Music

Smashing Pumpkins

Há 25 anos, o surto de grandiloquência de Mellon Collie And The Infinite Sadness projetava a banda ao estrelato e cobrava um preço alto demais

Texto por Fábio Soares

Foto: Reprodução

Quando Robert Smith concebeu Disintegration ao mundo, em 1989, sabia que não poderia errar. Às vésperas de completar 30 anos de idade, o líder do Cure tinha a plena consciência de que o oitavo álbum da banda não tinha o direito de assumir o papel de peça descartável em sua discografia. Teria de alcançar o patamar de obra de arte, custe o que custasse. E se não o fez, chegou bem próximo a isso. Disintegration é, até hoje, objeto de culto e devoção de dez entre uma dezena de fãs dos ingleses. Sua atmosfera de sonho sublimemente musicou as dúvidas, tristezas e crises emocionais na entrada da terceira década de vida de qualquer indivíduo. A trilha sonora para meus problemas. Mesmo que eu já tenha passado dos 40.

Corta para 1995. William Patrick Corgan, líder dos Smashing Pumpkins, tinha 28 anos de idade quando estava em estúdio para gravar sua obra-prima antes de chegar à terceira dezena da idade. Apesar do relativo sucesso entre o público indieSiamese Dream, o álbum de 1993, foi ofuscado pelo movimento grunge e comeu a poeira que a turma de Seattle havia deixado na estrada. Dois anos mais tarde (e com a morte de Kurt Cobain, um ano antes) pertencia aos Pumpkins a bola da vez. O posto de maior banda do planeta estava vago. O momento era aquele e Corgan sabia muito bem disso.

Para o maior álbum de sua vida, Billy Corgan apostou alto: seria um CD duplo, sem fáceis aplausos ou momentos felizes. Seria um projeto triste com atmosfera de sonho. Melancólico como todas as viradas dos 29 para os 30 são.

Mellon Collie And The Infinite Sadness já nasceu grandioso. Partindo de seu projeto gráfico (na capa, a figura de um semianjo a partir de uma estrela) à concepção de seu luxuoso encarte, o álbum possuía 28 canções condensadas em duas metades conceituais e previamente batizadas. “Dawn To Dusk” (“do amanhecer ao anoitecer”, em português) representava o dia, a luz, a euforia das drogas propriamente dita. Já “Twilight To Starlight” (“do crepúsculo à luz das estrelas”) simbolizava a noite, a escuridão, a depressão após a passagem do efeito psicotrópico.

Sua audição continua não sendo fácil, mesmo após um quarto de século de seu lançamento – o disco chegou às lojas no dia 24 de outubro daquele ano. Mellon Collie… não é conceitual em sua acepção e se há algo neste sentido ao longo de quase 30 faixas é a atmosfera de colagens de imagens que vivenciamos durante um sonho. Se a hipnótica “To Forgive” dá passagem ao quase hardcore de “Fuck You (An Ode To No One)” no primeiro disco, no outro é o inverso que dá as cartas: a desconcertante beleza de “Stumbleine” abre espaço para “X.Y.U.”, um arrasa-quarteirão com sete minutos de duração e ares de heavy metal. Para quem estranhou, tarde demais! Afinal, Mellon Collie… vinha para confundir e não para explicar.

O fator MTV exerceu importante papel para o sucesso da megalomaníaca empreitada. A banda produziu poderosos videoclipes para os três hit singles do álbum: “Bullet With Butterfly Wings”, “1979” e “Tonight, Tonight”. No Video Music Awards de 1996, por causa deste último (cujas imagens prestavam uma grande homenagem ao pai dos efeitos especiais no cinema, o francês Georges Méliès), o quarteto comandado por Corgan passou o rodo na premiação com nada menos que seis troféus, incluindo “Clipe do Ano”. Tudo perfeito, não? Nada poderia dar errado…

Mas deu. A obsessão e perfeccionismo quase doentios de Billy Corgan em lançar “o álbum perfeito da vida, do mundo e do sistema solar” cobrou um preço alto demais à banda. Algumas sessões de gravação de Mellon Collie… atingiram inimagináveis dezoito horas consecutivas. O esgotamento físico e mental era evidente inclusive na turnê de promoção do disco.

Durante a passagem por São Paulo e Rio de Janeiro, na derradeira edição do festival Hollywood Rock, em janeiro de 1996, já era explícito o descompasso entre Corgan e a baixista D’Arcy, o guitarrista James Iha e o baterista Jimmy Chamberlain. E coube ao último ser protagonista do mais triste episódio da carreira da banda. Em julho do mesmo ano, em um quarto de hotel em Nova York e na companhia do baterista, o tecladista Jonathan Melvoin, que viajava contratado como músico de apoio, sofria uma fatal overdose de heroína. Chamberlain ganhou do chefe – que àquela altura já havia comprado dos outros três suas partes dos direitos da banda – a demissão sumária. Então, os Pumpkins foram lançados ao fundo do poço de um ano trágico.

