Produção da BBC conta como um jovem britânico salvou 669 crianças da morte e do sofrimento na invasão nazista de Praga em 1938
Texto por Abonico Smith
Foto: Diamond Films/Divulgação
Depois de ganhar alguns anos atrás, o Oscar dando um show de interpretação como o idoso com a doença de Alzheimer em Meu Pai, seria nada anormal se esperar ver o ator voltar logo às telas em outra história carregada de drama, sofrimento e relações com o passado. E é exatamente o que acontece com Uma Vida – A História de Nicholas Winton (One Life, Reino Unido, 2023 – Diamond Films).
Hopkins interpreta também octogenário corretor da bolsa de valores do interior inglês que entrou para a História por um grande feito humanitário em 1938: conseguiu tirar 669 crianças checas de Praga um pouco antes da ocupação das tropas nazistas de Hitler na cidade, dando a elas lares adotivos temporários (e que em muitos casos viriam a se tornar definitivos) oferecidos por famílias da região em torno da cidade de Hampstead. Anthony, no final dos anos 1980, acaba por se pegar confrontado com o que fizera meio século antes e que, de uma maneira ou outra, acaba por lhe atormentar o espírito pela incapacidade de tornar ainda maior em números a sua façanha.
Enquanto Winton se depara com as memórias e os documentos que comprovam suas atitudes, o espectador enfrenta um didático vai-vem temporal, cheio de flashbacks que fazem o filme focar nas ações do jovem corretor para justificar o trocadilho do título original – afinal, a tal vida do nome pode se referir tanto ao ápice da vida do então jovem solteiro e bastante intrépido Nicky (com muita ajuda de sua mãe, por sinal) como a de cada criança que fora levada de trem de Praga a Londres por meio de artimanhas diplomáticas.
Como a produção conjuga a grife da BBC, é tudo mostrado com excesso de sentimentalismo em diálogos, ângulos de câmera e intervenções da trilha sonora. O diretor James Hawes, que tem no currículo dos últimos dez anos um monte de séries para a TV (Black Mirror, inclusive), junta-se aos dois roteiristas (Barbara, filha de Nicky, recebe um terceiro crédito pelo fato da história ser adaptada de um livro que lançara sobre o caso de seu pai) sem muita ousadia na forma. Tudo bem aos moldes das produções tradicionais da British Broadcasting Corporation voltadas a pessoas ordinariamente comuns mas com algum fato bem interessante no decorrer de sua vida. Sem riscos, mas também sem falhas. Pragmatismo ao extremo.
Hopkins brilha ao encarnar um homem cheio de ambições passadas mas extremamente bonachão e queito nos tempos atuais da narrativa, contudo ele não é o único a se destacar na atuação. Helena Bonham Carter, mais discreta do que nunca na caracterização de um personagem recente, também conquista o espectador nos poucos minutos de tela como a impetuosa coadjuvante Sra. Winton, sempre disposta a ajudar seu jovem filho. A sueca Lena Olin (esposa de Nicky, mãe da então grávida Barbara) e o músico-ator sulafricano Johnny Flynn (o quase trintão Nicky durante os flashbacks) também encabeçam o elenco de primeira desta obra, que por mais que se refira a algo que ocorreu quase um século atrás, torna-se ainda mais atraente por traçar paralelos com as crianças de hoje em dia que estão sofrendo quase o mesmo horror em outro massacrante conflito não muito distante dali de Praga.
Oito motivos para não perder o show da banda animada de maior sucesso do mundo em sua volta ao Brasil
Texto por Abonico Smith
Fotos: Divulgação
Tudo começou como um despretensioso projeto paralelo para se divertir e desopilar das obrigações à frente do Blur e da posição de porta-estandarte do britpop. Afinal, criar uma banda virtual não demandaria assumir a frente de um palco ou colocar a cara em fotos, entrevistas e videoclipes. Franca ingenuidade. O Gorillaz não só não demorou para tornar-se a primeira e mais importante ocupação de Damon Albarn como também já contabiliza uma discografia com onze títulos (entre trabalhos de carreira mais compilações com remixes, raridades e singles) lançados em 21 anos. E um Grammy, entre várias indicações para esta e outras premiações importantes da indústria fonográfica mundial. Mais seis turnês.
