Music

Burt Bacharach

Homenagem ao autor de dezenas canções que viraram inesquecíveis clássicos da música pop do século 20

Textos por Abonico R. Smith

Foto de Leandro Delmonico/Mondo Bacana (show em Curitiba) e reprodução (com os oscars)

O final da manhã desta quinta-feira, dia 9 de fevereiro, trouxe a notícia de mais uma perda de um integrante estelar na história da música pop do século 20 nessas intensas semanas dos últimos três meses. Depois de Terry Hall (Specials), Thom Bell (produtor, criador do Philadelphia soul), Tim Stewart (cofundador da Stax), Vivienne Westwood (estilista, mentora do visual dos Sex Pistols), Alan Rankine (Associates), David Crosby (Byrds, Crosby Stills & Nash/Crosby Stills Nash & Young), Jeff Beck (Jeff Beck Group, Yardbirds) e Tom Verlaine (Television), chegou a vez deste plano espiritual se despedir de Burt Bacharach. O maestro, pianista, arranjador, compositor e cantor faleceu de causas naturais, aos 94 anos de idade, em Los Angeles, onde morava.

Bacharach e seu parceiro e letrista Hal David criaram centenas de canções a partir do final dos anos 1950 que os colocaram no panteão dos grandes times de compositores da música em todos os tempos. Em popularidade, talvez só tenham rivalizado com John Lennon e Paul McCartney.

Para homenagear este magistral artista, o Mondo Bacana reposta uma resenha de uma década atrás, que analisa como foi o concerto realizado por ele em terras curitibanas, durante sua última passagem pelo Brasil, em abril de 2013. Aqui estão descritos todos os porquês de sua genialidade, que residirá para sempre no inconsciente coletivo do cancioneiro internacional.

***

>> Texto originalmente publicado pelo Mondo Bacana em abril de 2013

Burt Bacharach – ao vivo

O roteirista Charlie Kaufman escreveu o filme Being John Malkovich (1999), no qual se descobria um portal que levava para dentro da mente de um dos mais cultuados diretores e produtores das últimas décadas do cinema dos EUA. No fim da noite daquela terça-feira 16 de abril de 2013 muita gente deve ter saído do Teatro Positivo, em Curitiba, querendo achar uma entrada secreta para a cabeça de outro ícone do entretenimento americano: o maestro e pianista e arranjador e compositor e cantor Burt Bacharach.

Ele é um dos grandes gênios da canção do século 20. Entre as décadas de 1960 e 1980, compôs quase uma centena de músicas capazes de grudar no cérebro humano como um chiclete e de lá nunca mais sair em tempo algum. São melodias, riffs e letras (grande parte delas sobre o amor e suas variáveis) que qualquer pessoa que tenha prazer em ouvir música popular já escutou por aí na vida e nunca mais conseguiu se esquecer. Não adianta. Estão lá, guardadas em algum cantinho. Em algum momento você vai acabar se lembrando disso. Mesmo que não saiba quem é Burt Bacharach e que quem criou foi ele.

Burt está hoje com 84 anos de idade. Muito lúcido e surpreendentemente ainda na ativa. Não só viajando pelo mundo para apresentar ao vivo suas grandes criações. Mas ainda compondo, arranjando e gravando obras inéditas, como o musical Some Lovers, que estreou em um teatro de San Diego no ano passado. Atualmente ele trabalha ao lado do fã e discípulo Elvis Costello, um dos grandes nomes revelados durante a explosão do punk rock inglês na segunda metade dos anos 1970.

Curitiba foi a primeira das três cidades a receber a nova passagem de Bacharch pelo Brasil. Na capital paranaense, o show foi um pouco mais curto do que no Rio e em SP, já que o maestro chegara pouco tempo antes. Ele mesmo brincou a respeito disso em uma de suas conversas dirigidas à plateia: “música é bom para tudo nesta vida, até mesmo para fazer passar o jet leg”. Mesmo assim, o que se viu foi uma inacreditável sequência de 31 canções, quase todas com extremo poder para seduzir imediatamente quem as ouve. Afinal, não se cria à toa uma extensa coleção de prêmios como o Grammy (seis), Emmy (um), Globo de Ouro (dois) e Oscar (três).

