Dois de março de 2023. Pedreira Paulo Leminski, Curitiba. Dez minutos para o show ter início, a atração de abertura, OutroEu, deixando o palco, surgem os primeiros pingos de chuva. Uma algazarra de capas plásticas começa a se formar. Casais, famílias inteiras – com muitas crianças, inclusive – e um extrato bem diversificado de curitibanos aguardam Dan Reynolds e companhia.
Pontualmente, às 20h30, o Imagine Dragons sobe ao palco e mostra a que veio. Logo percebe-se que a água que cai do céu não é impedimento para a diversão de ninguém ali. O que se segue é uma explosão. “Thunder”. De hits e também de suspiros pelo tanquinho à mostra do vocalista, que prova que quem está na chuva é para se molhar.
O cantor está realmente inspirado e passa quase todo o show na passarela que percorria a área central da pista Premium. Bastante comunicativo, Reynolds diz muitas vezes que ama seu público e conta de sua infância, que curiosamente teve momentos bem brasileiros, como assistir futebol e beber guaraná, graças ao pai, que trabalhou em nosso país.
Em outro momento tocante, o cantor aborda o tema saúde mental, falando da importância da terapia na vida dele. Segundo o próprio, é graças a ela que ele está vivo hoje. Logo após dizer que “sempre vale a pena viver”, a banda emenda “Demons”. O público canta junto, acompanhado pelo violão delicado de Daniel Wayne Sermon.
Empolgante, a apresentação teve alguns pontos altos, como quando o cantor desceu do palco e interagiu com a fila do gargarejo em “I Bet My Life”. E quando a banda performou a sempre potente “Radioactive”, na qual a luz vermelha do palco irradiou pela plateia maravilhada.
Embora tenha impressionado o físico de Reynolds (fruto de exercícios para vencer a espondilite anquilosante, uma doença autoimune que atinge as articulações e pode ser amenizada com uma musculatura forte), não é ele que explica o sucesso com os firebreathers (termo dado a quem pertence à fanbase da banda). Fica nítida a devoção e o carinho desses fãs, que a todo momento apareciam no telão cantando, com destaque para um menininho que aparentava ter menos de 10 anos. Nos ombros do pai, ele sabe as letras de cor.
Boa parte da chuva, durante o show, também é de papel picado com algumas cores. Isso acaba por criar uma cena bastante interessante no final de tudo: um mar de capas de chuva transparentes salpicadas em vermelho, azul, branco e dourado. É uma bela metáfora. Afinal, vamos todos embora da Pedreira mais coloridos.
Set list: “My Life”, “Believer”, “It’s Time”, “I’m So Sorry”, “Thunder”, “Birds”, “Follow You”, “Natural”, “Next To Me”, “Amsterdam”, “Wrecked”, “I Bet My Life”, “Whatever It Takes”, “Sharks”, “Enemy”, “Bad Liar”, “Demons”, “On Top Of The World”, “Bones”, “Radioactive” e “Walking The Wire”.
Damon Albarn e sua orquestra mezzo live action mezzo virtual trazem o futuro a uma Curitiba que parece fazer questão de sempre olhar para trás
Texto por Abonico Smith
Fotos: iaskara
No auge do sucesso com o Blur, lá pela segunda metade dos anos 1990, Damon Albarn se encontrava enfastiado com a sonoridade regressiva das guitarras do britpop. Por isso decidiu se permitir e inventar algo completamente diferente do que já andava fazendo à frente do quarteto. Calcado nos seus outros gostos musicais da adolescência (rap, trip hop, dub, ska e demais grooves de raiz preta), uniu-se a Jamie Hewlett, cartunista de origem undergound, e montou o Gorillaz. Som com imagem, música com desenho animado. Os instrumentistas não seriam de carne e osso, mas sim quatro seres fictícios que estrelariam os videoclipes, capas e encartes dos discos. No estúdio, para dar forma às canções, passou a chamar um turbilhão de amigos para gravar vozes, batidas e bases harmônicas. Mal poderia saber que não só estaria prevendo o futuro da música pop no século 21 como também daria à luz quem logo viria a se transformar em seu principal projeto musical com o subsequente arrefecimento do mesmo Blur.
Desde 2001, o Gorillaz já conta com onze álbuns (sete de material original e três coletâneas com singles, remixes e raridades) e intensa atividade de concertos, dando giros ao redor do planeta. Neste último mês de maio, na fase de pontapé inicial da aguardada turnê mundial pós-pandemia, Damon trouxe sua orquestra mezzo virtual mezzo live action para o Brasil. Foram dois shows como headliner do Mita Festival (em São Paulo e no Rio de Janeiro) e, no meio destes, uma apresentação “solo” em Curitiba, no sideshow denominado Mita Day e em uma Pedreira Paulo Leminski congelante na noite do último dia 18 de maio.
