Movies, Music

Saudosa Maloca

Inspirado na criação das canções (e em parte da vida) do sambista Adoniran Barbosa, longa acerta ao fugir de uma cinebiografia convencional

Texto por Abonico Smith

Foto: Elo Studios/Divulgação

João Rubinato é uma figura ímpar da música brasileira. Filho de imigrantes italianos, falava muita palavra de modo errado perante a norma culta da língua portuguesa. Também não tinha muita instrução formal. Largou a escola cedo, pois não gostava de estudar e ainda precisava trabalhar desde criança para ajudar a complementar a renda de casa. Mesmo assim, com muita perspicácia, criatividade e talento, criou uma série de canções que se tornaram, com o tempo, pérolas icônicas de qualquer roda de samba que se preze, seja na mesa do botequim ou no palco de um pomposo teatro. Entrou para a história da cultura nacional sob o pseudônimo de Adoniran Barbosa. Não exatamente como o cantor que sempre sonhou ser desde jovem. Mas como compositor de fortes melodias aliadas a letras irresistíveis, com muito humor e verve literária do cotidiano ligado às pessoas à sua volta, quase toda vivida na cidade de São Paulo.

O diretor e roteirista Pedro Soffer Serrano é um dos maiores admiradores da obra de Adoniran. Depois de assinar um curta baseado nas principais músicas  (Dá Licença de Contar, de 2015 – clique aqui para assistir à obra) e um documentário sobre o artista (Adoniran: Meu Nome é João Rubinato, de 2018 – clique aqui para ler a resenha do Mondo Bacana), ele agora chega aos cinemas de todo o país com o terceiro produto desta trilogia, um longa-metragem. Saudosa Maloca (Brasil, 2023 – Elo Studios) não é bem uma biografia do ídolo. Em pouco mais de noventa minutos de história, aliás, bem pouco ou quase nada se mostra em cena da vida pessoal de João. Seu dois casamentos, sua família, sua filha, inclusive sua trajetória artística. Esse negócio de “onde nasceu, como viveu, do que se alimentou, do que morreu” pode caber para o Globo Repórter, mas  não aqui. Serrano opta pelo mesmo esquema do curta e costura um Rubinato já na terceira idade contando histórias para um jovem garçom fã de suas canções.

Quase tudo se passa em flashbacks protagonizado pelo trio formado por João, Joca e Mato Grosso. Com calibrada dose de humor no roteiro, detalhes sobre experiências vividas por estes três amigos que se uniram em uma maloca improvisada em um casebre na região central paulistana lá pelos anos 1950, quando a sensação de transformações definitivas vinha com o estabelecimento da indústria cultural forte e o surgimento de arranha-céus no lugar de simples casas. Todos os três já estão bem crescidos, por volta dos 40 anos de idade e com um grande ponto em comum: o amor pela boemia e pela malandragem de uma época ainda de alto grau de inocência cotidiana, sem o menor tino para o trabalho de modo convencional.

É foi justamente este universo ao redor de Adoniran Barbosa o grande trunfo para o surgimento de canções inesquecíveis como “Conselho de Mulher”, “Iracema”, “No Morro da Casa Verde”, “Um Samba no Bixiga” e “Vila Esperança” ou “Samba Italiano” – isso somente listando algumas criações coadjuvantes dos greatest hits (“Samba do Arnesto”, “Trem das Onze”, “Tiro Ao Álvaro” e “Saudosa Maloca”). Por meio de versos e títulos de suas músicas, bairros (mais centrais ou nem tanto assim) como Brás, Bixiga, Jaçanã e Vila Esprança ganharam popularidade extramunicipal na segunda metade do século 20. Este longa destrincha um pouco de como e porquê as famosas obras acabaram circulando, primeiro pela tradição oral e depois sendo eternizadas por gravações lançadas no mercado fonográfico nacional.

Teria tudo o que é mostrado na tela acontecido realmente? Aliás, em um determinado momento o tal jovem garçom lança no ar uma boa pergunta: teriam mesmo existido os tais de Mato Grosso e Joca que estão nas contações e cantações de Rubinato? A resposta acaba vindo nas entrelinhas e de maneira categórica: pouco importa se sim ou se não. O que vale, afinal, é a exímia destreza de Adoniran Barbosa como um observador e cronista social do dia a dia de uma classe trabalhadora e de baixa renda em uma metrópole ainda se desenhando para o agigantamento desenfreado que ainda pode ser presenciado pelo artista no final de sua vida (ele faleceu em novembro de 1982, aos 72 anos).

