Movies, Music

Dorival Caymmi – Um Homem de Afetos

Documentário proporciona um olhar carinhoso para vida e obra do baiano que estabeleceu as bases do que se entende por música popular brasileira

Texto por Abonico Smith

Foto: Descoloniza Filmes/Divulgação

O próximo dia 30 de abril marcará os 110 anos de nascimento da pedra fundamental daquilo que todo mundo entende por música popular brasileira. Para celebrar a data, chega aos cinemas nacionais nesta quinta Dorival Caymmi – Um Homem de Afetos (Brasil, 2020 – Descoloniza Filmes), depois de ter sua première mundial na edição deste ano do festival internacional de documentários É Tudo Verdade.

Sob o comando de Daniela Broitman, que assina roteiro, direção e produção, Um Homem de Afetos é, como seu próprio título já entrega, um olhar carinhoso por todo o universo de vida e obra do cantor e compositor baiano. Disseca passagens curiosas, engraçadas e afetivas do artista, falecidos em 2008 aos 94 anos de idade. Traz depoimentos dos três filhos, pessoas que conviveram com muita proximidade a ele e fãs famosos como Gilberto Gil e Caetano Veloso. Apresenta também depoimentos e antigas gravações de Dorival em vídeo. Não pretende reinventar a roda, muito menos revolucionar narrativas e formatos. É um doc tradicional, mas que prima em pegar os espectadores pela emoção. E consegue, sem deixar aquela temida mácula de chapa-branca que contamina produções deste tipo. Louva o legado inovador e criativo de Caymmi mas também se propõe a apresentar pequenos deslizes comportamentais do homem por trás do ídolo. Detalhe: faz isso com a ajuda de Nana, Dori e Danilo, inclusive. E do próprio Dorival…

Sua intrínseca relação com o mar da Bahia vem desvendada logo no início. A ligação profunda, que marcou a passagem do “compositor por trás da imagem pública de Carmen Miranda em Hollywood” ao Dorival trabalhador boêmio das boates dos anos dourados de um Rio de Janeiro ainda capital federal, pode ser deliciosamente saboreada nas explicações particulares e históricas da vida do músico. Foram as águas do mar que banharam muitas de suas geniais criações lançadas por ele em disco no começo dos anos 1950 e construíram um universo temático tão rico e emocionante descrito em letras inigualáveis. Único também era seu jeito de tocar o violão e interpretar as próprias composições, o que leva a crer que Caymmi, ao menos no Brasil, foi o primeiro grande representante do termo cantautor (o famoso compositor que interpreta as suas canções), que viria a se popularizar décadas depois.

O período áureo da temática do mar – que antecedeu o estouro bossa nova mas nem por isso deixou de ser celebrado nos Estados Unidos, embora seja bem menos lembrado até hoje no Brasil – rende boa parte do documentário, inclusive com um engraçado trecho em que Caetano tece muitos elogios à maestria de encaixar a prosódia baiana nas melodias e letras. Há também um breve mergulho no Dorival músico e compositor, ainda por trás dos microfones, quando rendeu a Carmen Miranda todo o suporte para a imagem da baiana brasileira que encantou o mundo por meio do filtro do entretenimento estadunidense. Também ocupa parte generosa do roteiro a conturbada relação da esposa Stella Maris (com quem ficou casado por 68 anos, até a morte de ambos separada por questão de dias) com o cara que não conseguia suportar a convivência com barulhos mas não se afastava da fama de mulherengo.

As rápidas mudanças sociais e musicais promovidas no decorrer dos anos 1960 provocaram gradativamente a diminuição dos trabalhos inéditos de Dorival como cantor e compositor. Mas um curioso fato reacendeu a fama da idolatria… fora do país. Mais precisamente na extinta União Soviética, quando uma versão cantada em russo de “Suíte do Pescador” para a exibição do filme The Sandpit Generals (baseado na obra literária Capitães de Areia, de Jorge Amado rodado na Bahia, com produção norte-americana e censurado por aqui pelo regime ditatorial dos militares) tornou-se um hino que acabou por entrar para a posteridade por lá. Prova de que Caymmi pode ser coisa nossa mas o reconhecimento de seu talento ultrapassa barreiras geográficas e idiomáticas.