Receber na capital paranaense um grande nome do rock que não esteja de alguma forma ligado ao binômio hard rock/heavy metal já pode ser considerada uma bênção para esta cidade que não aguenta mais receber sempre os (quase) mesmos artistas em concertos massivos. Só que alguém poderia ter ao menos dado um toque no colocador de som para tentar fazer o esquenta (na linguagem metafórica, bem verdade, já que o sentido literal se fazia impossível naquele frio abissal que congelava orelhas e cabeças de quem não vestia capuz ou gorro). No mínimo a pessoa não fazia nem ideia de quem faz parte de grande parte dos fãs da banda. Foi Black Sabbath para lá, Guns N’Roses para cá e AC/DC em imperdoável dose tripla. Alguém bem que poderia ter lembrado à pessoa que as passagens de Metallica e Kiss por estas terras se deram dias antes. Quando muito rolou uma obviedade como “Song 2”… do Blur! A situação só melhorou quando a equipe do Gorillaz assumiu a sonorização para colocar a playlist do próprio artista. Antes tarde do que nunca…
Quando o telão passou a mostrar a vinheta The Static Channel, o prelúdio imagético que já anuncia uma novidade que vem em breve por aí, a noção de que o futuro da música havia chegado de fato à Pedreira era real. A partir de então, por quase duas horas, o que se viu foi um belíssimo concerto que não se baseava somente em algo sonoro. Aquilo que a MTV já revelara nos anos 1980, o Gorillaz confirma como sua essência: a condição do sensível é cada vez mais visual e harmonias e melodias precisam, mais do que nunca, ter os olhos como complemento dos ouvidos. Inclusive na performance cênica. Tudo milimetricamente ensaiadinho e cronometrado, para coincidir performance ao vivo dos músicos de carne e osso com o disparo de telões e bases sonoras pré-gravadas. No fundo e nas laterais do palco, as criaturas animadas Murdoc, 2-D, Noodle e Russel desfilavam em trechos dos videoclipes originais e ainda recebiam convidados especiais virtuais como Elton John e Robert Smith. Tudo ali, sequenciado ao vivo, na frente dos olhos de umas milhares de pessoas, sem a facilidade do suporte do videotape.
O futuro previsto pelo Gorillaz também está na embalagem musical. É rock mas não é aquele rock congelado com guitarras em primeiro plano. Elas existem, por vezes são bem pesadas e distorcidas, mas dialogam bastante com as batidas dançantes, inclusive cedendo espaço para outros instrumentos virem à frente. É rap também, inclusive com a presença de rappers invadindo o palco no final do set como convidados especiais em uma ou duas músicas cada – como o famoso DJ de reggae e toaster britânico Sweetie Irie (que participou da versão remix acelerada de “Clint Eastwood”) e as lendas do hip hop americano dos anos 1990 Bootie Brown e Posdnous. Brown, um dos fundadores do grupo Pharcyde, comandou mais dois clássicos, “Stylo” e “Dirty Harry”. Pos, uma das vozes marcantes do trio De La Soul, fez “Superfast Jellyfish” e “Feel Good Inc” (que não perdeu em nada mesmo ficando sem a risada malévola do outro integrante, Maseo, que também participou da gravação original). É pop (“Strange Timez” e “On Melancholy Hill” são duas pérolas ainda escondidas no repertório), é eletrônico (“Tranz”, “Aries” e “Andromeda” transformam a arena em uma gigantesca pista de dança), é jazz (“O Green World”), é bossa nova (“El Mañana”), é gospel (os quatro backings dão um suporte poderoso em vários momentos do espetáculo até uma delas, Michelle Ndegwa voar solo ao soltar o vozeirão em “Kids With Guns”), é electro (“Stylo” e “Dirty Harry” remetem ao comecinho dos anos 1980, quando Afrika Bambaataa apresentou o rap aos sintetizadores), é punk (“M1A1”, “Momentary Bliss”). Na sonoridade, Damon comanda uma mistura de tudo e mais um pouco, sem pesar a mão para qualquer direção. E está tudo bem assim, casando perfeitamente, deste modo, com a vibe do público millennial.
