Movies, Music

Nosso Sonho – A História de Claudinho & Buchecha

Não há como não se emocionar com a trajetória de sofrimento e perseverança da dupla que levou o funk carioca a outro patamar

Texto por Abonico Smith (com colaboração de Luciano Vitor)

Foto: Manequim Filmes/Divulgação

Na segunda metade dos anos 1980, quando o hip hop se popularizou nos Estados Unidos para muito além dos guetos, seus versos também sofreram um processo de transformação. Passaram das crônicas do dia a dia de seus habitantes – que variavam entre a celebração das festas dos finais de semana ao vício em drogas – para críticas sociais bem mais pesadas em profundas, retratando preconceito racial e os frequentes confrontos violentos com a polícia pelas ruas dos bairros de periferia. Até que o gangsta rap tornou-se praticamente sinônimo desse gênero musical.  Entretanto, uma turma oriunda de Miami e região começou a fazer sucesso ao optar por outra vertente lírica: a temática sexual, muitas vezes de modo bem explícito.

Logo, o miami bass – o nome foi dado por conta dos graves pesados embalados por uma batida eletrônica minimalista extraída de uma Roland TR-808, a mesma utilizada por nomes clássicos do electro como Afrika Bambaataa e Mantronix  – foi o incorporado ao léxico sonoro dos bailes funk realizados nas favelas e morros do Rio de Janeiro por equipes de som como a Furacão 2000 (que também investia em programas de TV). A malícia e a malemolência do jeito carioca de ser encontraram identificação imediata e então o funk caiu no gosto do carioca, a ponto de se tornar uma nova vertente musical acoplando o gentílico ao batismo.

Com o Plano Real e a troca definitiva do formato usado pelo mercado fonográfico (os compact discs substituindo os vinis nas lojas e se multiplicando feito chuchu na serra nos ambulantes com produtos piratas), o funk carioca logo cruzou fronteiras tanto estaduais quanto socioeconômicas, emplacou os primeiros hits nas rádios de todo o país e fabricou seus primeiros ídolos, como Abdullah, Mr Catra e Cidinho & Doca (“Rap das Favelas”). Aos poucos, por causa de linhas melódicas mais adocicadas e letras de cunho romântico, uma turma instaurou o segmento do funk melody. Assim se consagraram MC Marcinho (“Glamurosa”, “Garota Nota 100”) e Claudinho & Buchecha (“Quero Te Encontrar”, “Só Love”). Esta última dupla chegou a ultrapassar a marca do disco triplo de platina (750 mil cópias) com os dois primeiros álbuns e duplo de platina (500 mil) com o seguinte. Tudo isso num espaço de apenas três temporadas, entre os anos de 1996 e 1998. O quarto trabalho, registrado ao vivo e com repertório que pegava o melhor já feito até então, foi lançado no comecinho de 1999 e ganhou o disco de ouro (100 mil).

Onipresentes em quase todos os programas musicais da TV (inclusive os mais famosos, como os de Faustão, Xuxa, Gugu, Hebe e Eliana), os dois amigos do complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, voltariam a experimentar o gostinho de mais um hit nacional, “Fico Assim Sem Você”, composta pelo funkeiro pioneiro Abdullah. A letra citava duplas e dobradinhas impensáveis se rompidas (futebol sem bola, Piu-Piu sem Frajola, circo sem palhaço, beijo sem amasso, Romeu sem Julieta, queijo sem goiabada) para falar sobre solidão e incompletude. Contudo, como uma espécie de premonição (tão involuntária quanto sorrateiramente certeza), havia aqui também um verso como “Buchecha sem Claudinho”. A faixa foi incluída no sexto álbum Vamos Dançar, lançado no primeiro dia de abril e 2002. Pouco mais de três meses depois, ao retornar de uma apresentação na cidade paulista de Lorena, situada no Vale do Paraíba, próxima do sul do estado do Rio de Janeiro, veio a tragédia: o carro de propriedade de Claudinho saiu da estrada naquela madrugada chuvosa de 13 de julho e chocou-se violentamente contra uma árvore. O cantor, que dormia no banco do carona, morreu na hora com o impacto do acidente. A van em que estavam Buchecha e o resto da equipe dos artistas, viajava logo atrás. Encerrava-se desta maneira a trajetória de glória, fama e conquistas de uma das duplas mais queridas da música brasileira dos anos 1990.