Saudosa Maloca conta ainda com um elenco afiado. Repetindo os seus papeis no curta-metragem (que ainda tem algumas breves cenas reprisadas no longa), Paulo Miklos (João), Gero Camilo (Mato Grosso) e Gustavo Machado (Joca) estão deliciosamente impagáveis. Uma trinca capaz de arrancar gargalhadas e competir com os Trapalhões no momento áureo do grupo capitaneado por Renato Aragão logo após a estreia do programa na Rede Globo. Sidney Sampaio (o tal jovem garçom de nome Cícero) e Leilah Moreno (a garçonete Iracema, sempre cortejada pelos dois parças de maloca de Adoniran) reforçam a parte mais dramática do roteiro, ao passo que Paulo Tiefenthaler (o rico Pereira, homem da grana, da influência e do contraponto ao trio de zé ninguéns que andam quase sempre duros e sem comida em casa) e Zemanuel Piñero (o chapa Arnesto, aquele que convidou para um samba que não existiu em sua casa) se mostram brilhante como escada. Diversas vezes eles levantam a bola para Gero, Gustavo e Paulo subirem nas alturas e cortarem com tudo a bola rumo ao chão e marcarem diversos pontos.

Quem já é iniciado no fantástico mundo dos versos escritos por Adoniran Barbosa vai se deliciar com este longa-metragem repleto de inesquecíveis frases acidamente filosóficas pronunciadas pelo protagonista. Quem ainda não conhece ou pouco sabe de João Rubinato tem a grande chance de se apaixonar e virar fã de vez dele.

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Trilha sonora: Last Night In Soho

Oito motivos para se deliciar com o fantástico mergulho na Swinging London feito pelo diretor e roteirista Edgar Wright em seu novo filme

Texto por Abonico Smith

Foto: Universal Pictures/Divulgação

Para saber que o diretor e roteirista Edgar Wright é um fã assumido de cultura pop basta ver todos os easter eggs espalhados pelos filmes. Contudo, sua predileção pela (boa) música jovem das últimas décadas vem ganhando cada vez mais destaque em seus títulos mais recentes.

Em 2010, para contar a história de um jovem baixista de uma banda underground apaixonado por uma misteriosa garota de cabelos coloridos, ele contou com a ajuda de Beck para construir boa parte da trilha rock’n’roll original de Scott Pilgrim Contra o Mundo (no original, Scott Pilgrim vs The World), além de incluir obras de Rolling Stones, Metric, Black Lips, T-Rex, Plumtree, Beachwood Sparks e Frank Black.

Sete anos depois, em Baby Driver – Em Ritmo de Fuga, o intrépido teenager com habilidade especial no volante ouve tão paciente quanto hiperativamente Jon Spencer Blues Xplosion no heaphone enquanto espera o resto da gangue criminosa que integra terminar o assalto a um banco para pisar no acelerador e escapar de modo espetacular da perseguição de vários carros da polícia. Depois, por meio de nomes como Blur, Queen, Martha and The Vandellas, Damned, Alexis Korner, Incredible Bongo Band, Sam & Dave, Beach Boys e Jonathan Richman & The Modern Lovers, o espectador percebe que personagem, que ganhou um problema de tinnitus ao escapar com vida de um acidente automobilístico que matou seus pais, encontra catarse na música conectada diretamente aos ouvidos. Para o mesmo filme, os DJs e produtores de música eletrônica Kid Koala e Danger Mouse fizeram faixas inéditas.

Agora Wright mergulha na Swinging London em Noite Passada em Soho (Last Night In Soho, 2021) para traçar a história de sonho, ambição, fantasia e alucinações de uma jovem interiorana apaixonada pelo estilo e pelas canções pop da Inglaterra dos anos 1960 que acaba de chegar a Londres para fazer a tão sonhada universidade de moda. Há um foco bem maior nas cantoras pop que fizeram história com graciosidade e hits singelos, bem verdade. Mas ele também abre espaço para bandas – umas muito conhecidas até hoje, outras com fama não tão duradoura e reduzida geograficamente à ilha da Rainha Elizabeth – e representantes masculinos em vozes e talento instrumental. Em comum a todas as inclusões, o fato de serem pérolas musicais que, de uma forma ou de outra, acabam por se encaixar na narrativa das trajetórias das duas personagens principais da trama – a adolescente Ellie e a não menos sonhadora – e um pouco mais velha – Sandie, interpretadas respectivamente pelas atrizes Thomasin McKenzie e Anya Taylor-Joy.