A mais recente, batizada Song Machine Tour e iniciada no ano passado, começou de forma virtual, sendo transmitida em três oportunidades para diferentes continentes em cada uma delas. Agora, depois de dois anos sem grandes show sinternacionais por conta da pandemia da covid-19, é a chance de ver tudo ao vivo e in loco aqui no Brasil. Albarn, suas criaturas animadas e seus asseclas instrumentistas (sim, há todo um aparato de superbanda montado para tocar e cantar ao vivo, enquanto as personagens aparecem em um telão), passarão novamente pelo Brasil, onde já estiveram para fazer um show em 2018. O mês será maio, com três datas marcadas. O grupo britânico será um dos headliners do festival MITA (acrônimo para a expressão Music Is The Answer), que será realizado nos dias 14 e 15 em São Paulo e 21 e 22 no Rio de Janeiro (o Gorillaz encerra a programação em 15 e 21 – clique aqui para saber sobre local, ingressos, atrações e demais informações). No meio disso, o combo, agora como figura solitária da programação paralela chamada MITA Day, passará por Curitiba, na Pedreira Paulo Leminski, no dia 18 (cliqueaqui para as demais informações sobre este concerto; os ingressos também podem ser comprados pessoalmente na Bilheteria 1 do estádio Couto Pereira, de terça a sábado exceto em dias de jogos de futebol, das 10h à 17h).
Para celebrar o retorno do Gorillaz a terras brasileiras, o Mondo Bacana enumera oito motivos para você nem pensar em perder qualquer um destes três concertos – sem contar o fato de que o show na capital paranaense serve de encomenda para quem não tem mais paciência nem físico para aguentar um dia inteiro de pé durante um festival com um monte de atração se apresentando antes.
Banda de cartoon
OK, vamos descontar os chipmunks de Alvin e os Esquilos, criados em 1958 para a literatura infantil e transformados em desenho animado televisivo para as crianças em 1961. Os bichinhos cantavam num agudo infernal, produzido pela rotação aceleradíssima da gravação dos vocalistas originais recrutados para o projeto. Não havia banda, porém. Nenhum instrumento: apenas cantores. Então tudo começou mesmo lá no finalzinho dos anos 1960, quando o mainstream já começou a assimilar os elementos musicais da contracultura e levou as bandas de rock para dentro dos roteiros de desenhos animados para as crianças. Então, na manhã de sábado, começaram a desfilar vários grupos formados por jovens que, com suas guitarras, contrabaixos e baterias (às vezes, uns teclados e pandeiros também) adicionavam melodias grudentas e letras doces às narrativas de suas histórias. O exemplo de maior sucesso nas paradas foi a canção “Sugar, Sugar”, feita para a animação Archies (1968). Os estúdios Hanna-Barbera exploraram essa fórmula à exaustão em Banana Splits (1968), Gatolândia (1969), Josie e as Gatinhas (1970, 1972), Bambam e Pedrita (1971), As Aventuras de Charlie Chan (1972), Butch Cassidy and The Sundance Kids (1974) e Tutubarão (1976). Até artistas de carne e osso foram transformados em cartoon, como os irmãos Jackson 5 (1971) e os atores/personagens da sitcomFamília Dó-Ré-Mi (1974). Em 1985, a Hasbro, empresa de brinquedos concorrente da Mattel (que fazia bastante sucesso com as animações de He-Man e She-Ra para vender produtos dos personagens para as crianças), produziu por três temporadas a série Jem e as Hologramas, que serviu mesmo para vender bonecos às meninas na pré-adolescência. Só que aí veio a última década do século 20 e a televisão deixou de ser a mídia preferida de crianças e teenagers…
Dupla dinâmica
… Até vir o Gorillaz, quarteto que começou a ser criado em 1998 pelo músico Damon Albarn e o ilustrador Jamie Hewlett, que, desde o ano anterior, passaram a dividir um apartamento em Londres. Eles já se conheciam desde 1990, quando, ainda antes de lançar seu primeiro álbum, o Blur foi entrevistado por Hewlett para o fanzine Deadline. O encontro entre os dois foi proporcionado pelo guitarrista Graham Coxon, um grande fã de quadrinhos e admirador do trabalho que Jamie fazia na série de HQ Tank Girl, que vinha como um dos grandes atrativos da publicação, editada pelo cartunista. Inicialmente um não ia lá muito com a cara do outro, sobretudo porque a disputa entre eles envolvia a mesma garota. Quando apararam as arestas, chegaram à conclusão de que a melhor maneira de se acertarem definitivamente seria somar o que ambos sabiam fazer de melhor e fazer com que as duas mídias se comunicassem e se complementassem. Claro que o fato de se tratar do mundo da animação permitiu fazer com que a criatividade de ambos voasse longe e não tivesse limites.