Nosso Sonho – A História de Claudinho & Buchecha (Brasil, 2023 – Manequim Filmes) chega nesta semana aos cinemas justamente para contar esta trajetória. Da sólida amizade de infância ao instante fatal, passando pelo sonho adolescente de vencer na vida (fosse como artistas ou, no caso de Buchecha, trabalhando com carteira assinada como office boy) e superar traumas pessoais ligados a problemas de violência familiar e a tênue proximidade com o crime. De um lado o garoto expansivo e descontraído, que se joga nas atividades e inventa soluções criativas para fazer as coisas darem certo (como na já famosa cena do orelhão público servindo como telefone da “firma de agenciamento artístico”). Do outro, um guri mais tímido e racional, mas não menos talentoso e habilidoso com as palavras (a ponto de procurar e achar no dicionário termos nada usuais como abjudicar, só para usar em suas letras). Assim, a vida de Claudio Rodrigues de Mattos e Claucirlei Jovêncio de Sousa é contada em quase duas horas de maneira leve, descontraída e tão certeira quanto as canções gravadas por eles.

A química entre os dois protagonistas é tão impressionantes quanto a dos biografados. Poucas vezes, inclusive, foi visto no cinema nacional uma interpretação tão visceral quanto a de Lucas Penteado na pele de Claudinho. O jeito despachado e de eterno moleque, a língua presa, o sonhar que se permite voar alto e ir atrás para cavar as oportunidades e consegui-las. Mesmo não sendo o foco maior na narrativa, acaba por hipnotizar qualquer espectador. Já o contido Buchecha de Juan Paiva também cativa e conquista um lugar especial para quem assiste ao filme. Dividido entre o temor pela instabilidade da vida de artista e o grande respeito às responsabilidades e obrigações carregados junto com o status social de sua profissão (inclusive na hora de compor versos de pura genialidade como “controlo o calendário sem utilizar as mãos”), o jovem também narra várias cenas e tem sua vida pessoal mais esmiuçada no roteiro. Suas dificuldades são transpassadas na tela diretamente ao coração de todos nós, principalmente na turbulenta relação com o pai, que junta na mesma equação amor, perdão, abusos e sofrimento. Curiosidade: os dois atores trabalharam juntos em Viva a Diferença, a mesma (cultuada e bem-sucedida) temporada de Malhação que revelou a forte união em cena das cinco atrizes que depois viriam a fazer a série As 5ive.

O time de coadjuvantes também brilha. Tal como Lucas, Nando Cunha cresce nas cenas intensas em que faz o Buchechão, muitas delas também envolvendo a paixão pela música. Antonio Pitanga (Seu Américo, o dono do bar frequentado pelo pai de Claucirlei); Tatiana Tiburcio (a mãe, Dona Etelma, que sempre quer imprimir ao adolescente Buchecha uma vida correta e digna); Lellê e Clara Moneke (as namoradas/esposas dos astros, em pequenas grandes pontas); Marcio Vito e Isabela Garcia (Seu Toco e Dona Judite, respetivamente o patrão e a chefe do jovem office boy) abrilhantam o elenco com atuações fidedignas. Se o roteiro não sai muito do trivial, o diretor Eduardo Albergaria aproveita diálogos, interpretações e pequenos trechos musicais (cantados pelos próprios Lucas e Juan, diga-se) para fazer seu filme voar junto com a dupla de funk melody.

Acompanhar todo o corre vivido por Claudinho & Buchecha faz a gente traçar paralelos com a perseverança, a luta, o sonho e o sofrimento de outros artistas que vieram do underground da música brasileira, lendas como Cartola e Lupicínio Rodrigues ou gente contemporânea como Negro Leo e Lê Almeida. O longa sobre a inocência e a descoberta de um novo mundo para quem veio de uma das muitas comunidades regionais sem a assistência do poder público é um dos mais belos e emocionantes enredos cinematográficos nacionais deste ano.