Mondo Bacana dá oito motivos para você não deixar de se encantar pela trilha sonora de Last Night In Soho e, mais, procurar ouvi-la além do filme e conhecer um pouco mais de detalhes que acabaram contando um pouquinho da história da música pop sixtie britânica – uma época em que viabilidade comercial combinava perfeitamente com refinamento harmônico, sofisticação instrumental e, claro, muito, muito glamour. Na lista abaixo cabem só oito citações, mas aqui também ficam menções honrosas para outros artistas que também fazem parte do filme e do disco. São eles Searchers, Walker Brothers, Graham Bond Organisation, R. Dean Taylor, James Ray (com a gravação original de “Got My Mind Set On You”, petardo que 25 anos depois estouraria nas paradas na carreira solo de George Harrison) mais os megarreverenciados Dusty Springfield, Who e Siouxsie & The Banshees (“Happy House”, de 1981, é a única peça temporalmente deslocada aqui, mas que mesmo assim não deixar de ser empolgante).

>> Clique aqui para ler a crítica do filme Noite Passada em Soho

“A World Without Love” (Peter and Gordon)

Os Beatles dominaram o mundo com vários hits número um, mas só uma canção com a assinatura Lennon-McCartney chegou ao topo sem ter sido gravada pelo quarteto de Liverpool. Paul, o verdadeiro autor da composição, não a considerava “a altura do repertório do grupo” e, então, entregou-a de bandeja para Peter Asher gravá-la no primeiro single da dupla formada com o amigo escocês Gordon Waller. O baixista começou a namorar a atriz adolescente Jane Asher em 1963 e, quando os Fab Four mudaram-se para Londres, lá foi ele morar na casa dela, dividindo o quarto com o cunhado de cara de nerd e vasta franja ruiva. Os versos de, tão românticos quanto ingênuos, nem chamam muito atenção se comparados ao feliz casamento entre melodia açucarada, refinada harmonia pop e, sobretudo, ao agradável jogo entre primeira e segunda voz de Peter and Gordon. Em Last Night In Soho, Wright usa o hit para dar sequência à sua marca autoral de cenas memoráveis de aberturas de filmes. Aqui o público é imediatamente apresentado ao mundo de amores e sonhos adolescentes de Ellie Turner. Enquanto a música toca e o espectador enxerga objetos de seu mundinho particular (vitrola vintage, compactos em vinil dos anos 1960, pôster do filme Bonequinha de Luxo, moda retrô), ela flutua em uma coreografia até arranhar acidentalmente a agulha no disco ao se deparar com a visão da falecida mãe no espelho.

“Beat Girl” (John Barry Orchestra)

Houve um tempo, antes de o mundo conhecer o rock’n’roll tal qual uma evolução do rhythm’n’blues combinada com pitadas de country’n’western, que quem incendiava os salões de dança eram grandes orquestras com um pé e meio no jazz e melodias lideradas por um naipe de sopros. Já com a febre adolescente em curso a partir de meados dos anos 1950, o trumpetista britânico John Barry deu um passo além. Montou seu septeto, colocou uma virtuosa guitarra twangy executada por Vic Flick à frente dos arranjos, e passou a fazer fama com sua pequena “orquestra”. Em 1959, em menos de dois minutos e logo em sua primeira empreitada casada à sétima arte, gravou “Beat Girl” para a festiva cena de abertura do filme inglês de mesmo nome, feito com orçamento barato para ir na cola da exploração do sucesso alcançado por Hollywood com seus filmes sobre jovens, diversão e muito rock. O sucesso foi tanto que esta foi a primeira trilha sonora britânica a ser lançada em disco e ainda garantiu uma convocação feita pelo produtor Alberto Broccoli para registrar com seu grupo o tema principal de um filme que trazia um misto de galã e espião em missões secretas cheias de aventura pelo mundo e sedução de mulheres. Com o mesmo Flick à frente, Barry eternizou o tema principal de James Bond, que, curiosamente, não fora composto por ele, mas sim por um ex-crooner de big bands chamado Monty Norman. Depois de assinar a trilha dos longas de 007 até 1967, Barry lançou-se em uma bem-sucedida carreira musical nas grandes telas, chegando a receber vários prêmios como Oscar, Grammy e Globo de Ouro por soundtracks de filmes como Entre Dois Amores (1985) e Dança com Lobos (1990). Em Last Night in Soho, enquanto Ellie passeia pelas ruas com seus novos amigos de república estudantil fica impossível não reconhecer o poderoso riff da guitarra de Flick, resgatado de volta ao sucesso graças ao sample feito pelo DJ Fatboy Slim em seu principal hit do fim dos anos 1990, o big beat “The Rockafeller Skank”.

