O empenho de uma família periférica para ganhar a vida como influenciadores digitais e ter dinheiro para a laqueadura da protagonista
Texto por Leonardo Andreiko
Foto: Olhar Filmes/Divulgação
Não raro nos deparamos com tendências estilísticas na produção cinematográfica brasileira. Esse é um movimento contínuo e sua identificação, uma das vigas do trabalho crítico. O passar dos anos revela com cada vez mais nitidez os inícios, meios e fins destes processos. Parece que Tijolo por Tijolo (Brasil, 2024 — Olhar Filmes), estreia mundial da recém-realizada décima terceira edição do festival curitibano Olhar de Cinema, enquadra-se em um movimento particular destes.
Um documentário aterrado e pouco intervencionista acompanha uma protagonista de alguma minoria social e presença política em sua região: uma premissa que, reduzida às características universais, tem se repetido com frequência. Neste caso, falamos de Cris, seu esposo, seus três filhos e um quarto que está por vir. Com a casa condenada, eles se empenham na construção de uma nova, batalham para ganhar a vida como influenciadores digitais e para garantir a laqueadura da protagonista.
Somos introduzidos a esta realidade desde a primeira cena, uma fala de Cris sobre sua realidade durante um culto religioso. A relação com a religião, inclusive, é outro ponto de tensão-naturalização que é assunto corrente de nossos novos cinemas. Aqui, é naturalizada. Da exposição, partimos à captura passiva da realidade da família, entrecortada com fragmentos da própria produção do casal e de seu filho, Caique. Dos pais, o que vemos são os stories e vídeos curtos que ilustram a jornada, enquanto Caique fala diretamente à câmera e, com ela na mão, nos leva a descobrir os cômodos ainda a construir de sua casa.
Tais sequências são, talvez, as mais inventivas do longa-metragem. Se a direção de Quentin Delaroche e Victoria Alves opta por uma decupagem simples, que mais retrata situações do que aprofunda reflexões, os vídeos de Caique oferecem uma perspectiva, esta sim, singular, que nos revela como esta criança pensa, como sonha, como enxerga sua realidade.
Conhecemos Cris, Albert, Caique, Isaque, Helena e posteriormente Yasmin pelo apanhado geral das coisas que lhes acontecem. São carismáticos, é inegável, mas a proposta estética que guia nossa relação com eles parece pouco interessada em desvelar as camadas profundas de suas identidades.
Não há aqui tensionamento e indagação. Pelo contrário, Tijolo por Tijolo parece uma propaganda moral de sua protagonista. Um endosso de seu modo de viver a vida, sem mais nem menos. A questão problemática não tem nada a ver com Cris ou sua família, mas à postura irrefletida do filme enquanto janela àquela realidade.
Não se questiona como a ideologia protestante individualiza o “querer ser rico” de Caique, ainda tão jovem, e isenta a matéria social de sua responsabilidade com as crianças da periferia. Ou como a teleologia da igreja impõe à mãe uma gestação indesejada, pregando que, se Deus quis, deve-se respeitar seu plano. O único discurso estabelecido acerca dos direitos reprodutivos e do direito ao corpo em Tijolo por Tijolo são de Cris, não do filme como matéria própria.
É como se coubesse ao cinema, instituição cultural polimorfa, a validação de suas personagens e reflexões. Como se uma obra “a respeito de” alguém fosse limitada à extensão do gosto desse. Nos meandros deste problema, que retira do cinema sua capacidade de evocar sensações e conceitos ao chocá-los contra si mesmos, Tijolo por Tijolo se enfraquece e resulta em uma casa com belas paredes, mas uma fundação fraca.