Com a ajuda de músicos tarimbados para transpor com fidelidade as gravações para o palco (com o destaque para o baixista Seye Adelekan, o tecladista Mike Smith, o guitarrista Jeff Wooton e o percussionista Remi Kabaka Jr, que também participa das sessões de criação nos estúdios) e um figurino megacaprichado (com todos os músicos se encaixando na paleta de cores que flutua entre o rosa e o preto), Damon Albarn se mostra visivelmente confortável para assumir de vez a condição mista de entertainer e ídolo pop à qual quase chegou se o Blur não tivesse ficado no meio do caminho lá pelo 19-2000. De qualquer forma, não há quem possa acusá-lo de comodismo ou fazer algo sem esmero e qualidade. Seja no Blur, no Gorillaz ou em outros projetos bissextos como a carreira solo, os flertes com a sonoridade africana e oriental, as trilhas sonoras ou os grupos Rocket Juice & The Moon e The Good, The Bad & The Queen. Mas, enquanto Damon sempre olha para a frente, a mesma Curitiba que lhe acolheu sob baixíssima temperatura (no início do show ele chegou a brincar, dizendo ao público que estar ali na Pedreira lembrava a experiência de tocar no verão britânico) faz questão de reproduzir mecanicamente o que esta fácil e estabelecido e olhar para trás mesmo sendo arrastada para o futuro, tal qual o anjo do quadro Angelus Novus, de Paul Klee.
Set List: (The Static Channel), “M1A1”, “Strange Timez”, “Last Living Soul”, “Tranz”, “Aries”, “Tomorrow Comes Today”, “Every Planet We Reach Is Dead”, “Rhinestone Eyes”, “19-2000”, “Saturnz Barz”, (Interstitital), “Glitter Freeze”, “Cracker Island”, “O Green World”, “Pirate Jet”, “On Melancholy Hill”, “El Mañana”, “Kids With Guns”, (Elevator Going Up) ”Andromeda”, “Superfast Jellyfish”, “Feel Good Inc”, “Dirty Harry”, “Momentary Bliss”, “Plastic Beach”. Bis: “The Pink Phantom”, “Stylo”, “Clint Eastwood” e “Clint Eastwood (Ed Case/Sweetie Irie Re-Fix”).
Oito motivos para não perder o show da banda animada de maior sucesso do mundo em sua volta ao Brasil
Texto por Abonico Smith
Fotos: Divulgação
Tudo começou como um despretensioso projeto paralelo para se divertir e desopilar das obrigações à frente do Blur e da posição de porta-estandarte do britpop. Afinal, criar uma banda virtual não demandaria assumir a frente de um palco ou colocar a cara em fotos, entrevistas e videoclipes. Franca ingenuidade. O Gorillaz não só não demorou para tornar-se a primeira e mais importante ocupação de Damon Albarn como também já contabiliza uma discografia com onze títulos (entre trabalhos de carreira mais compilações com remixes, raridades e singles) lançados em 21 anos. E um Grammy, entre várias indicações para esta e outras premiações importantes da indústria fonográfica mundial. Mais seis turnês.
A mais recente, batizada Song Machine Tour e iniciada no ano passado, começou de forma virtual, sendo transmitida em três oportunidades para diferentes continentes em cada uma delas. Agora, depois de dois anos sem grandes show sinternacionais por conta da pandemia da covid-19, é a chance de ver tudo ao vivo e in loco aqui no Brasil. Albarn, suas criaturas animadas e seus asseclas instrumentistas (sim, há todo um aparato de superbanda montado para tocar e cantar ao vivo, enquanto as personagens aparecem em um telão), passarão novamente pelo Brasil, onde já estiveram para fazer um show em 2018. O mês será maio, com três datas marcadas. O grupo britânico será um dos headliners do festival MITA (acrônimo para a expressão Music Is The Answer), que será realizado nos dias 14 e 15 em São Paulo e 21 e 22 no Rio de Janeiro (o Gorillaz encerra a programação em 15 e 21 – clique aqui para saber sobre local, ingressos, atrações e demais informações). No meio disso, o combo, agora como figura solitária da programação paralela chamada MITA Day, passará por Curitiba, na Pedreira Paulo Leminski, no dia 18 (cliqueaqui para as demais informações sobre este concerto; os ingressos também podem ser comprados pessoalmente na Bilheteria 1 do estádio Couto Pereira, de terça a sábado exceto em dias de jogos de futebol, das 10h à 17h).
Para celebrar o retorno do Gorillaz a terras brasileiras, o Mondo Bacana enumera oito motivos para você nem pensar em perder qualquer um destes três concertos – sem contar o fato de que o show na capital paranaense serve de encomenda para quem não tem mais paciência nem físico para aguentar um dia inteiro de pé durante um festival com um monte de atração se apresentando antes.