“Starstruck” (Kinks)

Se lá pelos nineties um levante de bandas inglesas solidificou a bandeira do britpop cantando sobre a vida e os hábitos comuns dos habitantes da ilha governada pela Rainha Elizabeth, isso se deveu à existência do Kinks e o direcionamento conceitual de seus álbuns na segunda metade dos anos 1960. Através das canções cantadas e compostas por Ray Davies, sempre na companhia de seu irmão Dave. À frente do grupo, Ray rabiscou uma série de crônicas musicais que podem não ter acompanhado as altíssimas vendagens de seus conterrâneos daquele momento mas, ao menos, garantiram uma sólida reputação através de gerações de futuros seguidores. Edgar Wright sempre foi fã declarado dos Kinks. Em Last Night In Soho, ele ilustra todo o fascínio da jovem interiorana Ellie logo após a sua chegada a Londres para cursar a tão sonhada faculdade de moda na capital. Esta não é a primeira vez que o diretor e roteirista recorre ao som dos irmãos Davies – em 2007, ele já havia pegado outras duas faixas do mesmo álbum na trilha sonora de Chumbo Grosso. O disco em questão é o aclamado The Kinks Are The Village Green Conservation Society, de 1968, composto por pequenas operetas pop transbordando de sátira e fina ironia em suas letras. O sentido dado por Ray nesta música cabe como uma luva para contar a história da fascinada Eloise no momento em que ela se afasta das raízes familiares na Cornuália para ser absorvida de corpo, alma, sonhos e inspiração pela cultura sempre viva e pulsante da Swinging London.

“Puppet On A String” (Sandie Shaw)

Obra escolhida pelo Reino Unido para representa-lo no festival Eurovision de 1967, foi a responsável pela coroação da carreira ascendente de uma mais populares cantoras do pop britânico dos anos 1960. Sandie Shaw, contudo, sempre odiou a canção que teve de defender por questões contratuais – e nunca foi pelo cafonice extrema do arranjo de bandinha germânica das oktoberfests da vida. Os versos machistas – que acabariam por vencer aquela edição – são uma explícita glorificação da submissão aceita de forma pacata e até alegre pela mulher em um relacionamento abusivo com um cara que insiste em manipulá-la feito uma marionete, sem qualquer pudor. Não por acaso Wright encaixou a música com perfeição na narrativa de Last Night In Soho. Na voz da própria Anya Taylor-Joy, sua personagem (batizada com o mesmo apelido da cantora, por sinal) utiliza a música para tentar alavancar a carreira no meio musical sob a tutela implacável de seu amante/empresário/cafetão Jack – inclusive fazendo a performance de uma boneca-gigante movida por cordas. Sandie ainda tem uma segunda canção, “(There’s) Always Something There To Remind Me”, incluída nessa trilha do filme.