À frente de sua competente banda de apoio formada por sete outros músicos e três vocalistas, o set list foi daqueles de deixar o espectador sem fôlego. Uma porrada atrás da outra, sempre com socos fortes e muitas vezes sem interrupção, chegando a emendar várias canções em um mesmo medley. Burt ainda pode se dar ao luxo de interpretar seus greatest hits não por inteiro, mas apenas através de seus trechos mais marcantes. E é impressionante também a precisão da distribuição dos instrumentos nos arranjos. O piano e os teclados cumprem o lado harmônico (vale lembrar que não há a presença das cordas da guitarra ou do violão) e o flugelhorn (sopro da família dos metais de trompetes) acaba sendo bastante privilegiado durante a execução de muitos riffs. Bateria e baixo assumem escancaradamente a função de cozinha e dão a cama rítmica que passeia entre a bossa nova, o rock, o jazz e outros grooves derivados dos negros norte-americanos.

No meio de tudo isso, Burt se concentra tanto em cada música que ele entra no espírito de cada uma dela durante a interpretação. E quando o momento é só seu, tocando piano e cantando sem qualquer acompanhamento como em “Alfie”, ele eleva o transe à plateia, que fica enfeitiçada e em silêncio absoluto só para curtir as emoções da viagem particular do astro da noite.

Este arsenal de hits planetários que ficaram célebres nas vozes de cantores como Dionne Warwick (sua principal e mais conhecida intérprete até hoje), Aretha Franklin, Dusty Springfield, Tom Jones, Walker Brothers, BJ Thomas, Barbra Streisand, Whte Stripes e Carpenters (e os Beatles!) ou trilhas sonoras de filmes de sucesso produzidos em Hollywood (Butch Cassidy & Sundance Kid; Alfie; Arthur, o Milionário; O que é que há, Gatinha?) foi quase todo assinado em parceria com o letrista Hal David, falecido em setembro de 2012, aos 91 anos de idade. Iniciada em 1957, a alquimia entre Hal e Burt se transformou em uma das mais bem-sucedidas crias do Brill Building, prédio nova-iorquino no qual compositores batiam ponto diariamente como trabalhadores e tinham como função a criação de obras musicais inéditas para serem gravadas, ali mesmo, por diversos cantores e grupos de pop e rock do final das décadas de 1950 e 1960.

Isso explica toda a classe e maestria das composições de Bacharach: o trabalho apurado de lapidação autoral e a adoção de uma rotina de labuta constante em busca da melhor resolução musical entre acordes, melodias e palavras para se encaixar na métrica. Ele diz que pensa em música em todas as horas e já criou hits até quando estava no trânsito. Deve ser mesmo algo fenomenal descobrir o que se passa – e o que já se passou nas últimas seis décadas – dentro de sua cabeça.

Set List: “What The World Need Now Is Love”, “Don’t Make Me Over”, “Walk On By”, “This Guy Is In Love With You”, “Save A Little Prayer”, Tranis & Boats & Plains”, “Wishin’ & Hopin’”, “Always Something To Remind Of”, “One Less Bell To Answer”, “I’ll Never Fall In Love Again”, “Only Love Can Break A Heart”, “Do You Know The Way To San José?”, “Anyone Who Had A Heart”, “I Don’t Know What To Do With Myself”, “Waiting For Charlie To Come Home”, “My Little Red Book”, “(They Long To Be) Close To You”, “The Look Of Love”, “Arthur’s Theme”, “What´s New, Pussycat?”, “The April Fools”, “Raindrops Keep Fallin’ On My Head”, “The Man Who Shot Valance”, “Making Love”, “Wives And Lovers”, “Alfie”, “A House Is Not A Home”, “That’s What Friends Are For”. Bis: “Every Other Hour”, “Hush”, “Any Day Now” e “Raindrops Keep Fallin’ On My Head”.