Music

Coolio

Oito motivos para lembrar sempre o rapper californiano que estourou no mundo todo em 1995 com o hit “Gangsta’s Paradise”

Texto por Abonico Smith

Foto: Reprodução

Já era tarde da noite do dia 28 de setembro no Brasil quando chegou a notícia da morte do rapper Coolio. Postada por seu empresário em redes sociais, a nota não dizia a causa mortis mas contava que o artista fora achado desacordado em Los Angeles, no banheiro da casa de um amigo, que chamou, sem muito sucesso, os paramédicos.

Coolio tinha 59 anos de idade e deixa seis filhos. Ele continuava na ativa, fazendo shows e gravando esporadicamente. Sua discografia tem três álbuns, sendo o período de maior sucesso os meados dos anos 1990, quando estourou nas rádios e MTVs do planeta todo com o hit “Gangsta’s Paradise”. Contemporâneo de grandes e populares nomes do hip hop – como Dr Dre, Ice Cube, 2pac Shakur, Notorious BIG, MC Hammer e vanilla Ice – foi justamente com este com quem fizera sua última apresentação ao vivo, uma semana antes. Seu pseudônimo, segundo reza a lenda, veio de uma tentativa mal sucedida de cantar em um evento uma música gravada pelo cantor romântico espanhol Julio Iglesias. Daí veio o apelido, dado por amigos, de Coolio Iglesias.

O Mondo Bacana homenageia este grande rapper – que também foi ator bissexto – com oito bons motivos para lembrar-se sempre dele.

Cria de Compton

Quem conhece a história do grupo de hip hop NWA sabe muito bem a barra pesada que é viver nesse bairro negro de Los Angeles. Algumas das letras de suas canções e a história contada na cinebiografia mostram toda a dor e sofrimento do dia a dia na pobreza aliada a uma grande violência interna, muito disso alimentado por intervenções da polícia. Coolio também veio de lá. Nascido Artis Leon Ivey Jr, ele é contemporâneo do pessoal do NWA. Mas antes de se estabilizar na carreira artística trabalhou como segurança do aeroporto de LA e ainda alistou-se como bombeiro voluntário para combater as queimadas que assolam a região regularmente quando chegam as altas temperaturas. Ralou bastante para ganhar grana até ver a fama chegar por meio da música.

Tommy Boy

Uma das marcas de excelência no hip hop norte-americano dos anos 1980 e 1990 é da gravadora Tommy Boy Records. Selo fundado em 1981 por um judeu nova-iorquino de nome Tom Silverman, a iniciativa formou anos depois uma parceria com a major Warner e fez decolar a carreira de um monte de gente bacana e importante de seu elenco. Só para citar alguns nomes: Stetsasonic, Force MDs, Afrika Bambaataa, Queen Latifah, De La Soul, Digital Underground, Naughty By Nature, House Of Pain e Coolio. Este assinou contrato em 1994, dando início à carreira solo após alguns anos participando do grupo WC & The Maad Circle. Por lá gravou e lançou três álbuns, justamente sua fase de maior popularidade e sucesso comercial.

Stevie Wonder

Songs in the Key of Life, de 1976, é uma das obras mais aclamadas do cantor e compositor revelado pelo icônico selo Tamla-Motown. Décimo oitavo álbum de estúdio da carreira, esse disco representou uma fase bastante prolífica de Stevie. Ele jorrava tanta criatividade na época que não parava de compor para o disco. Tanto que gravou (e chegou a tocar quase todos os instrumentos no estúdio) 21 faixas, que foram todas lançadas de um modo nada usual: 17 entraram num vinil duplo e as restantes ficaram para um compacto de 7 polegadas que vinha acompanhando o álbum. A terceira faixa do lado B do primeiro disco, Pastime Paradise, é a grande responsável pelo estouro da carreira de Coolio. Uma das primeiras músicas a usar um sintetizador Yamaxa GX-1 soando como toda uma orquestra de cordas, a canção faz reflexões sobre materialismo e egocentrismo, falando em um tal de “paraíso de passatempo”. Sampleada com a voz e a letra reescrita por Coolio, virou “Gangsta’s Paradise”. Incialmente Wonder não havia visto a ideia dos novas versos com bons olhos, mas depois de pedir para reescrever alguns trechos mais pesados e tirar os palavrões, deu a liberação para o lançamento da faixa. E até cantou com Coolio e LV (que faz os vocais dos trechos mais melódicos da letra) numa apresentação ao vivo durante a cerimônia do Billboard Awards.