“Eloise” (Barry Ryan)

Depois que Brian Wilson abriu a porteira da barroquice instrumental em Pet Sounds, ficou bem fácil explorar todos os limites nos arranjos de música pop. Dois anos depois, em 1968, Barry Ryan emplacou este épico de cinco minutos e meio com direito a versos melodramáticos, fortes pontuações a cargo de um naipe de metais, arranjo para cordas, modulação de uma estrofe para a seguinte, interlúdio com diminuição da intensidade para depois levar ao clímax com nova explosão, uso de treze acordes na harmonia inteira e uma performance vocal com direito a agudos e melismas dignos de levar multidões à loucura em arenas. A composição operística, assinada pelo seu irmão gêmeo Paul, é considerada uma das principais influências de um pré-adolescente Freddie Mercury para tentar a sorte na carreira musical. Em Last Night In Soho, ela aparece já no final, tocada pela jukebox quando a protagonista desce as escadas para adentrar em um pub subterrâneo e se encontrar com o misterioso homem que parece persegui-la pelas ruas (e que interage com a letra e a gravação original de Ryan). É o momento da deixa para Wright fazer a conexão com o batismo da personagem e explicar um pouco de sua conturbada história vivida ao chegar na grande cidade. Ah, o clipe feito para o lançamento da faixa naquela época, é digno de nota, com direito ao cantor contracenando com sua musa tanto sob as luzes da vida noturna londrina quanto em uma praia deserta, com direito a coadjuvância de um par de cavalos e outro de cavalos, ambos brancos. Mais grandioso e exagerado (e kitsch) impossível.

“You’re My World” (Cilla Black)

Queridinha dos mods e de Morrissey, Cilla tem seus dois grandes hits de 1964  incluídos na trilha sonora de Last In Night In Soho. “Anyone Who Had A Heart”, clássico da dupla de compositores Hal David e Burt Bacharach, está como fundo de uma conversa elucidativa entre Ellie e a senhora que aluga a ela um quarto em Londres. Já “You’re My World” (versão em inglês de um sucesso composto originalmente na língua italiana) aparece duas vezes no filme. Uma logo no início, na voz estilosa de Cilla e com poderoso arranjo orquestral, quando a jovem estudante aparece pela primeira vez imersa nos anos 1960 que ela tanto idolatra. Mais para o final, já na voz de Taylor-Joy, a letra se encaixa na ilustração sonora da trama de uma outra maneira: por meio da assustadora relação entre os versos que fazem a paixão se confundir com obsessão (e que, não por acaso, guardam semelhança em demasia com o que Sting escreveu em “Every Breath I Take”).

“Downtown” (Petula Clark)

Pérola indiscutível do pop orquestral britânico dos anos 1960, “Downtown” é uma grande celebração de uma intensa vida jovem, que pulsa em lugares badalados e que nunca fecham, sempre cheios de gente, com muita música ao vivo, filmes exibidos nos cinemas, o colorido do neon nos letreiros comerciais e o som que vem dos carros no congestionamento. Gravada em 1964 por Petula Clark, a faixa rapidamente chegou ao primeiro lugar das paradas dos Estados Unidos e até hoje volta e meia aparece em trilhas sonoras de filmes e seriados. Depois de incluída em SeinfeldGarota, Interrompida e Lost, é a vez de ser citada em Last Night In Soho. São duas as ocasiões e ambas na voz de Taylor-Joy: primeiro, a capella, quando Sandie aparece em uma audição para uma vaga de cantora. Depois, bem perto do encerramento, num remix com base mais eletrônica.

“Last Night In Soho” (Dave Dee, Dozy, Beaky, Mick & Tich)

Não, não é a escalação de cinco jogadores da defesa retranqueira de um time que joga feito ferrolho para evitar tomar um gol sequer do Flamengo hoje em dia. Por incrível que pareça, Dave Dee, Dozy, Beaky, Mick & Tich este é o nome de uma banda britânica ativa entre 1966 e 1970, quando lançou cinco álbuns. Esta faixa de sucesso gravada durante o auge, em 1968, celebra sem meias palavras a vida noturna e a badalação jovem que sempre estiveram presente nos dias e noites do Soho londrino. Os versos pegam direto na veia beat do quinteto, que não faria feio se incluída na trilha de clássicos do cinema psicodélico americano como Easy Rider e The Trip. Falam de um outsider que cai na tentação de trocar momentos quentes ao lado da namorada pela companhia de amigos em uma noitada. Escalada estrategicamente para a hora dos créditos do filme que lhe empresta o título.