Movies, Music

Trilha sonora: Last Night In Soho

Oito motivos para se deliciar com o fantástico mergulho na Swinging London feito pelo diretor e roteirista Edgar Wright em seu novo filme

Texto por Abonico Smith

Foto: Universal Pictures/Divulgação

Para saber que o diretor e roteirista Edgar Wright é um fã assumido de cultura pop basta ver todos os easter eggs espalhados pelos filmes. Contudo, sua predileção pela (boa) música jovem das últimas décadas vem ganhando cada vez mais destaque em seus títulos mais recentes.

Em 2010, para contar a história de um jovem baixista de uma banda underground apaixonado por uma misteriosa garota de cabelos coloridos, ele contou com a ajuda de Beck para construir boa parte da trilha rock’n’roll original de Scott Pilgrim Contra o Mundo (no original, Scott Pilgrim vs The World), além de incluir obras de Rolling Stones, Metric, Black Lips, T-Rex, Plumtree, Beachwood Sparks e Frank Black.

Sete anos depois, em Baby Driver – Em Ritmo de Fuga, o intrépido teenager com habilidade especial no volante ouve tão paciente quanto hiperativamente Jon Spencer Blues Xplosion no heaphone enquanto espera o resto da gangue criminosa que integra terminar o assalto a um banco para pisar no acelerador e escapar de modo espetacular da perseguição de vários carros da polícia. Depois, por meio de nomes como Blur, Queen, Martha and The Vandellas, Damned, Alexis Korner, Incredible Bongo Band, Sam & Dave, Beach Boys e Jonathan Richman & The Modern Lovers, o espectador percebe que personagem, que ganhou um problema de tinnitus ao escapar com vida de um acidente automobilístico que matou seus pais, encontra catarse na música conectada diretamente aos ouvidos. Para o mesmo filme, os DJs e produtores de música eletrônica Kid Koala e Danger Mouse fizeram faixas inéditas.

Agora Wright mergulha na Swinging London em Noite Passada em Soho (Last Night In Soho, 2021) para traçar a história de sonho, ambição, fantasia e alucinações de uma jovem interiorana apaixonada pelo estilo e pelas canções pop da Inglaterra dos anos 1960 que acaba de chegar a Londres para fazer a tão sonhada universidade de moda. Há um foco bem maior nas cantoras pop que fizeram história com graciosidade e hits singelos, bem verdade. Mas ele também abre espaço para bandas – umas muito conhecidas até hoje, outras com fama não tão duradoura e reduzida geograficamente à ilha da Rainha Elizabeth – e representantes masculinos em vozes e talento instrumental. Em comum a todas as inclusões, o fato de serem pérolas musicais que, de uma forma ou de outra, acabam por se encaixar na narrativa das trajetórias das duas personagens principais da trama – a adolescente Ellie e a não menos sonhadora – e um pouco mais velha – Sandie, interpretadas respectivamente pelas atrizes Thomasin McKenzie e Anya Taylor-Joy.

Mondo Bacana dá oito motivos para você não deixar de se encantar pela trilha sonora de Last Night In Soho e, mais, procurar ouvi-la além do filme e conhecer um pouco mais de detalhes que acabaram contando um pouquinho da história da música pop sixtie britânica – uma época em que viabilidade comercial combinava perfeitamente com refinamento harmônico, sofisticação instrumental e, claro, muito, muito glamour. Na lista abaixo cabem só oito citações, mas aqui também ficam menções honrosas para outros artistas que também fazem parte do filme e do disco. São eles Searchers, Walker Brothers, Graham Bond Organisation, R. Dean Taylor, James Ray (com a gravação original de “Got My Mind Set On You”, petardo que 25 anos depois estouraria nas paradas na carreira solo de George Harrison) mais os megarreverenciados Dusty Springfield, Who e Siouxsie & The Banshees (“Happy House”, de 1981, é a única peça temporalmente deslocada aqui, mas que mesmo assim não deixar de ser empolgante).