Banda de cartoon
OK, vamos descontar os chipmunks de Alvin e os Esquilos, criados em 1958 para a literatura infantil e transformados em desenho animado televisivo para as crianças em 1961. Os bichinhos cantavam num agudo infernal, produzido pela rotação aceleradíssima da gravação dos vocalistas originais recrutados para o projeto. Não havia banda, porém. Nenhum instrumento: apenas cantores. Então tudo começou mesmo lá no finalzinho dos anos 1960, quando o mainstream já começou a assimilar os elementos musicais da contracultura e levou as bandas de rock para dentro dos roteiros de desenhos animados para as crianças. Então, na manhã de sábado, começaram a desfilar vários grupos formados por jovens que, com suas guitarras, contrabaixos e baterias (às vezes, uns teclados e pandeiros também) adicionavam melodias grudentas e letras doces às narrativas de suas histórias. O exemplo de maior sucesso nas paradas foi a canção “Sugar, Sugar”, feita para a animação Archies (1968). Os estúdios Hanna-Barbera exploraram essa fórmula à exaustão em Banana Splits (1968), Gatolândia (1969), Josie e as Gatinhas (1970, 1972), Bambam e Pedrita (1971), As Aventuras de Charlie Chan (1972), Butch Cassidy and The Sundance Kids (1974) e Tutubarão (1976). Até artistas de carne e osso foram transformados em cartoon, como os irmãos Jackson 5 (1971) e os atores/personagens da sitcomFamília Dó-Ré-Mi (1974). Em 1985, a Hasbro, empresa de brinquedos concorrente da Mattel (que fazia bastante sucesso com as animações de He-Man e She-Ra para vender produtos dos personagens para as crianças), produziu por três temporadas a série Jem e as Hologramas, que serviu mesmo para vender bonecos às meninas na pré-adolescência. Só que aí veio a última década do século 20 e a televisão deixou de ser a mídia preferida de crianças e teenagers…
Dupla dinâmica
… Até vir o Gorillaz, quarteto que começou a ser criado em 1998 pelo músico Damon Albarn e o ilustrador Jamie Hewlett, que, desde o ano anterior, passaram a dividir um apartamento em Londres. Eles já se conheciam desde 1990, quando, ainda antes de lançar seu primeiro álbum, o Blur foi entrevistado por Hewlett para o fanzine Deadline. O encontro entre os dois foi proporcionado pelo guitarrista Graham Coxon, um grande fã de quadrinhos e admirador do trabalho que Jamie fazia na série de HQ Tank Girl, que vinha como um dos grandes atrativos da publicação, editada pelo cartunista. Inicialmente um não ia lá muito com a cara do outro, sobretudo porque a disputa entre eles envolvia a mesma garota. Quando apararam as arestas, chegaram à conclusão de que a melhor maneira de se acertarem definitivamente seria somar o que ambos sabiam fazer de melhor e fazer com que as duas mídias se comunicassem e se complementassem. Claro que o fato de se tratar do mundo da animação permitiu fazer com que a criatividade de ambos voasse longe e não tivesse limites.
Vida louca vida
Que bandas de rock sempre apresentaram as mais loucas histórias nas biografias de seus integrantes isso não é novidade. Só que Hewlett e Albarn capricharam na diversidade que forma o segredo do sucesso do Gorillaz. O fundador e líder do quarteto é o baixista Murdoc Niccals, satanista de carteirinha (atente para a data de seu nascimento: 6.6.66), que fez um contrato com o demo para conseguir fama por meio da música, tendo sido obrigado a colocar Faust como seu nome do meio e ganho um contrabaixo de presente batizado como El Diablo. Fora dos palcos e estúdios, só se mete em confusão com drogas, prisões, acidentes e incidentes provocados por ele mesmo, chegando até a curtir um período de afastamento da banda, sendo temporariamente substituído por Ace, personagem do desenho animado das Meninas Superpoderosas. Foi Murdoc, inclusive, o responsável pelo acidente de carro que colocou o vocalista Stuart 2-D Pot em coma, fazendo-o perder seu olho esquerdo. Logo depois, o mesmo Murdoc fez um cavalo-de-pau de 360 graus que fez o passageiro 2-D enfiar a cabeça no vidro frontal e perder a visão direita. O garoto, por sua vez, era acostumado a bater a cabeça desde criança. Seu cabelo azul é resultado disso, uma queda de uma árvore durante a infância (?!?!). Já o visual do rapaz, inspirado meio que no próprio Albarn, meio que em dois amigos em comum dos criadores (um deles, o vocalista do Menswear, outro grupo de destaque durante o levante britpop em meados dos anos 1990), reproduz aquele estereótipo do “vocalista bonitinho e aparentemente não muito inteligente de uma banda popular de rock”. A guitarrista Noodle não veio sob encomenda mas chegou literalmente pelo correio. Com onze anos de idade no início da banda, ela foi despachada pelo serviço secreto japonês como forma de se livrar de uma experiência mal sucedida com crianças criadas para dominar igualmente armas, idiomas e instrumentos. No caso de Noodle (o apelido veio da única palavra em inglês que ela soube dizer à banda ao sair da caixa), as tentativas não deram muito certo, a não ser pela guitarra. Completa a formação o baterista Russell Hobbs, bolado para ser uma representação da faceta hip hop do Gorillaz, uma simbologia da parte rítmica casada à poesia. Criado no Brooklyn e mandado a Londres pelos pais para não se meter mais em encrenca pelas ruas de Nova York, o jovem incorpora o espírito de um grande amigo de adolescência, também rapper, morto a tiros. O melhor desta diversidade toda é que os personagens vão tendo suas narrativas e histórias desenvolvidas a cada álbum, tendo como suporte as faixas e os videoclipes. Portanto, ao contrário de todas as bandas de cartoon antecessoras, o tempo passa para os integrantes do Gorillaz e eles vão sendo transformados aos poucos.