Espera lá… Não era essa a real intenção de Mellon Collie…? As oposições? Tamanho sucesso acompanhado de uma tragédia como esta, não fazia parte do script? Procuro acreditar que tamanha densidade de obras como Mellon Collie… cobram seu preço de qualquer maneira. Para o bem ou para o mal. Não se concebe uma salada emocional como esta, repleta de lirismo e arranjos díspares, sem escapar impunemente. Sua concepção soa como nossas vidas: altos e baixos sem fim, transitando entre o sagrado e o profano. Sua audição merece atenção tão meticulosa que mesmo agora, 25 anos depois, ainda é possível descobrir novos detalhes que passaram até então despercebidos.

Billy Corgan quis nos dar uma obra de arte. Conseguiu. Quis ainda que ela nos marcasse por euforia e dor. Conseguiu também. E o que fica é que Mellon Collie And The Infinite Sadness será nossa válvula de escape a desafogar emoções diversas por muitos anos. Porque assim é a arte, propriamente dita. E porque é ao conjunto de tudo isso que dedicamos a alcunha “vida”. Mesmo que encharcada por melancolia. Mesmo que repleta de infinita tristeza. Mesmo que registrada no CD duplo mais vendido daqueles anos finais do século 20.

Movies

The Boys In The Band

Reunião de amigos gays expõe de forma intensa e dramática barreiras de meio século atrás que ainda permanecem difíceis de serem quebradas

Texto por Maria Cecilia Zarpelon

Foto: Netflix/Divulgação

Desde a rebelião de Stonewall que o movimento LGBTQIA+ vem ganhando cada vez mais visibilidade nos espaços de discussão. Mas, apesar das várias conquistas que o grupo teve ao longo de todos esses anos, será que as coisas realmente mudaram? A segunda adaptação cinematográfica homônima da peça teatral escrita por Mart Crowley em 1968, ainda tem muito a dizer sobre as vicissitudes dessa comunidade nos dias atuais. Produzida por Ryan Murphy (das séries Hollywood e Ratched), a nova versão de The Boys In The Band (EUA, 2020 – Netflix) é uma obra relevante e provocativamente anacrônica. Pouco mais de meio século depois de ter sido criada, a trama segue ousada por trazer de forma tão crua as particularidades de uma comunidade que teve – e ainda tem – sua voz silenciada. 

O enredo do filme dirigido por Joe Mantello é simples: em uma noite de 1968, um grupo de amigos gays se reúne para comemorar o aniversário de um deles. O que era para ser apenas mais uma festa comum acaba, na verdade, aflorando mágoas e ressentimentos escondidos sob uma fina camada de falsa felicidade. Essa reunião aparentemente despretensiosa expõe temas delicados como amizade, homofobia e preconceito de forma fluida e áspera ao mesmo tempo.

O longa se passa em um local apenas, o apartamento novaiorquino de Michael (Jim Parsons, o Sheldon da série The Big Bang Theory). Ao contrário do que muitos podem pensar, em momento algum a história se torna monótona ou cansativa. Isso se dá graças às rápidas respostas e diálogos afiados preservados do roteiro de Crowley. Os longos papos sobre autoaceitação e discriminação que permeiam o apartamento são inesperadamente potentes. 

Enquanto os homens vão esmiuçando os problemas latentes que eles negam existir entre si, a tensão que se arquiteta no ambiente chega a ser sufocante. À medida que os espectadores – assim como os personagens – sentem que não existe para onde ir, a inquietação se intensifica. Um ótimo recurso para criar esse clima claustrofóbico –  que passa quase despercebido – é o confinamento do grupo dentro da pequena sala do apartamento, uma vez que começa a chover na cidade. 

Aos poucos, o público descobre que Michael é um homem inquieto, que carrega um desejo quase extremo de agradar as pessoas e nunca saiu do armário completamente. Ele, com a ajuda do ex-namorado Donald (Matt Bomer), organiza uma festa para o sarcástico aniversariante Harold (Zachary Quinto, o Spock atual da franquia cinematográfica Star Trek), com quem mantém uma relação complicada. Entre os convidados estão Larry (Andrew Rannells), que mesmo não acreditando no conceito de monogamia, mora junto com Hank (Tuc Watkins), que acabou de deixar a família para ficar com o amado. Além deles, estão presentes o performático e animado Emory (Robin de Jésus), e Bernard (Michael Benjamin Washington), o mais tímido do grupo.

Tudo fica ainda mais angustiante quando a chegada de Alan (Brian Hutchison), um velho amigo da faculdade de Michael, revela que a cumplicidade entre os amigos é mais frágil do que parece. Resultado das personalidades dissonantes, os embates, por vezes engraçados, chegam ao ápice quando Michael é confrontado com a homofobia (não tão) velada de Alan, fazendo com que sua raiva há muito reprimida emerja. Nos absurdos, na petulância e na dor que preenchem a performance de Parsons é que reside o momento mais dramático do filme.

As inconstâncias, desejos, medos e alegrias dos personagens permeiam as duas horas do longa sem que pareça um “espetáculo exótico” para ser admirado. Pelo contrário. Sob esse novo The Boys In The Band paira um olhar atento e próximo que denuncia que as barreiras que deveriam ter sido quebradas há muito tempo seguem firmemente de pé.