casamento com véu e grinalda. Trabalha no campo, tem amigas por lá e mantém forte contato com a comunidade trans de Saloá, cidade no Pernambuco onde vive. Ao apresentar Paloma com profundidade e complexidade, o longa-metragem não comete o erro de simplificar sua protagonista e, com isso, prejudicar a narrativa.

Paloma ama, trabalha, cuida. Mas também erra, e tais erros dão o andar da carruagem à história do filme. Marcelo Gomes, que dirigiu Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), é diretor e corroteirista deste longa (junto de Gustavo Campos e Armando Praça) e aqui opta por meandros entre a narrativa convencional e o estudo de personagem contemporâneo (aquele em que o tema é a lente focal ao mesmo tempo que seu próprio objeto). A decupagem é simplista e as sequências são conduzidas com um ou dois planos e pouco dinamismo clássico, como o jogo de campo/contracampo e planos de contexto (os planos gerais que nos apresentam o espaço da cena). Isso confere à ação um tom muito mais teatral, e ao ritmo do longa um senso de lentidão – embora o marasmo pareça buscar uma atmosfera que incita a reflexão. 

Ainda, na medida em que as cenas se iniciam e terminam no decorrer dos diálogos – o que nos dá a sensação de estarmos sempre atrasados ou saindo muito depressa –, a presença da câmera no espaço é berrante: estamos conscientemente adotando a perspectiva da câmera, o olhar da lente sobre a história. Sua imobilidade faz de si um corpo existente no espaço; a montagem é também realizada nos planos, ações e reações que essa inércia nos tira.

A forma do filme, então, suscita reflexão e, embora apresente problemáticas, não deixa de se fazer parte integral do discurso e demarcar muito bem a autoralidade de Marcelo Gomes, cuja carreira desponta como uma das mais sólidas desses 20 anos. Por outro lado, a narrativa solta do longa-metragem traz consigo outra série de complicações à estrutura do filme.

A partir daqui me debruço sobre a história retratada e, ainda que busque evitar spoilers, a oclusão de seus elementos impossibilitaria a clareza do meu argumento. Então, prossiga com certa atenção se prefere, assim como eu, saber o mínimo possível de um filme antes de vê-lo.

Paloma é um filme desastrado. Seu percurso narrativo é dissonante; ou seja, há relações esparsas entre uma determinada cena e a cena seguinte de modo que, se já empacamos na narrativa por estar sempre fora do tempo (sempre atrasados ou adiantados), a situação piora pela falta de continuidade que aqui se instaura. E embora exista uma preocupação com a premissa (mulher trans deseja casar na igreja), esse não é o principal vetor da história contada.

Destaco alguns exemplos. Logo no começo da trama, quando Paloma verbaliza pela primeira vez para Zé seu desejo de casar-se de véu e grinalda, cita a conexão especial que teve com o padre no casamento de uma amiga. “Olhava para mim, parecia que falava diretamente para mim”. No entanto, há pouco vimos a cerimônia, e o que se filma é a manifestação visual do desejo que viria a se concretizar na fala – Paloma fita o vestido que ajudou a ajustar e transborda em expectativa. 

Ainda, conflitos são estabelecidos ao léu e jamais tensionados. Desde o início, Zé deixa clara sua indisposição em seguir com o casamento. Prefere gastar o dinheiro com uma moto nova e se refere ao casório como “coisa tua”. Em outras palavras, durante todo o filme, Zé não parece querer estar lá. Contudo, o embate desenhado no decorrer do longa só é concretizado no clímax da narrativa; e tão logo se coloca e já é resolvido. 

Por fim, ocorre uma importante morte no andar da trama, mas sua repercussão é displicente e não condiz com os laços construídos pela história. O impacto parece, no fim das contas, nulo. E houve claras oportunidades de referenciá-la, o que tornaria um comentário “por fazer” em uma sólida e forte demonstração da barbárie à qual é submetida a comunidade trans no Brasil, o país que mais mata pessoas transexuais há 13 anos. O exemplo final é uma confusão de intenções, uma traição que se inicia com a tensão de um assédio e termina sem conclusão, um conflito irresolvido para sempre.

Paloma é um lançamento interessante deste ano, com fortes atuações e um esmero formal que se desgarra do panorama contemporâneo sem desgarrar-se completamente. Um mérito, por assim dizer. No entanto, o trato hesitante e embargado de sua história deixa evidente uma tentativa de desgarrar-se da narrativa convencional, novamente, sem fazê-lo completamente. Uma mácula, infelizmente.

Movies

A Crônica Francesa

Wes Anderson agora intercala cores vibrantes com o charme do preto e branco para contar cinco histórias sobre a derradeira edição de uma revista

Texto por Camila Lima

Foto: Fox/Disney/Divulgação

Assistir a um filme novo de Wes Anderson é uma experiência que vem acompanhada de certas expectativas, considerando o estilo tão característico do cineasta. Por exemplo, uma estética estonteante e marcada pela forte presença da simetria e pelo uso meticuloso das cores ou personagens que refletem as mais diversas facetas humanas de forma cômica são coisas que você espera de uma obra do cineasta. E que, definitivamente, volta a encontrar em A Crônica Francesa (The French Dispatch, EUA/Alemanha, 2021 – Fox/Disney). 