Filme na Netflix
O que nos leva àquele que talvez seja, há anos, o mais aguardado produto com a marca Gorillaz: um longa-metragem. Sabe-se que o projeto está em desenvolvimento e que o filme será lançado diretamente por streaming, via Netflix. Entretanto, apenas este detalhe foi confirmado pela dupla criadora da banda. Nada mais foi dito ainda a respeito da história, como ela será e quem mais estará envolvido no projeto.
Braços dados com o hip hop
Uma das propostas de Damon Albarn ao montar o projeto paralelo foi se aproximar de suas paixões na adolescência (como o Clash ou as bandas two-tone, por exemplo) distanciar o máximo possível da sonoridade traçada pelo Blur naquele auge da banda nos meados dos anos 1990. Faz sentido, afinal, nos anos anteriores ele foi catapultado ao estrelato como um dos cânones do britpop, que resgatou a sonoridade clássica sixtie do rock britânico e a levou de volta às paradas mundiais. Portanto, sobrou para o Gorillaz um terreno fértil apontando para outros caminhos da música pop. Mais groove. Menos destaque para guitarras e violões. Mais diálogo com outros gêneros, como a world music e o hip hop. Aliás, a fusão com o hip hop foi o principal acerto da nova sonoridade. Era um começo de anos 2000 e o rock ainda flertava timidamente com programações eletrônicas, sintetizadores e sobretudo o canto falado e ritmado criado pelos pretos nova-iorquinos. Então, mesmo enfrentando uma forte concorrência com o potente novo rock retrô e regressivo daquele início de década (Strokes, White Stripes, Franz Ferdinand, Killers, Libertines, Interpol, Yeah Yeah Yeahs), foi justamente a adição do rap como um forte elemento que fez o Gorillaz apontar para o futuro e dialogar com uma geração mais nova de fãs por todo esse tempo. Não só isso: provou que o rock poderia abraçar o hip hop justamente quando o gênero passou a ter extrema importância mercadológica, vendendo cada vez mais milhões e milhões no novo século, chegando a encabeçar escalações diárias dos mais tradicionais festivais de rock e música pop.
Clint Eastwood
Já em seu álbum de estreia, epônimo, de 2001, o maior cartão de visitas do projeto era um casamento perfeito com o hip hop. No som e no discurso. “Clint Eastwood” não foi o primeiro single do disco, mas foi aquela faixa responsável pelo breakthrough da banda nas rádios e programações da MTV ao redor do mundo. Em cima de uma harmonia por demais simplória, Albarn e o rapper norte-americano Del The Funky Homosapien (e primo de Ice Cube, também ator e ex-NWA), comanda a história do finado amigo de Russell cujo espírito volta à terra para se apossar do corpo do baterista e promover uma grande ode ao mundo dos mortos-vivos. Aliás, a temática zumbi sempre foi uma das grandes paixões da dupla criadora. E é justamente ela que domina a história do videoclipe, que já começa com uma citação do filme Despertar dos Mortos, um dos vários clássicos assinados pelo cultuado diretor George Romero. Na trama, um monte de gorila desperta das catacumbas para perseguir os vivos, sobretudo Murdoc, 2-D e Noodle (já que Russell dá início ao levante protagonizando a atividade paranormal). Duas décadas depois, a faixa ainda é poderosa demais para não deixar ninguém parado, sem dançar, nem calado, sem cantarolar ao menos o refrão. E o que o famoso ator e diretor hollywoodiano – mais ligado a produções de dramas e faroestes – tem a ver com a história para dar título à música? Com a história nada. Entretanto, no início do arranjo, um fraseado instrumental criado inadvertidamente por Damon no estúdio durante os rascunhos para a canção lembra vagamente o principal tema musical do western spaghetti O Bom, O Mau e O Feio (1966), dirigido pelo italiano Sergio Leone e com Eastwod como um dos protagonistas.