>> Tijolo por Tijolo ganhou os prêmios de melhor montagem e melhor direção da mostra Competitiva Brasileira do 13º Olhar de Cinemae também o prêmio da crítica do festival
Damon Albarn e sua orquestra mezzo live action mezzo virtual trazem o futuro a uma Curitiba que parece fazer questão de sempre olhar para trás
Damon Albarn
Texto por Abonico Smith
Fotos: iaskara
No auge do sucesso com o Blur, lá pela segunda metade dos anos 1990, Damon Albarn se encontrava enfastiado com a sonoridade regressiva das guitarras do britpop. Por isso decidiu se permitir e inventar algo completamente diferente do que já andava fazendo à frente do quarteto. Calcado nos seus outros gostos musicais da adolescência (rap, trip hop, dub, ska e demais grooves de raiz preta), uniu-se a Jamie Hewlett, cartunista de origem undergound, e montou o Gorillaz. Som com imagem, música com desenho animado. Os instrumentistas não seriam de carne e osso, mas sim quatro seres fictícios que estrelariam os videoclipes, capas e encartes dos discos. No estúdio, para dar forma às canções, passou a chamar um turbilhão de amigos para gravar vozes, batidas e bases harmônicas. Mal poderia saber que não só estaria prevendo o futuro da música pop no século 21 como também daria à luz quem logo viria a se transformar em seu principal projeto musical com o subsequente arrefecimento do mesmo Blur.
Desde 2001, o Gorillaz já conta com onze álbuns (sete de material original e três coletâneas com singles, remixes e raridades) e intensa atividade de concertos, dando giros ao redor do planeta. Neste último mês de maio, na fase de pontapé inicial da aguardada turnê mundial pós-pandemia, Damon trouxe sua orquestra mezzo virtual mezzo live action para o Brasil. Foram dois shows como headliner do Mita Festival (em São Paulo e no Rio de Janeiro) e, no meio destes, uma apresentação “solo” em Curitiba, no sideshow denominado Mita Day e em uma Pedreira Paulo Leminski congelante na noite do último dia 18 de maio.
Receber na capital paranaense um grande nome do rock que não esteja de alguma forma ligado ao binômio hard rock/heavy metal já pode ser considerada uma bênção para esta cidade que não aguenta mais receber sempre os (quase) mesmos artistas em concertos massivos. Só que alguém poderia ter ao menos dado um toque no colocador de som para tentar fazer o esquenta (na linguagem metafórica, bem verdade, já que o sentido literal se fazia impossível naquele frio abissal que congelava orelhas e cabeças de quem não vestia capuz ou gorro). No mínimo a pessoa não fazia nem ideia de quem faz parte de grande parte dos fãs da banda. Foi Black Sabbath para lá, Guns N’Roses para cá e AC/DC em imperdoável dose tripla. Alguém bem que poderia ter lembrado à pessoa que as passagens de Metallica e Kiss por estas terras se deram dias antes. Quando muito rolou uma obviedade como “Song 2”… do Blur! A situação só melhorou quando a equipe do Gorillaz assumiu a sonorização para colocar a playlist do próprio artista. Antes tarde do que nunca…
Quando o telão passou a mostrar a vinheta The Static Channel, o prelúdio imagético que já anuncia uma novidade que vem em breve por aí, a noção de que o futuro da música havia chegado de fato à Pedreira era real. A partir de então, por quase duas horas, o que se viu foi um belíssimo concerto que não se baseava somente em algo sonoro. Aquilo que a MTV já revelara nos anos 1980, o Gorillaz confirma como sua essência: a condição do sensível é cada vez mais visual e harmonias e melodias precisam, mais do que nunca, ter os olhos como complemento dos ouvidos. Inclusive na performance cênica. Tudo milimetricamente ensaiadinho e cronometrado, para coincidir performance ao vivo dos músicos de carne e osso com o disparo de telões e bases sonoras pré-gravadas. No fundo e nas laterais do palco, as criaturas animadas Murdoc, 2-D, Noodle e Russel desfilavam em trechos dos videoclipes originais e ainda recebiam convidados especiais virtuais como Elton John e Robert Smith. Tudo ali, sequenciado ao vivo, na frente dos olhos de umas milhares de pessoas, sem a facilidade do suporte do videotape.