>> Clique aqui para ler a crítica do filme Noite Passada em Soho

“A World Without Love” (Peter and Gordon)

Os Beatles dominaram o mundo com vários hits número um, mas só uma canção com a assinatura Lennon-McCartney chegou ao topo sem ter sido gravada pelo quarteto de Liverpool. Paul, o verdadeiro autor da composição, não a considerava “a altura do repertório do grupo” e, então, entregou-a de bandeja para Peter Asher gravá-la no primeiro single da dupla formada com o amigo escocês Gordon Waller. O baixista começou a namorar a atriz adolescente Jane Asher em 1963 e, quando os Fab Four mudaram-se para Londres, lá foi ele morar na casa dela, dividindo o quarto com o cunhado de cara de nerd e vasta franja ruiva. Os versos de, tão românticos quanto ingênuos, nem chamam muito atenção se comparados ao feliz casamento entre melodia açucarada, refinada harmonia pop e, sobretudo, ao agradável jogo entre primeira e segunda voz de Peter and Gordon. Em Last Night In Soho, Wright usa o hit para dar sequência à sua marca autoral de cenas memoráveis de aberturas de filmes. Aqui o público é imediatamente apresentado ao mundo de amores e sonhos adolescentes de Ellie Turner. Enquanto a música toca e o espectador enxerga objetos de seu mundinho particular (vitrola vintage, compactos em vinil dos anos 1960, pôster do filme Bonequinha de Luxo, moda retrô), ela flutua em uma coreografia até arranhar acidentalmente a agulha no disco ao se deparar com a visão da falecida mãe no espelho.

“Beat Girl” (John Barry Orchestra)

Houve um tempo, antes de o mundo conhecer o rock’n’roll tal qual uma evolução do rhythm’n’blues combinada com pitadas de country’n’western, que quem incendiava os salões de dança eram grandes orquestras com um pé e meio no jazz e melodias lideradas por um naipe de sopros. Já com a febre adolescente em curso a partir de meados dos anos 1950, o trumpetista britânico John Barry deu um passo além. Montou seu septeto, colocou uma virtuosa guitarra twangy executada por Vic Flick à frente dos arranjos, e passou a fazer fama com sua pequena “orquestra”. Em 1959, em menos de dois minutos e logo em sua primeira empreitada casada à sétima arte, gravou “Beat Girl” para a festiva cena de abertura do filme inglês de mesmo nome, feito com orçamento barato para ir na cola da exploração do sucesso alcançado por Hollywood com seus filmes sobre jovens, diversão e muito rock. O sucesso foi tanto que esta foi a primeira trilha sonora britânica a ser lançada em disco e ainda garantiu uma convocação feita pelo produtor Alberto Broccoli para registrar com seu grupo o tema principal de um filme que trazia um misto de galã e espião em missões secretas cheias de aventura pelo mundo e sedução de mulheres. Com o mesmo Flick à frente, Barry eternizou o tema principal de James Bond, que, curiosamente, não fora composto por ele, mas sim por um ex-crooner de big bands chamado Monty Norman. Depois de assinar a trilha dos longas de 007 até 1967, Barry lançou-se em uma bem-sucedida carreira musical nas grandes telas, chegando a receber vários prêmios como Oscar, Grammy e Globo de Ouro por soundtracks de filmes como Entre Dois Amores (1985) e Dança com Lobos (1990). Em Last Night in Soho, enquanto Ellie passeia pelas ruas com seus novos amigos de república estudantil fica impossível não reconhecer o poderoso riff da guitarra de Flick, resgatado de volta ao sucesso graças ao sample feito pelo DJ Fatboy Slim em seu principal hit do fim dos anos 1990, o big beat “The Rockafeller Skank”.