Feel Good Inc.
Grande destaque do segundo álbum, Demon Days (2005), tendo inclusive recebido um Grammy (melhor colaboração pop com vocais) e outras duas indicações (gravação do ano, melhor videoclipe) ao prêmio máximo do mercado fonográfico mundial. Aqui, Albarn se junta ao trio de rap De La Soul para detonar uma grande dinamite sonora capaz de explodir qualquer pista de dança ou multidões em gigantes arenas. A letra, a começar pelo nome jocoso e sarcástico, faz uma critica severa à obrigação de demonstrar bem-estar e felicidade extremada (sobretudo nas redes sociais) que tem tomado de assalto a população mundial desde a internet virou vício diário. O clipe, com fortemente inspirado pelo trabalho do japonês Hayao Miyazaki e seu estúdio Ghibli, trata da imbecilização promovida pela cultura de massa e questiona a falta de liberdade intelectual vinda a partir dela. Aliás, a risada malévola do DJ Maseo arrepia a cada audição – ainda mais quando o De La Soul é convocado por Albarn para participar ao vivo da música, em turnês e apresentações especiais.
Um milhão de amigos
Desde o início a proposta do Gorillaz foi ter um monte de convidados especiais em suas faixas. A cada disco, na ficha técnica, fazendo participações ou assinando remixes, desfila um panteão de grandes representantes da música em todas as vertentes. Olha a lista de “alguns” destes nomes: Dan The Automator, Kid Coala, Miho Hatori (Cibo Matto), Del The Funky Homosapien, Ibrahim Ferrer (Buena Vista Social Club), Dave Rowntree e Graham Coxon (Blur), Tina Weymouth e Chris Frantz (Talking Heads e Tom Tom Club), Soulchild, Phi Life Cypher, Danger Mouse, Simon Tong (Verve), Demon Strings, Neneh Cherry, De La Soul, U Brown, Ike Turner, MF Doom, Roots Manuva, Martina Topley-Bird (Tricky), Shaun Ryder (Happy Mondays e Black Grape), Dennis Hopper (ator e diretor de Easy Rider – Sem Destino), Spacemonkeyz, Snoop Dogg, Mos Def, Bobby Womack, Gruff Rhys (Super Furry Animals), Little Dragon, Mark E. Smith (Fall), Lou Reed (Velvet Underground), Paul Simonon (Clash), Mick Jones (Clash, Big Audio Dynamite), Jean-Michel Jarre, Grace Jones, Pauline Black (Selecter), Terry Hall (Specials), Bees, Einar Orn (Sugarcubes), Hot Chip, Metronomy, Soulwax, Danny Brown, Mavis Staples (Staples Singers), Pusha T, Little Simz, Kali Uchis, Benjamin Clementine, Jehnny Beth (Savages), Noel Gallagher (Oasis), Rag’n’Bone Man, Kilo Kish, Carly Simon, George Benson, James Ford (Simian Mobile Disco, Last Shadow Puppets), Beck, Robert Smith (Cure), Schoolboy Q, Prince Paul, St Vincent, Peter Hook (New Order, Joy Division), Slowthai, Slaves, Unknwon Mortal Orchestra, Joan As Police Woman, Tony Allen (Fela Kuti), Leee John, Earl Sixteen, Skepta, Stuart Zender e Simon Katz (Jamiroquai) e Elton John. É pouco?
Como unir o melhor das sonoridades recentes do rock subterrâneo americano e passar a satisfazer as massas interessadas em entretenimento
Texto por Abonico R. Smith
Fotos de iaskara
Alguns anos atrás o semanário britânico New Musica Express estampou na sua capa que Dave Grohl era o “cara mais cool do rock de hoje”. Fica difícil discordar disso mas eu ainda arriscaria ir além e dizer: Dave Grohl é a personalidade mais fluida do rock de hoje. Basta presenciar um show de sua banda para ter plena certeza disso.