Movies

A Crônica Francesa

Wes Anderson agora intercala cores vibrantes com o charme do preto e branco para contar cinco histórias sobre a derradeira edição de uma revista

Texto por Camila Lima

Foto: Fox/Disney/Divulgação

Assistir a um filme novo de Wes Anderson é uma experiência que vem acompanhada de certas expectativas, considerando o estilo tão característico do cineasta. Por exemplo, uma estética estonteante e marcada pela forte presença da simetria e pelo uso meticuloso das cores ou personagens que refletem as mais diversas facetas humanas de forma cômica são coisas que você espera de uma obra do cineasta. E que, definitivamente, volta a encontrar em A Crônica Francesa (The French Dispatch, EUA/Alemanha, 2021 – Fox/Disney). 

A história inicia com a trágica morte do editor-chefe da The French Despatch of the Liberty Kansas Evening Sun, revista estadunidense com sede na fictícia cidade francesa de Ennui-sur-Blasé. Em seu testamento, Arthur Howitzer Jr (Bill Murray) determina o fim da publicação após sua passagem. Com isso, a redação se mobiliza para produzir a última edição. O nome é uma clara referência à New Yorker – o que se evidencia nos créditos finais, com a presença de ilustrações que imitam as clássicas capas da revista nova-iorquina. 

A estética dessa nova empreitada do diretor e roteirista não tem tanto os usuais tons pasteis e aquele visual que lembra uma mistura de art nouveau e ilustração de livro infantil. Este filme é algo que parece ser mais “maduro”, mais sóbrio. Porém, as cores são para dar sensações à narrativa, principalmente com a intercalação entre o charmoso preto e branco e o colorido. Este, uma coisa mais caótica embora meticulosamente calculada com o uso de cores bastante vibrantes e bem saturadas. Já a simetria, outra constante nas obras de Anderson, bate ponto de novo. Outros recursos também se repetem ao longo do filme, como o travelling e os takes parados com elementos em profundidades diferentes do plano

No entanto, o aspecto que talvez mais chame atenção em A Crônica Francesa seja o roteiro, justamente por apresentar maior complexidade do que é visto quando a assinatura é de Wes Anderson. O enredo se subdivide em cinco plots diferentes: o principal, centrado na redação da The French Despatch e na mobilização de seus jornalistas após a morte do editor-chefe, e outras quatro histórias correspondentes a quatro sessões da derradeira edição da revista. Para dar vida a esse jogo dramático, o filme conta com um elenco e tanto: Bill Murray, Owen Wilson, Edward Norton, Adrien Brody e Tilda Swinton (cinco que já trabalharam com o cineasta), mais “novidades” como Timothée Chalamet, Benicio del Toro, Léa Seydoux, Frances McDormand e Jeffrey Wright.

Em seu décimo longa-metragem, o texano galga mais um passo na fantasia cativante que habita seu universo particular, agora estendendo os tentáculos rumo à elegância do mais refinado e cultural país do velho continente. Quem já havia caído de amores por ele em algum ponto antecedente de sua trajetória cinematográfica marcada por pessoas improváveis e situações absurdas terá ainda mais motivos para continuar se encantando com a grife Wes Anderson. Pode ainda não conquistar as principais estatuetas do Oscar. Pode ainda estar longe de arrecadação blockbuster de bilheterias mundiais. Entretanto, suas encantadoras crônicas de uma sociedade divergente são o suficiente para, a cada novo filme, inscrever seu nome na galeria dos grandes da sétima arte deste século 21.

Music

Vanguart

Quarteto faz sua homenagem ao ídolo Bob Dylan em álbum-tributo que reúne muitas faixas de sua fase áurea nos anos 1960 e 1970

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Texto por Janaina Monteiro

Foto: Juan Pablo Mapeto/Divulgação

Bob Dylan é um gênio com suas crônicas e poesias rimadas e musicadas no gênero folk. Por conta de sua complexidade e riqueza artística incomparável, ouvidos menos treinados sempre encontrarão certa dificuldade em absorver sua arte. A voz rouca e o timbre anasalado do cantor e compositor norte-americano podem soar um tanto enjoativo para alguns e as canções quase intermináveis são compridas demais para cativar a atenção das novas gerações acostumadas com a fluidez das coisas. Acompanhar “Hurricane” do começo ao fim, por exemplo, exige uma dose extra de paciência.