Posdnous
O futuro previsto pelo Gorillaz também está na embalagem musical. É rock mas não é aquele rock congelado com guitarras em primeiro plano. Elas existem, por vezes são bem pesadas e distorcidas, mas dialogam bastante com as batidas dançantes, inclusive cedendo espaço para outros instrumentos virem à frente. É rap também, inclusive com a presença de rappers invadindo o palco no final do set como convidados especiais em uma ou duas músicas cada – como o famoso DJ de reggae e toaster britânico Sweetie Irie (que participou da versão remix acelerada de “Clint Eastwood”) e as lendas do hip hop americano dos anos 1990 Bootie Brown e Posdnous. Brown, um dos fundadores do grupo Pharcyde, comandou mais dois clássicos, “Stylo” e “Dirty Harry”. Pos, uma das vozes marcantes do trio De La Soul, fez “Superfast Jellyfish” e “Feel Good Inc” (que não perdeu em nada mesmo ficando sem a risada malévola do outro integrante, Maseo, que também participou da gravação original). É pop (“Strange Timez” e “On Melancholy Hill” são duas pérolas ainda escondidas no repertório), é eletrônico (“Tranz”, “Aries” e “Andromeda” transformam a arena em uma gigantesca pista de dança), é jazz (“O Green World”), é bossa nova (“El Mañana”), é gospel (os quatro backings dão um suporte poderoso em vários momentos do espetáculo até uma delas, Michelle Ndegwa voar solo ao soltar o vozeirão em “Kids With Guns”), é electro (“Stylo” e “Dirty Harry” remetem ao comecinho dos anos 1980, quando Afrika Bambaataa apresentou o rap aos sintetizadores), é punk (“M1A1”, “Momentary Bliss”). Na sonoridade, Damon comanda uma mistura de tudo e mais um pouco, sem pesar a mão para qualquer direção. E está tudo bem assim, casando perfeitamente, deste modo, com a vibe do público millennial.
Com a ajuda de músicos tarimbados para transpor com fidelidade as gravações para o palco (com o destaque para o baixista Seye Adelekan, o tecladista Mike Smith, o guitarrista Jeff Wooton e o percussionista Remi Kabaka Jr, que também participa das sessões de criação nos estúdios) e um figurino megacaprichado (com todos os músicos se encaixando na paleta de cores que flutua entre o rosa e o preto), Damon Albarn se mostra visivelmente confortável para assumir de vez a condição mista de entertainer e ídolo pop à qual quase chegou se o Blur não tivesse ficado no meio do caminho lá pelo 19-2000. De qualquer forma, não há quem possa acusá-lo de comodismo ou fazer algo sem esmero e qualidade. Seja no Blur, no Gorillaz ou em outros projetos bissextos como a carreira solo, os flertes com a sonoridade africana e oriental, as trilhas sonoras ou os grupos Rocket Juice & The Moon e The Good, The Bad & The Queen. Mas, enquanto Damon sempre olha para a frente, a mesma Curitiba que lhe acolheu sob baixíssima temperatura (no início do show ele chegou a brincar, dizendo ao público que estar ali na Pedreira lembrava a experiência de tocar no verão britânico) faz questão de reproduzir mecanicamente o que esta fácil e estabelecido e olhar para trás mesmo sendo arrastada para o futuro, tal qual o anjo do quadro Angelus Novus, de Paul Klee.
Set List: (The Static Channel), “M1A1”, “Strange Timez”, “Last Living Soul”, “Tranz”, “Aries”, “Tomorrow Comes Today”, “Every Planet We Reach Is Dead”, “Rhinestone Eyes”, “19-2000”, “Saturnz Barz”, (Interstitital), “Glitter Freeze”, “Cracker Island”, “O Green World”, “Pirate Jet”, “On Melancholy Hill”, “El Mañana”, “Kids With Guns”, (Elevator Going Up) ”Andromeda”, “Superfast Jellyfish”, “Feel Good Inc”, “Dirty Harry”, “Momentary Bliss”, “Plastic Beach”. Bis: “The Pink Phantom”, “Stylo”, “Clint Eastwood” e “Clint Eastwood (Ed Case/Sweetie Irie Re-Fix”).