Em primeiro lugar, Grohl nunca desistiu do underground. Primeiro quando, egresso de uma banda hardcore de Washington DC chamada Scream, enfrentou junto com Kurt Cobain e Krist Novoselic todo o turbilhão chamado mainstream ao qual o Nirvana foi jogado meteoricamente logo após ocupar em definitivo o cargo de baterista do grupo. Depois, imediatamente quando o trio acabou e Kurt se matou, Dave trancou-se em estúdio em forjou, com um material ainda inédito como cantor e compositor, uma banda de um cara só. Adicionou elementos como emocore, power pop, punk e hardcore e bateu tudo o que ouvia durante o período de sua adilescência (isto é, meados dos anos 1980) no liquidificador. Quando precisou montar uma banda para acompanhá-lo ao vivo nos palcos com este novo material, não pensou duas vezes: recrutou um time de primeira, com músicos vindos de pequenos estandartes dos subterrâneos norte-americanos (bandas como Sunny Day Real Estate, No Use For a Name, Germs) e encorpou ainda mais o peso de tudo isso. A partir daí foi só correr para o abraço da galera novamente. E levar às grandes massas, tal qual fizera com o Nirvana, um pouco de música (alternativa) de qualidade.
Assim se fez a fama do Foo Fighters ao longo destes vinte e poucos anos. O tempo foi passando e, gradualmente, a nova turma de Dave Grohl foi se transformando em uma banda de arena. Daquelas de comandar multidões em transe com riffs e solos de guitarra, diversos arranjos estendidos e aqueles finais épicos, com “todo mundo dando junto a mesma nota final” e a plateia urrando de emoção logo em seguida. E você acha que o nosso Mr. Undergound não gosta disso? Claro que adora e vai além. Não bastasse a conquista imediata dos milhares de fãs à sua frente com seu carisma, Grohl se diverte posando de herói do rock. Faz caras, caretas e poses (seja cantando ao microfone ou brincando com o público através de uma câmera instalada atrás do palco).
Musicalmente também expande os horizontes quando em turnê. O Foo Fighters vira banda grande. Toca com em volume bem alto. Pop ao extremo. Mandando um show de duas e horas onde desfila hit atrás de hit, todos acompanhados em uníssono por milhares de vozes. Capaz de misturar no meio do repertório um improvisado medley de covers de Michael Jackson, John Lennon, Van Halen, Ramones e Queen só para apresentar cada integrante no palco e não parecer algo esquizofrênico. Ou, então, inserir uma batida de reggae ali ou um inusitado trio de backing vocals acolá
Aconteceu tudo isso e mais um pouco na terceira escala da turnê brasileira do álbum Concrete and Gold, lançado no ano passado. Foram cinco shows em quatro cidades, sendo o de Curitiba (Pedreira Paulo Leminski, sexta-feira, 2 de março de 2018) o mais cheio de todos em questão de proporção; o local, com capacidade para vinte mil pessoas, estava lotado. Dave Grohl e seus velhos comparsas se divertiram bastante do palco levando o undergound às massas. A massa, por sua vez, também se divertiu, mas com muito pouca gente tendo noção do que a sonoridade da banda representa.
Sim, porque o rock’n’roll, para quase todos que estavam ali na Pedreira, tornou-se sinônimo de apenas entretenimento. Satisfação imediata. Shows de proporções gigantescas em estruturas previamente preparadas para receber multidões. Espaço quase zero para questionamentos ou quebra de barreiras e paradigmas. Plateia comportadinha, autômata, um tanto acéfala, programada para responder ao seu astro favorito da música naquele exato momento que ele fez o comando. Um show do Foo Fighters é um típico exemplo deste cenário pobre e infeliz que vivenciamos hoje. A culpa não é de Grohl ou qualquer outro artista, que só aproveitam para surfar na onda e ganharem um dinheiro mais do que justo de quem se dispõe a pagar os caros preços do ingresso. No caso de Dave, Nate Mendel (baixo), Chris Shiflett (guitarra), Pat Smear (guitarra), Taylor Hawkins (bateria) e Rami Jafee (teclados). Eles merecem fazer um bom de pé de meia. Já deram o seu quinhão para História do Rock. Os primeiros álbuns do Foo são muito bons e as bandas anteriores de alguns deles é um dos verdadeiros tesouros a serem procurados e encontrados pelos fãs mais atentos de sua atual banda. Vê-los agora, tocando para vinte mil pessoas (ou até mais, no caso dos estádios do Maracanã e Allianz Parque, no Rio de Janeiro e em São Paulo, dias antes), é sinal de merecimento por tudo o que fizeram quando tinham vinte e poucos anos. Agora, aos vinte e poucos anos do grupo criado por Grohl, é o tempo de colher os louros. E o duto de grana despejada por um público sedento por prazer fugaz de ir a um concerto de rock não pela música em si mas para fazer vídeos e selfies para mostrar aos amigos nas redes sociais que o fulano esteve por lá.