Por isso, o recém-lançado álbum do Vanguart é um alento para quem gosta de Bob Dylan. Com uma roupagem despretensiosa e leve, Vanguart Sings Dylan (DeckDisc) é perfeito para se ouvir numa manhã de domingo ou durante uma loooonga viagem ao lado de uma agradável companhia, o que renderá um bom papo cabeça durante o percurso.

A bem da verdade as versões não são tão vanguardistas e seguem à risca o jeito Dylan de ser. Há covers que de tão fiéis às originais ficam quase impossíveis de se distinguir até surgir o vocal. Como “Hurricane” (que conta a história da prisão indevida do boxeador Rubin “Hurricane” Carter) interpretada pelo guitarrista David Dafré (que recebeu esse fardo por saber a letra com 880 palavras de cor).

A banda do vocalista Helio Flanders pode até resistir em inovar nos covers até mesmo para não macular a obra do bardo, mas nos presenteia com surpresas como a bela interpretação da violinista Fernanda Kostchak em “The House Of The Rising Sun”. À medida que se vai escutando o álbum fica clara a intenção da banda em gravar um tributo reverenciando o compositor, instrumentista autodidata, que foi grande influência para dezenas de artistas mundo afora. Aliás, essa homenagem até demorou para ser gravada em disco, porque o Vanguart sempre flertou com Dylan, tocou-o ao vivo e até gravou um especial com covers dele para o Canal Bis.

O deus do folk era respeitado, venerado no meio artístico, sobretudo nos anos 1960 e 1970 e continua sendo um grande influencer para artistas contemporâneos. Entre seus principais discípulos estão Beatles (a quem Dylan teria introduzido a marijuana) e Rolling Stones (que regravaram o clássico de Dylan “Like a Rolling Stone”). Claro que é preciso uma certa dose de preparo para consumir suas composições com seis, oito minutos de duração e seus versos com rimas impecáveis. Goste ou não, Dylan é nome de mestre. Que aprendeu de ouvido a tocar piano e violão. E com seu olhar detalhista, a observar e traduzir o mundo e suas reviravoltas, o que lhe rendeu um prêmio Nobel de literatura em 2016.

No Brasil, ele continua sendo fonte de inspiração para muitos cantores – principalmente do Nordeste – que se aventuraram no árduo e complexo trabalho de traduzir o punhado de canções mais famosas e transpor os versos em inglês impecável para a língua portuguesa. O primeiro que me vem à cabeça e cuja aura mais se aproxima do norte-americano é Zé Ramalho. O paraibano lançou em 2008 um disco com versões de Dylan, como “Knockin’ On Heaven’s Door” Mas a tradução fidedigna do refrão, por exemplo, destoa da versão original: como encaixar “céu” no mesmo acorde de “door” (“Bate, bate, bate na porta do céu”)?.

Outra versão que deve ter dado trabalho foi a de “Romance em Durango” gravada pelo cearense Fagner, que nos primeiros versos dá uma velocidade que mais parece um desespero atropelado para casar letra e música. As rimas originais desaparecem na tradução também fiel à original. A primeira estrofe (“Hot chilli peppers in the blistering sun/ Dust on my face and my cape/ Me and Magdalena on the run/ I think this time we shall escape”) se transformou em “Pimenta quente no sol escaldante/ Poeira no meu rosto e minha capa/ Eu e Madalena na corrida/ Acho que desta vez vamos escapar”.

Esses exemplos levam a concluir que a arte de Bob Dylan deve se perpetuar na língua inglesa. É preciso ouvi-lo no original, caso contrário, pode se perder todo o sentido. Por isso, o álbum de Vanguart é tão significativo por respeitar a voz e a língua do compositor.

Quinze das dezesseis faixas contemplam a primeira fase da sua obra entre suas décadas mais expressivas. Começa com baladas mais suaves como “Tangled Up In Blue” e “Don’t Think Twice it’s All Right”, “Just Like a Woman” (com a clássica gaita na introdução), “Hurricane” e “Like a Rolling Stone” aparecem em sequência, mais para o final do álbum que encerra com a obra-prima “Blowin’ In The Wind”, hino entoado em coro pela banda. Claro que faltam singles bastante conhecidos, como “Knockin’ On Heavens door” (escrita em 1972 por Dylan para o filme Pat Garrett & Billy The Kid) e “Mr. Tambourine Man”. Entrada e prato principal para um segundo Vanguart Sings Dylan, quem sabe.