Neste último dia 13 de março foi anunciada a morte do ator William Hurt, aos 71 anos de idade, de causas naturais. O ator norte-americano deixou uma extensa trajetória com seu nome nos créditos de interpretação de 106 filmes.
Para os brasileiros, o mais conhecido e importante foi, com certeza, O Beijo da Mulher Aranha. Na produção de 1985, com produção dividida entre Brasil e Estados Unidos e cenas dirigidas por Hector Babenco em São Paulo, sua presença em cena foi tão esfuziante que arrebatou o Oscar de melhor ator daquela temporada.
Em homenagem a Hurt, o Mondo Bacana enumera os oito trabalhos mais significativos de toda a carreira, marcada por uma série de grandes longas-metragens nos anos 1980, praticamente um emendado após o outro.
Corpos Ardentes (1981)
Lawrence Kasdan escreveu o roteiro de dois filmes marcantes do início dos anos 1980: O Império Contra-Ataca e Os Caçadores da Arca Perdida. O passo seguinte natural seria estrear como diretor e ele optou por fazer uma releitura de Pacto de Sangue, clássico filme noir dirigido em 1944 por Billy Wilder. Em Corpos Ardentes, acompanhamos o dia a dia de um advogado comum e sem ambições, Ned Racine, vivido por William Hurt. A vida dele se resume aos poucos clientes que defende e aos dois amigos com quem costuma beber no bar de uma quente cidade da Flórida. Certo dia, ele conhece Matty Walker, papel de estreia de Kathleen Turner, que diz para Ned: “Você não é muito esperto. Gosto disso em um homem”. Tem início um tórrido romance entre os dois que culmina na morte do milionário esposo de Matty. O diretor Kasdan, também autor do roteiro, revela um domínio absoluto de sua narrativa. Todo o elenco merece um destaque especial. Principalmente, Hurt e Turner, que exalam uma química arrebatadora quase sem igual no cinema. Preste atenção na participação de Mickey Rourke, em início de carreira. Corpos Ardentes é simplesmente imperdível.
O Reencontro (1983)
Em sua estreia como diretor, no drama noir Corpos Ardentes, Lawrence Kasdan tinha chamado a atenção da crítica. Ele resolveu, então, partir para uma história mais pessoal e introspectiva e realizou O Reencontro. O filme conta a história de um grupo de sete amigos que estudaram juntos na Universidade de Michigan. Dez anos depois da formatura, ele se reencontram em uma pequena cidade do interior da Carolina do Sul para o funeral de Alex, que se suicidou. Os outros seis: Sam (Tom Berenger), Michael (Jeff Goldblum), Nick (William Hurt), Harold (Kevin Kline), Chloe (Meg Tilly) e Sarah (Glenn Close) aproveitam o momento para fazer um balanço de suas vidas. Kasdan, que escreveu o roteiro junto com Barbara Benedek, inspirou-se em seus amigos dos tempos de faculdade. O Reencontro se desenrola praticamente todo em um mesmo cenário. As personagens falam sem parar e lavam bastante roupa suja. Parece filme francês, mas é americano. E dos bons. O elenco, hoje famoso, na época, em início de carreira, está excepcional. Duas curiosidades: 1) Kevin Costner fez o papel de Alex, mas as cenas de flashback foram cortadas na montagem final. Para compensar, o diretor o colocou em papel de destaque em seu filme seguinte, Silverado (1985); 2) Kasdan pediu ao elenco que ficasse junto antes das filmagens para que desenvolvessem aquela naturalidade comum em velhos amigos. O Reencontro foi indicado a três Oscar: filme, roteiro original e atriz coadjuvante (Glenn Close). Não ganhou nenhum. Ao invés disso, tornou-se cultuado por toda uma geração.