A história inicia com a trágica morte do editor-chefe da The French Despatch of the Liberty Kansas Evening Sun, revista estadunidense com sede na fictícia cidade francesa de Ennui-sur-Blasé. Em seu testamento, Arthur Howitzer Jr (Bill Murray) determina o fim da publicação após sua passagem. Com isso, a redação se mobiliza para produzir a última edição. O nome é uma clara referência à New Yorker – o que se evidencia nos créditos finais, com a presença de ilustrações que imitam as clássicas capas da revista nova-iorquina. 

A estética dessa nova empreitada do diretor e roteirista não tem tanto os usuais tons pasteis e aquele visual que lembra uma mistura de art nouveau e ilustração de livro infantil. Este filme é algo que parece ser mais “maduro”, mais sóbrio. Porém, as cores são para dar sensações à narrativa, principalmente com a intercalação entre o charmoso preto e branco e o colorido. Este, uma coisa mais caótica embora meticulosamente calculada com o uso de cores bastante vibrantes e bem saturadas. Já a simetria, outra constante nas obras de Anderson, bate ponto de novo. Outros recursos também se repetem ao longo do filme, como o travelling e os takes parados com elementos em profundidades diferentes do plano

No entanto, o aspecto que talvez mais chame atenção em A Crônica Francesa seja o roteiro, justamente por apresentar maior complexidade do que é visto quando a assinatura é de Wes Anderson. O enredo se subdivide em cinco plots diferentes: o principal, centrado na redação da The French Despatch e na mobilização de seus jornalistas após a morte do editor-chefe, e outras quatro histórias correspondentes a quatro sessões da derradeira edição da revista. Para dar vida a esse jogo dramático, o filme conta com um elenco e tanto: Bill Murray, Owen Wilson, Edward Norton, Adrien Brody e Tilda Swinton (cinco que já trabalharam com o cineasta), mais “novidades” como Timothée Chalamet, Benicio del Toro, Léa Seydoux, Frances McDormand e Jeffrey Wright.

Em seu décimo longa-metragem, o texano galga mais um passo na fantasia cativante que habita seu universo particular, agora estendendo os tentáculos rumo à elegância do mais refinado e cultural país do velho continente. Quem já havia caído de amores por ele em algum ponto antecedente de sua trajetória cinematográfica marcada por pessoas improváveis e situações absurdas terá ainda mais motivos para continuar se encantando com a grife Wes Anderson. Pode ainda não conquistar as principais estatuetas do Oscar. Pode ainda estar longe de arrecadação blockbuster de bilheterias mundiais. Entretanto, suas encantadoras crônicas de uma sociedade divergente são o suficiente para, a cada novo filme, inscrever seu nome na galeria dos grandes da sétima arte deste século 21.

Movies

Um Lindo Dia na Vizinhança

Na pele de um famoso e carismático apresentador de programa infantil da TV americana, Tom Hanks rouba a cena mesmo como coadjuvante

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Texto por Ana Clara Braga

Foto: Sony Pictures/Divulgação

Tom Hanks é conhecido por ser um dos caras mais legais de Hollywood. O papel de Fred Rogers parece ter sido feito sob medida para ele. O apresentador conhecido por seu programa infantil, que deu nome a este filme, não é protagonista da história, mas Hanks e seu carisma criam a sensação de que o filme gira em torno apenas dele.

A história de Um Lindo Dia na Vizinhança (A Beautiful Day In The Neighborhood, China/EUA, 2019 – Sony Pictures), acompanha o cético jornalista Lloyd Vogel (Matthew Rhys) na missão de entrevistar o astro Mr. Rogers. Cheio de conflitos internos, o repórter acaba passando por uma transformação ao conhecer mais a fundo o sempre doce apresentador.

Um Lindo Dia na Vizinhança ganha, (e muito) pela presença de Hanks no elenco. Certeiro, o ator consegue cativar em um personagem de muitas nuances. As conversas entre Lloyd e Rogers são delicadas e humanas, de longe os pontos altos do filme. Destaque especial para quando os dois dividem uma refeição em um restaurante sob olhares curiosos.

O filme apropria-se do cenário do programa infantil para realizar transições e inclusive uma cena de epifania do jornalista. Esse artifício rico traz dinâmica a história, inserindo quem está do outro lado da tela ao mundo colorido e lúdico construído por Mr. Rogers.

Tom Hanks segura o quanto pode, mas a história água com açúcar acaba por perder o embalo por vezes. Quando o ator ganhador do Oscar não está na frente das câmeras, nem sempre dá paral manter o foco. Lloyd não é carismático o suficiente para prender em seus momentos solo. É fácil entender sua raiva e sua dor, mas é mais fácil ainda entendê-la quando Mr. Rogers o auxilia.

Dirigida por Marianne Heller, a história cai em um lugar comum ao render-se a um dramalhão nas partes derradeiras. Claro, é bonito ver o desfecho do protagonista, mas e Mr. Rogers? É possível ver o final feliz de um personagem secundário? O filme, principalmente em sua última cena, atiça a curiosidade de entender mais sobre a vida e os sentimentos de Fred e não de Lloyd. Por isso, Um Lindo Dia na Vizinhança torna-se uma agridoce reflexão sobre a beleza e a complexidade dos sentimentos. Não é culpa do ator escalado para ser o protagonista, mas nesse caso competir com Tom Hanks não foi justo.