Difícil acabar de assistir a Um Homem de Afetos e não se afeiçoar ainda mais a Dorival Caymmi, o homem por trás da figura pública da música brasileira – sobretudo na hora em que o caçula Danilo aperta suas bochechas e brinca livremente com o pai coruja, com quem sempre teve muita proximidade de afeto. Para toda uma novíssima geração que acha ser a também baiana Ivete Sangalo o nome-mor da música brasileira (como mostrou-se em uma polêmica envolvendo a performance de Paulo Ricardo no mais recente BBB), pode ser um excelente canal para grandes descobertas e viagens no tempo.

Aliás, é para isso que servem documentários. Mais do que deleitar os iniciados em um assunto o grande papel de uma obra como esta é proporcionar expressões de estupefaciência em quem adora deixar-se surpreender. Certamente este Um Homem de Afetos pode e deve produzir isso em quem nem era nascido (ou ainda era bem pequeno) quando Dorival Caymmi faleceu.

Music

BNegão – ao vivo

MC do Planet Hemp recria obra praieira de Dorival Caymmi com a participação de Danilo Caymmi e da Orquestra à Base de Sopro de Curitiba

Texto e foto por Abonico Smith

Bernardo Santos teve uma epifania na adolescência, nos anos 1980, deitado no chão do quarto, ouvindo o vinil Canções Praieiras, de Dorival Caymmi. Durante a audição das quatro faixas do lado A, seu corpo tremia todo, a cabeça alucinava com as imagens propostas pelas letras. Quando a agulha chegou ao sulco central do long play, bateu aquele medo de virar o disco. Se a metade inicial já provocara todo esse rebuliço nele, arriscar as outras quatro faixas finais logo de cara passava a ser algo temeroso a se fazer de imediato.

Esta pequena lembrança de sua adolescência foi contada logo após o início do show BNegão Canta Dorival Caymmi com a Orquestra à Base de Sopro de Curitiba, a principal atração do último dia 27 de janeiro da tradicional Oficia de Música de Curitiba que há 40 edições enche de harmonias, melodias, cantos e instrumentos a capital paranaense. No Teatro Guaíra, BNegão voltava a receber seu fiel escudeiro neste projeto, o violinista Bernardo Bosisio, para recriar as tradicionais canções registradas na fase “praieira” de Dorival Caymmi, majoritariamente gravadas no formato voz e violão. Juntos, algumas vezes já se apresentaram algumas vezes nos últimos anos para celebrarem este período todo especial da obra desta divindade que representa um período de ligação entre os sambas-canção da era de ouro do rádio no Brasil (todos os anos 1940) e o surgimento da bossa nova (final dos 1950). Desta vez, porém, trouxe novidades.

Dois convidados ilustres da cidade também participaram do concerto. Veio primeiro Orquestra à Base de Sopro de Curitiba, criada há 25 anos e com extenso currículo de concertos e presenças na Oficina, veio primeiro. Com doze instrumentistas de sopro (um deles seu regente e diretor artístico, Sergio Albach) e mais o acompanhamento de bateria, percussão, contrabaixo acústico e piano. Preencheu alguns dos arranjos com uma sofisticada orquestração que em vários momentos não só relembrou a sofisticação do pop dos anos 1960 como também o tempo em que as canções pré-praieiras de Caymmi era executadas pelos muitos músicos contratados para trabalhar diariamente no auditório da Rádio Nacional no Rio de Janeiro. Isto é, tempos em que a música popular, fosse nacional ou estrangeira, apresentava uma riqueza de possibilidades analógicas que maravilhavam todo e qualquer ouvido. E já na metade final do repertório, Danilo Caymmi, um dos filhos do homenageado (e que também mora em Curitiba há alguns anos), ocupou a cadeira do outro lado de BNegão para dividir com ele os vocais de algumas das principais composições do pai. Por fim, o set list de 16 canções apontou para o que o artista carioca irá apresentar em seu próximo álbum, o primeiro efetivamente solo, que será gravado no decorrer deste ano (e muito provavelmente com o acompanhamento não só de Bosisio mas também da própria orquestra curitibana).