O Beijo da Mulher-Aranha (1985)
“Ela é… bem, ela é algo um pouco estranho. Isso é o que ela percebeu, que ela não é uma mulher como todas as outras. Ela parece toda envolta em si mesma. Perdida em um mundo que ela carrega fundo dentro de si”. É assim que Molina (William Hurt) começa a contar a história de uma mulher misteriosa para Valentin (Raul Julia). Ambos estão presos. O primeiro, é homossexual. O segundo, é um prisioneiro político. Molina adora cinema e para fugir daquela triste realidade, inventa enredos cinematográficos cheio de mulheres fatais, mistério e romance. Uma de suas heroínas é a Mulher-Aranha (Sonia Braga). Primeiro filme internacional dirigido por Hector Babenco, O Beijo da Mulher-Aranha é baseado no livro homônimo escrito pelo argentino Manuel Puig. Após o sucesso de Pixote (1981), Babenco teve as portas de Hollywood abertas e optou por uma trama próxima do universo narrativo com o qual ele estava acostumado. É curioso observar no desenrolar do filme a maneira como os estereótipos vão sendo trabalhados. Nem sempre o mais forte é o mais valente e muito menos o mais fraco se revela um covarde. Uma direção ao mesmo tempo seca e poética, característica marcante do cinema babenquiano. Além disso, estamos diante de um elenco estupendo e de William Hurt em estado de graça. Ele, que conquistou, merecidamente, o Oscar de melhor ator e também diversos outros prêmios de atuação naquele ano. Rodado em São Paulo, o filme teve uma excelente acolhida de crítica e público, o que possibilitou ao diretor outros trabalhos no exterior, mas sem o mesmo sucesso obtido por este.
Nos Bastidores da Notícia (1987)
Se James L. Brooks tivesse apenas produzido Os Simpsons, só isso já seria suficiente para que ele tivesse seu nome marcado na história da TV americana. Brooks, entretanto, fez muito mais do que isso. Ele é a mente criativa por trás de outras séries populares como Mary Tyler Moore e Taxi. Paralelo a seu trabalho na televisão, ele escreveu, produziu e dirigiu alguns filmes para cinema. Um deles trata justamente de um lugar que ele conhece muito bem: uma emissora de TV. Em Nos Bastidores da Notícia acompanhamos um triângulo amoroso-profissional que se estabelece entre as personagens de Tom (William Hurt), Jane (Holly Hunter) e Aaron (Albert Brooks). O filme é uma comédia romântica. Porém, mesmo sem se aprofundar nas questões propostas pelo roteiro, provoca uma discussão sobre ética jornalística e a espetacularização da notícia. Brooks é um ótimo roteirista e um excelente diretor de atores. É fácil comprovar isso pela maneira como o trio principal é apresentado no prólogo e a forma harmoniosa de interação em cena de todo o elenco.
O Turista Acidental (1988)
Existem aqueles que adoram viajar. Outros precisam por conta do trabalho. Alguns até viajam, mas gostam de se sentir em casa quando estão fora. Para este último grupo existe o guia do “turista acidental”. Este é o caso de Macon Leary (William Hurt), que detesta viajar e fazer qualquer coisa fora de sua rotina já programada. No entanto, o trabalho de Macon o “obriga” a viajar continuamente. Ele escreve guia de viagens para quem não gosta de viajar. Baseado no livro de Anne Tyler e adaptado e dirigido por Lawrence Kasdan, esse é o mote inicial de O Turista Acidental. Macon é metódico e vem de uma família igualmente metódica. Sua vida vira de cabeça para baixo quando uma tragédia familiar modifica completamente sua vida e motiva a separação de sua esposa, Sarah (Kathleen Turner), que não entende a aparente indiferença do marido. Um pequeno acidente doméstico faz com que ele conheça Muriel Pritchett (Geena Davis, no papel que lhe rendeu um Oscar de atriz coadjuvante). Kasdan, que iniciou a carreira como roteirista, sabe muito bem como estruturar uma história e faz isso com maestria neste tocante drama que tem seus bons momentos de “respiro” de humor, seja com a figura extrovertida de Muriel ou com a excêntrica família de Macon. E o elenco é de primeira.