Vida louca vida
Que bandas de rock sempre apresentaram as mais loucas histórias nas biografias de seus integrantes isso não é novidade. Só que Hewlett e Albarn capricharam na diversidade que forma o segredo do sucesso do Gorillaz. O fundador e líder do quarteto é o baixista Murdoc Niccals, satanista de carteirinha (atente para a data de seu nascimento: 6.6.66), que fez um contrato com o demo para conseguir fama por meio da música, tendo sido obrigado a colocar Faust como seu nome do meio e ganho um contrabaixo de presente batizado como El Diablo. Fora dos palcos e estúdios, só se mete em confusão com drogas, prisões, acidentes e incidentes provocados por ele mesmo, chegando até a curtir um período de afastamento da banda, sendo temporariamente substituído por Ace, personagem do desenho animado das Meninas Superpoderosas. Foi Murdoc, inclusive, o responsável pelo acidente de carro que colocou o vocalista Stuart 2-D Pot em coma, fazendo-o perder seu olho esquerdo. Logo depois, o mesmo Murdoc fez um cavalo-de-pau de 360 graus que fez o passageiro 2-D enfiar a cabeça no vidro frontal e perder a visão direita. O garoto, por sua vez, era acostumado a bater a cabeça desde criança. Seu cabelo azul é resultado disso, uma queda de uma árvore durante a infância (?!?!). Já o visual do rapaz, inspirado meio que no próprio Albarn, meio que em dois amigos em comum dos criadores (um deles, o vocalista do Menswear, outro grupo de destaque durante o levante britpop em meados dos anos 1990), reproduz aquele estereótipo do “vocalista bonitinho e aparentemente não muito inteligente de uma banda popular de rock”. A guitarrista Noodle não veio sob encomenda mas chegou literalmente pelo correio. Com onze anos de idade no início da banda, ela foi despachada pelo serviço secreto japonês como forma de se livrar de uma experiência mal sucedida com crianças criadas para dominar igualmente armas, idiomas e instrumentos. No caso de Noodle (o apelido veio da única palavra em inglês que ela soube dizer à banda ao sair da caixa), as tentativas não deram muito certo, a não ser pela guitarra. Completa a formação o baterista Russell Hobbs, bolado para ser uma representação da faceta hip hop do Gorillaz, uma simbologia da parte rítmica casada à poesia. Criado no Brooklyn e mandado a Londres pelos pais para não se meter mais em encrenca pelas ruas de Nova York, o jovem incorpora o espírito de um grande amigo de adolescência, também rapper, morto a tiros. O melhor desta diversidade toda é que os personagens vão tendo suas narrativas e histórias desenvolvidas a cada álbum, tendo como suporte as faixas e os videoclipes. Portanto, ao contrário de todas as bandas de cartoon antecessoras, o tempo passa para os integrantes do Gorillaz e eles vão sendo transformados aos poucos.
Filme na Netflix
O que nos leva àquele que talvez seja, há anos, o mais aguardado produto com a marca Gorillaz: um longa-metragem. Sabe-se que o projeto está em desenvolvimento e que o filme será lançado diretamente por streaming, via Netflix. Entretanto, apenas este detalhe foi confirmado pela dupla criadora da banda. Nada mais foi dito ainda a respeito da história, como ela será e quem mais estará envolvido no projeto.
Braços dados com o hip hop
Uma das propostas de Damon Albarn ao montar o projeto paralelo foi se aproximar de suas paixões na adolescência (como o Clash ou as bandas two-tone, por exemplo) distanciar o máximo possível da sonoridade traçada pelo Blur naquele auge da banda nos meados dos anos 1990. Faz sentido, afinal, nos anos anteriores ele foi catapultado ao estrelato como um dos cânones do britpop, que resgatou a sonoridade clássica sixtie do rock britânico e a levou de volta às paradas mundiais. Portanto, sobrou para o Gorillaz um terreno fértil apontando para outros caminhos da música pop. Mais groove. Menos destaque para guitarras e violões. Mais diálogo com outros gêneros, como a world music e o hip hop. Aliás, a fusão com o hip hop foi o principal acerto da nova sonoridade. Era um começo de anos 2000 e o rock ainda flertava timidamente com programações eletrônicas, sintetizadores e sobretudo o canto falado e ritmado criado pelos pretos nova-iorquinos. Então, mesmo enfrentando uma forte concorrência com o potente novo rock retrô e regressivo daquele início de década (Strokes, White Stripes, Franz Ferdinand, Killers, Libertines, Interpol, Yeah Yeah Yeahs), foi justamente a adição do rap como um forte elemento que fez o Gorillaz apontar para o futuro e dialogar com uma geração mais nova de fãs por todo esse tempo. Não só isso: provou que o rock poderia abraçar o hip hop justamente quando o gênero passou a ter extrema importância mercadológica, vendendo cada vez mais milhões e milhões no novo século, chegando a encabeçar escalações diárias dos mais tradicionais festivais de rock e música pop.