Gangsta’s Paradise

Single lançado no primeiro dia de agosto de 1995 para ser o chamariz do filme Mentes Perigosas, que chegou às telas dez dias depois. Os versos escritos por Coolio, LV e o produtor Doug Rasheed fazem menção ao duro cotidiano de um jovem na periferia negra de Los Angeles, sem muita perspectiva de longevidade na vida e cercado de violência por todos os lados. O que, certamente, quase vinte anos depois, traz uma evolução de sentidos e significados para o que Stevie Wonder cantava em “Pastime Paradise”. Mantendo a dramaticidade das cordas e mantendo a dinâmica crescente do coro gospel também registrado na faixa original, a gravação caiu como uma luva para ser a música-tema do filme. Não à toa foi o single mais vendido daquele ano nos EUA, conquistando depois muitos prêmios, inclusive o Grammy. Na Europa, liderou a parada de diversos países. No videoclipe, dirigido por Antoine Fuqua (que começou assinando clipes e depois passou para longas-metragens e episódios de seriados), Pfeiffer faz participação especial.

Mentes Perigosas

Drama protagonizado por Michelle Pfeiffer e produzido pela mesma dupla responsável por blockbusters como FlashdanceUm Tira da Pesada e Top Gun: Ases Indomáveis,  que mostra a difícil relação entre uma professora branca e seus alunos adolescentes em uma escola situada no subúrbio latino e afro-americano da Califórnia. Os garotos, todos de classe média baixa, envolvidos com gangues e o tráfico e consumo de drogas, aos poucos vão sendo conquistados pela doçura e habilidade da mestra em usar poesia, música, Bob Dylan e muito afeto, muito carinho. Assim ela vai trazendo-os para seu lado pouco a pouco. O principal problema é um aluno chamado Emilio Ramirez, cuja vida corre sérios riscos. Entretanto, é justamente em torno do que vai acontecendo com ele que vai se desenrolando boa parte da trama e das reviravoltas.

Fantastic Voyage

Um ano antes do estrelato obtido com “Gangsta’s Paradise”, Coolio lançou seu primeiro álbum, batizado It Takes a Thief. O single de maior sucesso deste disco foi o terceiro, “Fantastic Voyage”. O clipe – que traz uma ponta de B-Real, do Cypress Hill – traz uma história surreal: gira em torno de uma viagem do vocalista e sua trupe a bordo de um Impala conversível de 1965 que era uma bicicleta azul e depois volta a sê-la.

C U When U Get There

Último grande hit de Coolio durante seu tempo na Tommy Boy. A faixa, de 1997, foi construída em cima de uma melodia-base do alemão Johann Pachelbel, compositor barroco que viveu no século 17. Seu “Canon em Ré Maior” foi criado originalmente para três violinos, baixo contínuo e uma giga (dança barroca popular na Inglaterra e na França). Coolio, através de seu canto falado de versos emocionantes colocado em uma batida eletrônica lenta e entremeados por um refrão intenso com direito a coro gospel.

Kurt Cobain

Como muitos rappers norte-americanos, Coolio era louco pelo líder do Nirvana. Ao ver o clipe de “Heart-Shaped Box”, ele botou na cabeça de querer fazer, um dia, uma colaboração com Kurt. Contudo, não houve muito tempo para alimentar o sonho, com a morte do ídolo em abril de 1994. Para o site da revista Spin, em uma entrevista realizada em 2014, Coolio comentou sobre o peso que as drogas fazem na pessoa deprimida e o péssimo hábito de família e sociedade não dares a mínima para isso no momento que estas pessoas mais precisam de ajuda. E ainda se colocou no lugar do Kurt justamente por ter, em um passado não muito distante, mergulhado no uso de cocaína.