Um Golpe do Destino (1991)
É comum ouvirmos dizer que os médicos se sentem como deuses. Muitos deles parecem insensíveis e não costumam estabelecer qualquer tipo de relação mais próxima com os pacientes. Pode até ser verdade, mas, em alguns casos, trata-se de um mecanismo de defesa. O doutor Jack MacKee (William Hurt) se enquadra perfeitamente nos dois grupos citados: sente-se um deus e sem compaixão alguma. Tudo, porém, muda em sua vida quando ele descobre-se um paciente também. Este é o mote deste filme dirigido em 1991 por Randa Haines. O roteiro, escrito por Robert Caswell, baseia-se no livro homônimo de Ed Rosenbaum. A diretora conduz sua narrativa “transitando” em uma tênue linha. Daquelas que têm todos os elementos para cair em melodrama carregado de clichês. Haines consegue escapar das armadilhas e tem em seu elenco o suporte necessário para manter a trama nos trilhos. Um Golpe do Destino fala de mudanças e superações. No entanto, o faz de maneira convincente, sem “forçar a barra”.
Cortina de Fumaça (1995)
“Se você não puder dividir seus segredos com seus amigos, então que tipo de amigo é você?”, pergunta Auggie para Paul. Este responde: “exatamente… a vida não valeria a pena”. Cortina de Fumaça tem como cenário principal uma tabacaria. Muitos dos diálogos do filme giram em torno de cigarros e charutos. Mas isso, como o próprio título nacional já anuncia, isso é apenas uma distração. O filme, dirigido por Wayne Wang, um chinês radicado nos Estados Unidos, a partir de um roteiro do escritor nova-iorquino Paul Auster, é uma ode à amizade. Auggie Wren (Harvey Keitel), é gerente de uma tabacaria no Brooklyn, em Nova York. Seu melhor cliente é o escritor Paul Benjamin (William Hurt), alterego de Auster. Ao redor dos dois orbitam diversas outras personagens e histórias. Auggie, todos os dias, no mesmo horário, bate uma foto da esquina de sua loja. Ele faz isso há anos. Paul precisa escrever um conto de Natal para uma revista e pede ao amigo que lhe conte uma história. É difícil descrever um longa como Cortina de Fumaça. As coisas acontecem de maneira sutil e envolvente. Sem pressa, o roteiro de Auster e a direção de Wang nos conduzem pelas vidas dessas pessoas que, de início, não conhecemos. Quando o filme termina, eles se tornaram nossos melhores amigos. Diálogos inspirados e personagens bem construídas são uma combinação infalível. De cara, você já aprende como medir o peso da fumaça. E no final, ao som da bela “Innocent When You Dream”, cantada por Tom Waits, somos brindados com um belo conto de Natal. E olha que ainda toca uma das melhores versões de “Smoke Gets in Your Eyes”, na voz de Jerry Garcia. Vencedor do Urso de Prata do Festival de Berlim de 1995, Cortina de Fumaça é daqueles filmes para se ter em casa e rever e rever e rever, sempre. Em tempo: logo após as filmagens, Paul Auster dirigiu junto com Wayne Wang, a partir de improvisos dos atores e de alguns outros convidados, uma continuação chamada Sem Fôlego (1995), que é legal, mas não tem o mesmo brilho. O DVD lançado no Brasil pela Editora Europa traz os dois filmes.