“Starstruck” (Kinks)

Se lá pelos nineties um levante de bandas inglesas solidificou a bandeira do britpop cantando sobre a vida e os hábitos comuns dos habitantes da ilha governada pela Rainha Elizabeth, isso se deveu à existência do Kinks e o direcionamento conceitual de seus álbuns na segunda metade dos anos 1960. Através das canções cantadas e compostas por Ray Davies, sempre na companhia de seu irmão Dave. À frente do grupo, Ray rabiscou uma série de crônicas musicais que podem não ter acompanhado as altíssimas vendagens de seus conterrâneos daquele momento mas, ao menos, garantiram uma sólida reputação através de gerações de futuros seguidores. Edgar Wright sempre foi fã declarado dos Kinks. Em Last Night In Soho, ele ilustra todo o fascínio da jovem interiorana Ellie logo após a sua chegada a Londres para cursar a tão sonhada faculdade de moda na capital. Esta não é a primeira vez que o diretor e roteirista recorre ao som dos irmãos Davies – em 2007, ele já havia pegado outras duas faixas do mesmo álbum na trilha sonora de Chumbo Grosso. O disco em questão é o aclamado The Kinks Are The Village Green Conservation Society, de 1968, composto por pequenas operetas pop transbordando de sátira e fina ironia em suas letras. O sentido dado por Ray nesta música cabe como uma luva para contar a história da fascinada Eloise no momento em que ela se afasta das raízes familiares na Cornuália para ser absorvida de corpo, alma, sonhos e inspiração pela cultura sempre viva e pulsante da Swinging London.

“Puppet On A String” (Sandie Shaw)

Obra escolhida pelo Reino Unido para representa-lo no festival Eurovision de 1967, foi a responsável pela coroação da carreira ascendente de uma mais populares cantoras do pop britânico dos anos 1960. Sandie Shaw, contudo, sempre odiou a canção que teve de defender por questões contratuais – e nunca foi pelo cafonice extrema do arranjo de bandinha germânica das oktoberfests da vida. Os versos machistas – que acabariam por vencer aquela edição – são uma explícita glorificação da submissão aceita de forma pacata e até alegre pela mulher em um relacionamento abusivo com um cara que insiste em manipulá-la feito uma marionete, sem qualquer pudor. Não por acaso Wright encaixou a música com perfeição na narrativa de Last Night In Soho. Na voz da própria Anya Taylor-Joy, sua personagem (batizada com o mesmo apelido da cantora, por sinal) utiliza a música para tentar alavancar a carreira no meio musical sob a tutela implacável de seu amante/empresário/cafetão Jack – inclusive fazendo a performance de uma boneca-gigante movida por cordas. Sandie ainda tem uma segunda canção, “(There’s) Always Something There To Remind Me”, incluída nessa trilha do filme.

“Eloise” (Barry Ryan)

Depois que Brian Wilson abriu a porteira da barroquice instrumental em Pet Sounds, ficou bem fácil explorar todos os limites nos arranjos de música pop. Dois anos depois, em 1968, Barry Ryan emplacou este épico de cinco minutos e meio com direito a versos melodramáticos, fortes pontuações a cargo de um naipe de metais, arranjo para cordas, modulação de uma estrofe para a seguinte, interlúdio com diminuição da intensidade para depois levar ao clímax com nova explosão, uso de treze acordes na harmonia inteira e uma performance vocal com direito a agudos e melismas dignos de levar multidões à loucura em arenas. A composição operística, assinada pelo seu irmão gêmeo Paul, é considerada uma das principais influências de um pré-adolescente Freddie Mercury para tentar a sorte na carreira musical. Em Last Night In Soho, ela aparece já no final, tocada pela jukebox quando a protagonista desce as escadas para adentrar em um pub subterrâneo e se encontrar com o misterioso homem que parece persegui-la pelas ruas (e que interage com a letra e a gravação original de Ryan). É o momento da deixa para Wright fazer a conexão com o batismo da personagem e explicar um pouco de sua conturbada história vivida ao chegar na grande cidade. Ah, o clipe feito para o lançamento da faixa naquela época, é digno de nota, com direito ao cantor contracenando com sua musa tanto sob as luzes da vida noturna londrina quanto em uma praia deserta, com direito a coadjuvância de um par de cavalos e outro de cavalos, ambos brancos. Mais grandioso e exagerado (e kitsch) impossível.