Ah sim, concerto gigantesco que se preze também precisa ter uma atração de abertura de peso. Desta vez o Foo Fighters trouxe ao Brasil o Queens Of The Stone Age, banda criada no semelhante modo de uma só figura central e no comando de tudo. Também amigo de lona de data de Grohl, Josh Homme trouxe a tiracolo o show referente a um álbum também lançado no ano passado. Segundo disco lançado pelo cultuado selo independente americano Matador, Villains marcou uma mudança de direcionamento criativo na banda, que pela primeira vez contou nas gravações de estúdio com os mesmos músicos que saem em turnê com Homme. Só que, como toda banda de abertura, o QOTSA enfrentou problemas com o som. No espaço gigantesco da Pedreira, por exemplo, tudo pareceu muito embolado. Foram 17 canções diferentes apresentadas no set list, mas cada música ali parecia apenas uma mera repetição da anterior. Sempre naquele mesmo esquema stoner, com uma parede de riffs sujos desenhando as texturas por trás do vocal limpo e melódico de Josh, só que com nuances e diferenças desaparecendo no meio da multidão.
Só que diante do estado atual de letargia da plateia rock’n’roll engana-se quem pensa que alguém ali, exceto críticos de rock chatos, exigentes e insensíveis, estava preocupado com isso. Muitas meninas suspiravam sem parar, atônitas pela presença diante da beleza white trash de Josh. Este, por sua vez, disparava a falar entre as músicas, metendo uma palavra fucking atrás da outra e teimando em insistir na brincadeira idiota com a plateia dizendo que aquele dia seria um sábado. Não precisava de semancol. Estava ali para divertir e fazer passar o tempo até a entrada do headliner da noite.
Dave Grohl tocou com Kurt Cobain no Nirvana por três anos. Lá em 1991 Kurt profetizava o que viria a acontecer no futuro. “Aqui estamos nós/ Nos entretenha”, berrava ele, com sua gritante veia sarcástica, no contundente refrão de “Smells Like Teen Spirit”, o maior hino da cambada de jovens losers que não viam salvação para si próprios já naquela última década do Século 20. Certamente, se vivo estivesse, o vocalista não compactuaria com a engrenagem comercial que tomou conta do cenário do rock. Kurt, afinal, era um eterno loser. Morreu também por ser naive e por causa de sua teimosia na pureza. Mas seu baterista, tão cool quanto fluido, soube muito bem “evoluir” de categoria e passar a ser um winner. E todos nós sabemos – como bem ressalta o velho provérbio de uma idiota mentalidade instaurada desde os primórdios do sistema político dos EUA – the winner takes it all (“o vencedor leva tudo”). Pena que o gigantesco público que ama consumir o rock’n’roll hoje tenha se alinhado a este espírito, sem dar a mínima à essência revolucionária, insatisfeita e rebelde do gênero musical que instaurou os conceitos de adolescência e juventude à História.
Set List Foo Fighters: “Run”, “All My Life”, “Learn To Fly”, “The Pretender”, “The Sky Is a Neighborhood”, “Rope”, “Sunday Rain”, “My Hero”, “These Days”, “Walk”, “Breakout”, medley (“Billie Jean”/”Imagine”/”Jump”/”Blitzkrieg Bop”/”Love Of My Life”), “Under Pressure”, “Monkey Wrench”, “Times Like These”, “Generator”, “Big Me”, “Best Of You”. Bis: “Dirty Water”, “This Is a Call” e “Everlong”.
Set List Queens Of The Stone Age: “My God Is The Sun”, “Burn The Witch”, “In My Head”, “Feet Don’t Fail Me”, “The Way You Used To Do”, “Smooth Sailing”, “The Evil Has Landed”, “Sick, Sick, Sick”, “The Lost Art Of Keeping a Secret”, “Make It Wit Chu”, “If I Had a Tail”, “Domesticated Animals”, “Little Sister”, “You Think I Ain’t Worth A Dollar But I Feel Like a MIllionaire”, “No One Knows”, “Go With The Flow” e “A Song For The Dead”.
P.S.: Uma estrofe inteira de uma das faixas de Villains, o novo álbum de Queens Of The Stone Age, é um resumo disso tudo comentado aí em cima. Em “Domesticated Animals” (“Animais Domesticados”, em português), Josh dispara: “Pretty pets, once were wild/ Domesticated love slave, give us a smile/ You got a number, is it the same?
Who you belong to?/ You feral or tame?/ Probably tame” (“Animais de estimação bonitos, uma vez eram selvagens/ Domado amor escravo, nos dê um sorriso/ Você tem um número, é o mesmo?/ Para quem você pertence?/ Você é selvagem ou manso?/ Provavelmente manso”). A música, inclusive, esteve presente no set list do QOTSA na Pedreira Paulo Leminski. Sintomático, não?