A Vila (2004)
Nem sempre é bom quando um artista chama muito a atenção em seus primeiros trabalhos. Quando o cineasta americano de origem indiana M. Night Shyamalan realizou O Sexto Sentido (1999), foi apontado como gênio e por conta da grande surpresa daquele filme criou-se uma enorme expectativa em relação aos seus trabalhos seguintes. De certa forma, Shyamalan, que é um diretor de muito talento, ficou estigmatizado. Não foi diferente com A Vila, lançado cinco anos depois. Aqui, acompanhamos o dia a dia de uma pequena e isolada aldeia que vive sob a contínua ameaça de criaturas que habitam seus arredores. Existe uma espécie de pacto entre os aldeões e os seres estranhos que moram na floresta. Um dos jovens moradores da vila, Lucius Hunt (Joaquin Phoenix), decide explorar a região além da floresta e essa ação provoca uma ruptura no tênue acordo existente. Mais uma vez Shyamalan desenvolve sua história como uma parábola e faz desta história um espelho da sociedade americana. Munido de um elenco dos sonhos, o diretor-roteirista-ator (ele faz uma ponta no filme!) discute, metaforicamente, a violência urbana e questões como segurança, relações familiares e choque de gerações. Conduz sua trama com habilidade e sutileza e nos reserva boas “surpresas”, que funcionam muito bem. Principalmente se o espectador não criar expectativas grandes demais e esperar ver um novo O Sexto Sentido.
Retorno do diretor James Wan ao body horror deleita os amantes do gênero mas se perde ao se alongar no relógio
Texto por Ana Clara Braga
Foto: Warner/Divulgação
James Wan é um nome estabelecido no gênero de terror. As franquias Sobrenatural e Invocação do Mal são as grandes responsáveis por construir a imagem do diretor na indústria. Filmes de casas mal assombradas e espíritos logo se tornaram sua marca registrada. Porém, antes de se aventurar no mundo de demônios e fantasmas, Wan jogou suas fichas no body horror. É dele o primeiro filme da franquia Jogos Mortais, o primeiro de diversos sangrentos filmes sangrentos que, ao contrário de seus trabalhos mais recentes, não se apoiam nos sustos. Em Maligno (Malignant, EUA/China, 2021 – Warner), que chega agora às telas, James Wan volta às suas raízes.
Tudo começa com a misteriosa filmagem de um hospital psiquiátrico pediátrico. Algo está errado com um paciente chamado Gabriel, mas é difícil saber o que exatamente. Corta para Madison Mitchell (Annabelle Wallis), uma enfermeira grávida chegando em casa e encontrando seu marido violento que em um ataque de raiva bate a cabeça de sua esposa contra a parede. Agora com uma ferida que parece nunca sarar, Madison passa a ter visões aterrorizantes de assassinatos.
Profundamente inspirado pelo horror corporal de David Cronenberg, James Wan se aventura nos horrores que o corpo humano é capaz de produzir. Mais violento que seus últimos filmes, Maligno não economiza no sangue falso. O longa é conduzido com uma boa dose de mistério e uma excelente reviravolta. O ritmo não se mantém por todos os 111 minutos, mas o suficiente para gerar uma atmosfera de tensão.
A produtora A24 se popularizou nos últimos anos e seus filmes de terror e suspense caíram na graça da audiência. O Farol, Midsommar, Ex Machina, além da qualidade narrativa, também trouxeram para a mesa grande qualidade técnica e atenção a detalhes como fotografia e trilha sonora, o que nem sempre é prioridade do cinema de horror. James Wan também bebe dessa fonte recente e apresenta um filme com um belo visual e cenas com iluminação vermelha que agradam esteticamente.
Maligno parece ser mais longo do que realmente é e a montagem pode ser a culpada. Para preservar o grande mistério do filme, personagens são inseridos na trama sem explicações – ato que instiga a curiosidade mas alonga o relógio. Era realmente necessário colocar momentos de flerte entre a irmã da personagem principal e o detetive que investiga os assassinatos?
Quando chega o clímax, a surpresa vale a pena. São minutos de deleite para amantes do body horror. Infelizmente, após seu melhor momento, Maligno se perde. O desfecho é sem sal e repete o pior dos últimos filmes de James Wan. A energia cai rapidamente e o que era de fato uma história interessante torna-se mais um clichê aguado.
Maligno é a volta de Wan para suas raízes. Inconstante e intenso, o filme duvida de seu próprio potencial ao entregar um final que pensa que o público que irá querer ver. Afinal, o que é um final feliz de verdade no cinema? É aquele que deixa o público momentaneamente feliz ou o que nunca mais é esquecido?