“You’re My World” (Cilla Black)

Queridinha dos mods e de Morrissey, Cilla tem seus dois grandes hits de 1964  incluídos na trilha sonora de Last In Night In Soho. “Anyone Who Had A Heart”, clássico da dupla de compositores Hal David e Burt Bacharach, está como fundo de uma conversa elucidativa entre Ellie e a senhora que aluga a ela um quarto em Londres. Já “You’re My World” (versão em inglês de um sucesso composto originalmente na língua italiana) aparece duas vezes no filme. Uma logo no início, na voz estilosa de Cilla e com poderoso arranjo orquestral, quando a jovem estudante aparece pela primeira vez imersa nos anos 1960 que ela tanto idolatra. Mais para o final, já na voz de Taylor-Joy, a letra se encaixa na ilustração sonora da trama de uma outra maneira: por meio da assustadora relação entre os versos que fazem a paixão se confundir com obsessão (e que, não por acaso, guardam semelhança em demasia com o que Sting escreveu em “Every Breath I Take”).

“Downtown” (Petula Clark)

Pérola indiscutível do pop orquestral britânico dos anos 1960, “Downtown” é uma grande celebração de uma intensa vida jovem, que pulsa em lugares badalados e que nunca fecham, sempre cheios de gente, com muita música ao vivo, filmes exibidos nos cinemas, o colorido do neon nos letreiros comerciais e o som que vem dos carros no congestionamento. Gravada em 1964 por Petula Clark, a faixa rapidamente chegou ao primeiro lugar das paradas dos Estados Unidos e até hoje volta e meia aparece em trilhas sonoras de filmes e seriados. Depois de incluída em SeinfeldGarota, Interrompida e Lost, é a vez de ser citada em Last Night In Soho. São duas as ocasiões e ambas na voz de Taylor-Joy: primeiro, a capella, quando Sandie aparece em uma audição para uma vaga de cantora. Depois, bem perto do encerramento, num remix com base mais eletrônica.

“Last Night In Soho” (Dave Dee, Dozy, Beaky, Mick & Tich)

Não, não é a escalação de cinco jogadores da defesa retranqueira de um time que joga feito ferrolho para evitar tomar um gol sequer do Flamengo hoje em dia. Por incrível que pareça, Dave Dee, Dozy, Beaky, Mick & Tich este é o nome de uma banda britânica ativa entre 1966 e 1970, quando lançou cinco álbuns. Esta faixa de sucesso gravada durante o auge, em 1968, celebra sem meias palavras a vida noturna e a badalação jovem que sempre estiveram presente nos dias e noites do Soho londrino. Os versos pegam direto na veia beat do quinteto, que não faria feio se incluída na trilha de clássicos do cinema psicodélico americano como Easy Rider e The Trip. Falam de um outsider que cai na tentação de trocar momentos quentes ao lado da namorada pela companhia de amigos em uma noitada. Escalada estrategicamente para a hora dos créditos do filme que lhe empresta o título.

Music

Scott Walker (1943 – 2019)

Quem foi o cara que misturou tristeza e posicionamento político em suas canções e foi influência suprema de David Bowie e o britpop

scottwalker

Texto por Carlos Eduardo Lima (Célula Pop)

Foto: Reprodução

Certas notícias a gente torce para nunca escrever. A morte de Scott Walker, ocorrida no último dia 25 de março, por exemplo, é uma delas. Certamente quase um desconhecido por aqui, Scott era um desses artistas que expandiu as fronteiras da música popular no século 20. Em alguns momentos, sua carreira esteve em pé de igualdade com Beatles e Rolling Stones em termos de influência e até mesmo popularidade. Sua obra foi responsável por influenciar centenas de outras bandas e cantores e seu estilo de cantar e compor transformou para sempre o rock. Entre seus herdeiros musicais estão David Bowie, Jarvis Cocker, Marc Almond, Richard Hawley, Suede, Radiohead, Blur, Last Shadow Puppets e todo vocalista ou banda pop que resolveu subir num palco cantando as agruras da vida.

