Em agosto de 2008, o Mondo Bacana publicava a resenha do show que celebrava os 50 anos do primeiro disco da bossa nova
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Texto por Rodrigo Browne
Foto: Divulgação/Beti Niemeyer
João Gilberto morreu há um mês, no último dia 6 de julho. Sua obra, no entanto, é imortal. Na semana do seu falecimento, todos os noticiários esgotaram todos os adjetivos para esse artista que pode ser definido em uma única palavra: genial. Sua importância para música internacional é reconhecida pela crítica especializada em todos os cantos do mundo. Por isso, vamos relembrar a resenha publicada em 2008 pelo Mondo Bacana, sobre o show histórico que João (um banquinho e um violão) fez para celebrar os 50 anos da Bossa Nova em agosto de 2018 no Theatro Municipal do Rio de janeiro. Foi um espetáculo inesquecível.
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Há 50 anos, em agosto de 1958, chegava na Lojas Assunção, em São Paulo, um disco emblemático: o compacto “Chega de Saudade”, de um quase desconhecido baiano chamado João Gilberto. Depois de ouvir a faixa-título de um lado e o baião “Bim-Bom” do outro, o gerente da loja, Álvaro Ramos, não resistiu: quebrou o disco. Indignado com a “porcaria” que os cariocas tinham lhe enviado exclamou: “por que gravam cantores resfriados?”.
Essa história – lembrada pelo escritor Ruy Castro no livro Chega de Saudade – revela uma reação natural a quem estava acostumado com um estilo de cantores brasileiros e que – de repente – fica sem chão quando se depara com algo absolutamente diferente, uma “bossa nova” que estava surgindo para revolucionar a música brasileira e que, posteriormente, viria a influenciar uma enorme geração de músicos do Brasil e do exterior.
O Brasil vivia então um período de crescimento econômico fabuloso com a era JK, a seleção brasileira conquistava na Suécia sua primeira Copa do Mundo de futebol. Com tantas novidades, esse estilo musical tornou mais democrático a possibilidade de novos artistas cantarem sem a necessidade da impostação de voz, tão comum nos grandes nomes da época de ouro do rádio nacional.
O baiano João Gilberto mostrava que era possível fazer boa música cantando baixinho, suave e acompanhado apenas de um banquinho e um violão. Somava-se a esse quadro o início de carreira de grandes nomes da música brasileira como Tom Jobim e do diplomata e poeta Vinicius de Moraes, que serviram como régua e compasso para a novidade musical que – sem eles imaginarem – estava começando a conquistar o mundo.
De lá para cá são seis décadas que consolidaram a moderna batida da MPB. Além dos músicos já citados, no primeiro momento a bossa nova tem nomes fundamentais como Elizeth Cardoso (que também gravou “Chega de Saudade” em 1958, poucos meses antes, mas sem a batida joão-gilbertiana), Carlos Lyra, Marcos Valle, Johnny Alf, João Donato, Nara Leão, Roberto Menescal, Zimbo Trio, Oscar Casto Neves, Baden Powell, Newton Mendonça, Silvia Teles, Os Cariocas e Dick Farney entre outros medalhões do movimento.
Posteriormente, na década de 1960, uma outra legião de grandes músicos foi influenciada por eles, com destaque para Chico Buarque, Joyce, Caetano Veloso, Miúcha, Toquinho, Leny Andrade, Gilberto Gil e Elis Regina. Estes são alguns dos muitos artistas que começaram sua carreira musical com os acordes da bossa nova.
Para comemorar os 50 anos de Bossa nova, em 2008, foram agendados dois concertos no Theatro Municipal do Rio de Janeiro: o primeiro, um encontro de Caetano Veloso e Roberto Carlos; no dia seguinte, uma apresentação com João Gilberto sozinho no palco. Se a apresentação de Caetano e Roberto foi excelente, a noite de João Gilberto foi histórica. Irrepreensível do início ao fim, o “papa” da bossa nova abençoou o público presente no domingo, dia 24 de agosto, com um show perfeito e emocionante que certamente será lembrado para sempre na história da música brasileira.
Logo no início – com seu protocolar atraso (55 minutos!) para o qual ninguém deu bola – João Gilberto começou com uma homenagem ao conterrâneo Dorival Caymmi, recém-falecido, emplacando os sambas “Você já foi à Bahia?”, “Doralice” e “Rosa Morena”. Seu jeito macio de cantar baixinho aos poucos foi invadindo cada canto do teatro silencioso. O respeito obsequioso da plateia agradou o músico que – para surpresa de muitos – estava num daqueles dias inspirado e, melhor ainda, muito bem humorado.
E o show foi acontecendo. Generoso, ele interpretou no melhor estilo voz & violão (que no caso de João fundem-se harmoniosamente de forma indissociável, como se fosse um único instrumento) um vasto repertório (veja o set list logo mais abaixo) que incluía clássicos da bossa ao lado de sambas não tão conhecidos, como o ótimo “13 de ouro” (de Marino Pinto e Herivelto Martins) ou as canções da Sinfonia do Rio de Janeiro “Hino ao Sol”/“O Mar” (compostas por Tom Jobim e Billy Blanco). A cada canção um arranjo surpreendente, uma reinvenção de acordes – como em “Lígia”, “Samba do Avião” ou na belíssima “Retrato em Branco e Preto”.
Depois de vinte músicas, João saiu de cena. Atendendo aos pedidos de bis, ele voltou. E, para surpresa geral, estendeu sua apresentação por mais meia hora. Foi nessa parte que se deu um fato fabuloso. João iniciou o clássico “Chega de Saudade”. O público começou a acompanhar baixinho a canção, no mesmo tom do cantor, que normalmente é arisco a essas “intromissões”. Mas (surpresa!), ele a-do-rou e, após mais duas músicas, virou-se para a plateia e a convidou a cantar “Chega de Saudade” novamente, com ele tocando e fazendo o contracanto. A sensação foi de um transe coletivo, como num mantra, que transformou o Theatro Municipal numa espécie de templo da música brasileira.
Sorridente e feliz da vida, ele disparou: “O problema é que agora eu não quero ir embora”. Mas foi. Retirou-se. O público aplaudiu de pé durante cinco minutos. Na volta, a caminho de Ipanema, da janela do táxi, eu vi o Redentor. Que lindo!
Set List: “Você já foi à Bahia?”, “Doralice”, “Rosa Morena”, “13 de Ouro”, “Meditação”, “Preconceito”, “Samba do Avião”, “Hino ao Sol”, “O Mar”, “Ligia”, “Caminhos Cruzados”, “Não Vou pra Casa”, “Disse Alguém”, “Corcovado”, “Chove lá Fora”, “Nosso Olhar”, “Wave”, “De Conversa em Conversa”, “Desafinado”, “Estate” e “Isto Aqui o que é?”. Bis: “Aos Pés da Cruz”, “Da Cor do Pecado”, “Retrato em Branco e Preto”, “Você Não Sabe Amar”, “Tim Tim por Tim Tim”, “Chega de Saudade”, “Garota de Ipanema” e “O Pato”.