Tom Hanks e o diretor Paul Greengrass fazem um road movie de faroeste mas não se arriscam a sair da zona de conforto hollywoodiana
Texto por Leonardo Andreiko
Foto: Netflix/Divulgação
Volta e meia um cineasta decide adotar convenções de gênero historicamente estabelecidas para, em novos tempo e conjuntura, avaliar sua eficiência. Conhecido por Ultimato e Supremacia Bourne (e aquele confuso estilo de ação), Paul Greengrass embarca no trem do faroeste ao desenvolver um road movie em seus moldes em Relatos do Mundo (News Of The World, EUA/China – Netflix).
O roteiro, escrito por seu diretor, Paulette Jiles e Luke Davies (de Lion e Querido Menino), gira em torno do Capitão Kidd, um ex-militar que ganha a vida lendo os jornais de cidade em cidade, trazendo informação e divertimento às comunidades distantes e, muitas vezes, analfabetas do Texas pós-Guerra Civil. Em uma dessas viagens, Kidd (Tom Hanks) encontra uma garota perdida, Johanna (Helena Zengel, de apenas 12 anos), que embora de descendência europeia, viveu desde bebê com uma tribo Kiowa e só entende a língua indígena. Assim, o veterano sente-se moralmente impelido a levá-la de volta a sua família em uma vila alemã e, com isso, o filme se permite tomar seu tema principal: o que é uma família.
O tema, lugar-comum na história cinematográfica, é costura eficiente para o percurso desse road movie – isto é, um filme que gira em torno de uma viagem, com a ilustração simbólica do trajeto emocional das personagens ao longo da trama. Em termos mais práticos, evitando os spoilers, Relatos do Mundo utiliza o deslocamento para estreitar o relacionamento entre Kidd e Johanna. Nesse sentido, privilegiando a abordagem emocional, Greengrass opera com a paciência e a cautela necessárias, conduzindo Hanks e Zengel em sua química e respeitando o espaço de suas atuações. Contudo, ainda nessa leitura fílmica, a moralidade que permeia a premissa trabalhada é muito simplista.
Explico: os antagonistas enfrentados são muito maus, enquanto ambos os protagonistas são muito bons. Esse preto no branco, que a princípio não seria problemático, torna-se tal à medida que, no subtexto da obra, anteriormente até mesmo à questão familiar, há uma exposição antropológica complicada, que abordarei sem spoilers a seguir.
Johanna é, num primeiro momento, uma garota “selvagem”. Alheia aos costumes e a linguagem de suas contrapartes texanas, ela é animalesca e acuada. Em sua primeira aparição, os indígenas vistos à distância são sobre-humanos, quase espectros vislumbrados em meio à névoa. No entanto, assim como a visão de Kidd se desvencilha dos preconceitos da época com a população originária da região, Johanna vai sendo humanizada em comparação com seus trejeitos anteriores.
Existe, ainda, uma rejeição natural à ideia de que a garota preferisse voltar à tribo Kiowa, em vez de ser levada a uma família cuja cultura há muito tempo perdeu. O que, a princípio, é um artifício de identificação gradual do espectador com a igualdade indígena, toma caminhos perigosos de assimilação deste povo a um outro não-humano. Contudo, Greengrass corrige o problema eminente na cena mais bonita do filme, quando subverte as relações que havia estabelecido.
Dotado de fotografia, montagem e trilha sonora perfeitamente competentes, não obstante, este é um longa-metragem que não se destaca pelo uso da linguagem como meio de amplificar o discurso. Ele é efetivo, de fato, mas não há nada particularmente bom. Dessa forma, Relatos do Mundo se coloca em uma zona de conforto hollywoodiana, em uma aparente forma de visibilizar seu elenco e angariar alguns prêmios sem se arriscar demais – tal é a tônica de muitos filmes lançados nessa época do ano.