Sim, porque Scott se tornou notório a partir de uma combinação improvável de vocais operísticos/barítonos com capacidade de evocar referências literárias/artísticas que lhe permitiam cantar sobre a questão política da Primavera de Praga em pleno 1968, fazer referências a filmes cult como O Sétimo Selo, do diretor sueco Ingmar Bergman – muito antes desta ideia atual de cultsequer existir – e, ao mesmo tempo, forjar um padrão de pop orquestral e belo, versando sobre amor não correspondido, arrependimento, tristeza, solidão. Além disso, suas canções abriam espaço para suicidas, ressentidos, drogados, vagabundos noturnos. Scott Walker tinha a capacidade de colocar pra baixo o mais esfuziante ser e escrevo isso sem tom pejorativo.

Scott era americano, nascido Noel Scott Engel em 9 de janeiro de 1943. Saiu da improvável cidadezinha de Hamilton, Ohio, para fazer fama na Inglaterra, em meados dos anos 1960. Formou com John Maus e Gary Leeds o Walker Brothers. Claro, não eram irmãos, muito menos se chamavam Walker. Fizeram sucesso arrebatador na Inglaterra, especialmente com versões de clássicos como “Make It Easy On Yourself” e “The Sun Ain’t Gonna Shine Anymore”, canções belíssimas e tristíssimas. Seu registro vocal característico misturava influências operísticas e mesmo do teatro japonês – algo impensável para a época. Tal fato virou a cabeça de um iniciante David Jones, que se chamaria David Bowie em seguida, que deve sua marca vocal registra a Scott.

Com o fim dos Walker Brothers em 1968, Scott impôs-se como artista solo. Ele já vinha lançando sua série de álbuns homônimos/numerados, que culminou com Scott 4, em 1969. Deste período vêm pérolas próprias e de outros compositores, como “Montague Terrace (In Blue)”, “Jackie”, “The Girls From The Streets”, “Windows Of The World”, “It’s Raining Today”, “Copenhagen”, “The Seventh Seal” e até a inacreditável “Old Man’s Back Again (Dedicated To The Neo Stalinist Regime)”, que, como o título diz, fala sobre a política da URSS em relação ao mundo em 1969. A preferida pessoal deste que vos escreve, no entanto, é a lindíssima e cortante: “The Lights Of Cincinatti”, com os versos:

“And I can see them shining
Through the willows and the pines,
The lights of Cincinatti
Oh, so many miles behind,
I could build myself a new life
And make it on my own,
But the lights of Cincinnati
Will keep calling me back home.”

Escrever e gravar sobre estes temas, buscando expandir fronteiras musicais não são traços de um popstar, certo? Scott tornou-se um artista recluso, quase uma lenda. Seus álbuns posteriores à quadrilogia Scott são menos inspirados, ainda que tragam momentos impressionantes. Os anos 1970, no entanto, foi mais das crias estéticas de Scott do que dele mesmo. O grande acontecimento para ele foi o retorno dos Walker Brothers originais em 1978, a bordo do disco Nite Flights, que apenas marcou a reunião do trio inicial, enquanto o mundo estava ouvindo disco music e punk rock.

Scott ressurgiria por algumas vezes lançando discos. Em 1984, com Climate Of Hunter e, onze anos depois, com Tilt, trabalhos que já podem ser entendidos sob o ponto de vista “alternativo”, algo que Walker fez na maioria das vezes que lançou álbuns. Mais recentemente, viriam The Drift, em 2006; Bish Bosch, em 2012; e Soused, colaboração com o grupo americano Sunn O))), lançado em 2014. Walker permanecia oculto, nas sombras, local onde sempre pareceu sentir-se mais adequado e confortável. Seu último trabalho foi a trilha sonora do filme Vox Lux, estrelado por Natalie Portman, em cartaz no Brasil.

Não há mais espaço na música pop para gente como Scott Walker. Se um equivalente seu surgisse hoje, seria desencorajado a seguir carreira na música. Referências literárias? Desejos instrumentais e operísticos? Canções fora dos padrões? Poucas visitas em perfis de redes sociais? Scott é reflexo de um tempo em que havia possibilidade da arte menos popular impregnar outros campos – populares – gerando cultura e novas abordagens. Sem ele, a música pop seria incrivelmente mais pobre e mais óbvia. Que seu talento seja reconhecido por mais e mais pessoas.