Clint Eastwood
Já em seu álbum de estreia, epônimo, de 2001, o maior cartão de visitas do projeto era um casamento perfeito com o hip hop. No som e no discurso. “Clint Eastwood” não foi o primeiro single do disco, mas foi aquela faixa responsável pelo breakthrough da banda nas rádios e programações da MTV ao redor do mundo. Em cima de uma harmonia por demais simplória, Albarn e o rapper norte-americano Del The Funky Homosapien (e primo de Ice Cube, também ator e ex-NWA), comanda a história do finado amigo de Russell cujo espírito volta à terra para se apossar do corpo do baterista e promover uma grande ode ao mundo dos mortos-vivos. Aliás, a temática zumbi sempre foi uma das grandes paixões da dupla criadora. E é justamente ela que domina a história do videoclipe, que já começa com uma citação do filme Despertar dos Mortos, um dos vários clássicos assinados pelo cultuado diretor George Romero. Na trama, um monte de gorila desperta das catacumbas para perseguir os vivos, sobretudo Murdoc, 2-D e Noodle (já que Russell dá início ao levante protagonizando a atividade paranormal). Duas décadas depois, a faixa ainda é poderosa demais para não deixar ninguém parado, sem dançar, nem calado, sem cantarolar ao menos o refrão. E o que o famoso ator e diretor hollywoodiano – mais ligado a produções de dramas e faroestes – tem a ver com a história para dar título à música? Com a história nada. Entretanto, no início do arranjo, um fraseado instrumental criado inadvertidamente por Damon no estúdio durante os rascunhos para a canção lembra vagamente o principal tema musical do western spaghetti O Bom, O Mau e O Feio (1966), dirigido pelo italiano Sergio Leone e com Eastwod como um dos protagonistas.
Feel Good Inc.
Grande destaque do segundo álbum, Demon Days (2005), tendo inclusive recebido um Grammy (melhor colaboração pop com vocais) e outras duas indicações (gravação do ano, melhor videoclipe) ao prêmio máximo do mercado fonográfico mundial. Aqui, Albarn se junta ao trio de rap De La Soul para detonar uma grande dinamite sonora capaz de explodir qualquer pista de dança ou multidões em gigantes arenas. A letra, a começar pelo nome jocoso e sarcástico, faz uma critica severa à obrigação de demonstrar bem-estar e felicidade extremada (sobretudo nas redes sociais) que tem tomado de assalto a população mundial desde a internet virou vício diário. O clipe, com fortemente inspirado pelo trabalho do japonês Hayao Miyazaki e seu estúdio Ghibli, trata da imbecilização promovida pela cultura de massa e questiona a falta de liberdade intelectual vinda a partir dela. Aliás, a risada malévola do DJ Maseo arrepia a cada audição – ainda mais quando o De La Soul é convocado por Albarn para participar ao vivo da música, em turnês e apresentações especiais.