O que se viu durante cerca de uma hora de concerto foi um BNegão extremamente emocionado por estar no comando de versos poderosos de Caymmi, que exaltam as belezas, alegrias, tristezas e perigos do mar mais todo o universo que gravita ao redor das ondas: o vento, os peixes, as jangadas e canoas, a praia, as mulheres dos pescadores e também a soberana rainha das águas, Iemanjá. A afinação mais grave do violão usado por Caymmi nas gravações estava reproduzida por Bosisio. O vozeirão tonitruante de Danilo, por sua vez, incorporou a principal característica de seu pai enquanto intérprete. Já o também MC do Planet Hemp, por sua vez, justificou de cabo a rabo a “herança espiritual” daquele repertório. Fala mansa, timbre menos grave do que o de Dorival porém não tão longe assim para se encaixar perfeitamente nas canções, reverência constante ao mestre e ainda um ligeiro quê de esperteza e malemolência para dar brilho à interpretação das obras escolhidas para aquela noite. Do início, sossegado e na brisa de “O Vento” às várias saudações a Iemanjá (“Dois de Fevereiro”, “Promessas de Pescador”, “Morena do Mar” e “Rainha do Mar”), passando por flertes com o PH, como no canto falado da work song “Pescaria (Canoeiro)” ou nos versos violentamente trágicos e impactantes de “A Jangada Voltou Só”.

E não poderia ser algo diferente o final de toda aquela celebração que não com “Canção da Partida”. De vinheta de abertura do álbum Caymmi e o Mar (pertencente a uma história narrada com prosa e músicas entremeadas), a marchinha transformou-se em hino, daqueles de serem cantados a plenos pulmões. Tanto que, segundo contou Danilo no palco daquela noite, tornou-se um grande hit na Rússia de Vladimir Putin. Tudo por conta de uma adaptação do cinema norte-americano (rodada inteiramente na Bahia e falada em inglês) do livro Capitães de Areia, de Jorge Amado. The Sandpit Generals, de 1971, foi fracasso de bilheteria em território norte-americano, mas fez tanto sucesso quando exibido na então União Soviética, com a canção na voz de Dorival na trilha sonora. Se no Brasil pouco se soube sobre a produção, já que ela fora censurada pela ditadura militar, os jovens russos adotaram a melodia, que depois até ganhou uma versão em russo e se transformou em símbolo da entrada no mundo adulto no comunismo da era anterior a Leonid Brejnev, que liderou o Soviete Supremo de 1977 até morrer em 1982). Vale lembrar que aquele período ficou conhecido como era da estagnação. Muitos dos recrutas dispensados de servir ao país durante a Guerra do Afeganistão (que duraria de 1979 a 1989) não encontravam oportunidades de estudar nem trabalhar e viram na obra do baiano o manifesto perfeito para quem se encontrava às margens da sociedade e via o ingresso em organizações mafiosas daquele país como a única tábua de salvação para continuar tocando a vida.

No Guaíra, a pequena multidão não vinha de Moscou e arredores e nem devia saber da existência do tal filme mas reagiu tal qual aquela juventude russa distante dos anos de 1971 (o filme) ou 1957 (Caymmi e o Mar). Quando o arranjo acabou, a alternativa para os cantores e instrumentistas ali no palco foi retomar a música imediatamente, de tanto entusiasmo e efusividade. Sinal de toda a contemporaneidade de Dorival Caymmi, afinal grande parte da plateia do teatro era formada por pós-adolescentes, jovens e jovens adultos que também não eram nascidos no tempo da produção fonográfica praieira de Caymmi ou quando The Sandpit Generals foi rodado. E tal como BNegão, tiveram uma epifania – agora coletiva – naquela noite ao som da obra do baiano que cantou como ninguém o mar (e sem saber nadar, aliás!). 

Set list: “O Vento”, “Noite de Temporal”, “Quem Vem Pra Beira do Mar”, “Pescaria (Canoeiro)”, “Dois de Fevereiro”, “O Bem do Mar”, “Promessa de Pescador”, “Morena do Mar”, “Rainha do Mar”, “Itapoã”, “O Mar”, “A Jangada Voltou Só”, “É Doce Morrer no Mar”, “A Lenda do Abaeté”, “Saudade de Itapoã” e “Canção da Partida”.