Um milhão de amigos
Desde o início a proposta do Gorillaz foi ter um monte de convidados especiais em suas faixas. A cada disco, na ficha técnica, fazendo participações ou assinando remixes, desfila um panteão de grandes representantes da música em todas as vertentes. Olha a lista de “alguns” destes nomes: Dan The Automator, Kid Coala, Miho Hatori (Cibo Matto), Del The Funky Homosapien, Ibrahim Ferrer (Buena Vista Social Club), Dave Rowntree e Graham Coxon (Blur), Tina Weymouth e Chris Frantz (Talking Heads e Tom Tom Club), Soulchild, Phi Life Cypher, Danger Mouse, Simon Tong (Verve), Demon Strings, Neneh Cherry, De La Soul, U Brown, Ike Turner, MF Doom, Roots Manuva, Martina Topley-Bird (Tricky), Shaun Ryder (Happy Mondays e Black Grape), Dennis Hopper (ator e diretor de Easy Rider – Sem Destino), Spacemonkeyz, Snoop Dogg, Mos Def, Bobby Womack, Gruff Rhys (Super Furry Animals), Little Dragon, Mark E. Smith (Fall), Lou Reed (Velvet Underground), Paul Simonon (Clash), Mick Jones (Clash, Big Audio Dynamite), Jean-Michel Jarre, Grace Jones, Pauline Black (Selecter), Terry Hall (Specials), Bees, Einar Orn (Sugarcubes), Hot Chip, Metronomy, Soulwax, Danny Brown, Mavis Staples (Staples Singers), Pusha T, Little Simz, Kali Uchis, Benjamin Clementine, Jehnny Beth (Savages), Noel Gallagher (Oasis), Rag’n’Bone Man, Kilo Kish, Carly Simon, George Benson, James Ford (Simian Mobile Disco, Last Shadow Puppets), Beck, Robert Smith (Cure), Schoolboy Q, Prince Paul, St Vincent, Peter Hook (New Order, Joy Division), Slowthai, Slaves, Unknwon Mortal Orchestra, Joan As Police Woman, Tony Allen (Fela Kuti), Leee John, Earl Sixteen, Skepta, Stuart Zender e Simon Katz (Jamiroquai) e Elton John. É pouco?
Leve um choque de realidade ao acompanhar o ordinário cotidiano de duas amigas em uma Paris sem muitas perspectivas sociais e afetivas
Texto por Ana Clara Braga
Foto: Supo Mungam/Divulgação
Pense em Paris. O que vem à mente? A Torre Eiffel, o Louvre, construções em sintonia em tons de sépia? Mercuriales (França, 2014 – Supo Mungam) mostra uma realidade longe da idealização da Cidade-Luz. A nua e crua periferia de Paris é cenário para um filme desafiador do diretor Virgil Vernier.
O nome do longa – lançado no Brasil pela plataforma de streaming Supo Mungam Plus – é inspirado em um prédio comercial, onde as jovens Joane (Philippine Stindel) e Lisa (Ana Neborac) se conhecem durante um período de empregos temporários. As duas, sem muito em comum, além da falta de perspectiva de futuro e sensação de abandono afetivo e social, criam um improvável laço. Vagando por uma Paris de concreto bruto, a câmera parece seguir as novas amigas como em um documentário naturalista.
É fácil esquecer que se está assistindo a um conteúdo fictício. O ordinário do cotidiano discorre pelos minutos causando estranhamento. As duas jovens vivem alheias aos horrores modernos, mas ao mesmo tempo são consequências diretas deles. O filme intercala atuação com narrações em off, cenas de rituais pagãos, os diálogos e as imagens se desencontram em uma narrativa ousada.
A fotografia é um elemento importante de Mercuriales. Os tons azulados remetem à tristeza, ao abandono, à frieza. Juntamente das grandes construções prestes a serem demolidas pelas prefeitura, o azul ganha um tom nostálgico. Lisa e Joane se encontram e desencontram ao passo que suas vidas continuam as mesmas – a única coisa que muda é a paisagem.
Ao longo do filme, muito pela trilha sonora ora intensa, ora suave, cria-se a expectativa de que algo grandioso está por vir. Mas nada acontece. O que isso pode nos dizer a respeito de nossas vidas? A normalidade não é o suficiente? Se a ficção geralmente nos presenteia com reviravoltas e tramas difíceis de decifrar, Vernier desafia o público a aceitar a realidade.
Racismo, machismo e conflitos religiosos figuram na vida das protagonistas. Os assuntos sérios surgem sem rodeios, como quando a filha da colega de apartamento de Joane pergunta a um convidado muçulmano de onde os islâmicos vêm, causando costrangimento. O choque entre cristianismo e islamismo é tratado mais vezes ao longo do filme de maneira sutil, mostrando que essa é uma ferida aberta da França.
Mercuriales é desafiador. Vernier sabe como captar diversos universos conflitantes com uma câmera. Tem uma cena específica em que Lisa cai em um choro sentido, sem motivo aparente. É assim que opera nos sentimentos de quem o vê. Uma onda de sensações inexplicáveis, que inquietam, incomodam e fazem refletir. O cru acaba sendo um choque de realidade.
Trinta anos de Heaven Or Las Vegas, o sexto álbum da carreira do trio escocês que traduziu com perfeição a representação musical dos sonhos
Texto por Fábio Soares
Foto: 4AD/Divulgação
No ano de 2017, em programa apresentado na rádio inglesa BBC 4, os cientistas Adam Weir Rufherford e Hannah Fry receberam uma pergunta curta e grossa de uma ouvinte de apenas nove anos de idade: “Por que sonhamos?”, indagava Mila O’Dea, panamenha da cidade de Gamboa.
O secular questionamento vindo da jovem caribenha fazia todo o sentido, tendo em vista que milhares de estudos sobre o fenômeno transpassam décadas sem receber um definitivo “martelo”. A mais famosa delas foi desenvolvida pelo fisiologista Eugene Aserisnky, da Universidade de Chicago, em dezembro de 1951. Ele conectou seu filho de apenas oito anos a um aparelho de eletroencefalograma. A partir do disparo frenético da agulha do maquinário, Aserisnky percebeu que os olhos do garoto também eram estimulados por uma espécie de frenesi interno. Este fenômeno foi batizado por Eugene com uma sigla: R.E.M. (Movimento Rápido dos Olhos, em português). O resto é história.
Mas teria o sonho uma trilha sonora que o traduzisse à sua quase totalidade? Sim! Em setembro de 1982, um trio escocês daria ao mundo Garlands, uma bolacha que vinha mais para confundir do que explicar. Com atmosfera assustadora e afinações de baixo longe do convencional, os Cocteau Twins traziam um quesito a mais: a linha vocal de Elisabeth Fraser, que fugia (e muito) do lugar-comum. Fraser não cantava, mas, sim, conduzia um bólido sonoro por caminhos tortuosos. Tamanha indentidade chamou a atenção do lendário radialista britânico John Peel. Dois anos depois, no antológico disco Treasure, a voz de Liz atingia o patamar de inimaginável. Suas nuances e curvaturas vocais lhe renderam a alcunha de “Voz de Deus” por parte da crítica especializada inglesa. Estava solidificado, portanto, o termo dream pop. Gênero específico, inacessível porém, sublime. Mas ainda faltava algo. Um álbum para as massas. E coube ao ano de 1990 o papel de recorte temporário a um inevitável ápice.
Reza a lenda que o clima do trio durante as gravações de Heaven Or Las Vegas não era dos melhores. O casamento de Fraser com o guitarrista Robin Guthrie, não estaria bem, mesmo após o nascimento da única filha do casal, Lucy Belle, em 1989. Somado a isso, o vício de Guthrie em álcool e drogas levou a união de ambos à beira de um colapso. Alheio a este turbilhão, o baixista Simon Raymonde era o fiel da balança para fazer a coisa andar. E ela andaria nem que fosse na marra.
Heaven Or Las Vegas, já o sexto álbum da carreira, lançado em 17 de setembro de 1990, nasceu GIGANTESCO – a caixa alta ao defini-lo é plenamente justificável a partir de sua faixa de abertura. O vocal de Fraser, mais seguro como nunca, jamais soou tão avassalador. Aos 27 anos de idade, a soprano parecia atingir seu ápice técnico. A linha de baixo de Raymonde nunca soou tão segura como base para a genialidade de Guthrie. Arranjos estrelados mantém o nível em altíssimo patamar. Tente ficar indiferente à marcial batida de “Cherry-Coloured Funk” e falhe miseravelmente. O leque harmônico da banda parecia ser infinito. Como um sonho, claro. Propositalmente? Difícil saber. Prefiro acreditar que um liquidificador emocional foi ligado no estúdio e as sobreposições de camadas vocais, instrumentais e o raio que o parta veio para disparar nosso rápido movimento dos olhos acentuado na dobra de “Pitch The Baby” e “Iceblink Luck”.
A atmosfera de sonho atinge o nível máximo do sublime na faixa-título. O vocal de Liz conduz o ouvinte a um sobrevôo sobre a paisagem que melhor lhe convier. O céu de brigadeiro está ali e cabe a você, reles mortal, gratuitamente aproveitá-lo. O slide guitar de Guthrie é o trem de pouso. Você demorou demais para aproveitar. Portanto, volte a faixa para o início e decole novamente.
O voo termina com “Frou-Frou Foxes In Midsummer Fries” com a voz de Liz nos lembrando de que já é hora de acordar. Nos lembrando também de que Heaven Or Las Vegas, trinta anos após seu lançamento, permanece inabalável. Uma catedral sonora tão generosa que fica ali, de portas abertas para quem quiser adentrá-la. Afinal, Deus estava certo ao enxergar em Liz Fraser sua perfeita mensageira.
Entendemos a mensagem, Senhor. Mas, por favor, nos deixe sonhar mais um pouco. E que assim seja, por mais múltiplos de trinta…