Books, Movies

A Noite das Bruxas

Terceira aventura do detetive Hercule Poirot chega às telas juntando a verve literária de Agatha Christie à onda atual dos filmes de terror

Texto por Abonico Smith

Foto: Fox/Disney/Divulgação

Agatha Christie é um dos nomes mais festejados da literatura de ficção e entretenimento de todo o século 20. Sua escrita agradável aliada a intrincados enredos repletos de mortes, mistério e suspense criaram uma legião de adoradores, sobretudo do principal personagem criado pela britânica. Protagonista de dezenas de histórias publicadas por décadas, o detetive Hercule Poirot tornou-se um rei do whodunnit com seu faro implacável para descobrir pistas nos menores e mais escondidos sinais deixados nas cenas dos crimes e amarrar motivos e pessoas envolvidas com perspicácia e inteligência extrema, assombrando não só as pessoas ao redor como também todos os leitores. Nada mais natural, portanto, que meios populares como o cinema e TV absorvessem as tramas para oferecê-las às novas gerações por meio do audiovisual.

Depois de algum sucesso nas telonas durante os anos 1970, o personagem voltou recentemente a ganhar foco em Hollywood, desta vez vivido pelo ator e diretor Kenneth Branagh. Em dobradinha com o roteirista Michael Green, ele recolocou Poirot nas salas de projeção (ou melhor, nos trilhos), em 2017, adaptando o clássico Assassinato no Expresso Oriente. Com elenco estelar e direção de arte (o que inclui cenários e figurinos) de encher os olhos para quem gosta de toda a pompa e beleza do visual vintage. O sucesso de bilheteria logo proporcionou uma segunda produção (outro título bastante popular) também com os mesmos ingredientes. Contudo, a pandemia e polêmicas pessoais em torno de Armie Hammer, um dos atores principais de Morte no Nilo, fizeram o longa ser engavetado e ter sua estreia adiada para o começo de 2022.

Por isso o curto intervalo de tempo para uma terceira obra, que chega aos cinemas de todo o mundo nesta semana. A Noite das Bruxas (A Haunting In Venice, EUA/Reino Unido/Itália, 2023 – Fox/Disney), entretanto, quebra um pouco o esquema dos anteriores para correr maiores riscos. Boa jogada de Green e Branagh, que acertam em cheio, já que a adaptação do crime ocorrido no cruzeiro de luxo que percorre as águas do rio egípcio deu uma bela balançada e quase provocou o naufrágio da continuidade do detetive belga no cinema. Para começar, a diferença já vem na escolha da obra literária dentro da galeria de títulos escritos por Christie. Não só Hallowe’en Party é um romance um tanto quanto desconhecido do grande público como ele também é uma das criações derradeiras dela. O livro saiu em 1969, mais de trinta anos depois de Assassinato no Experesso Oriente e Morte no Nilo. Agatha já estava nos anos finais de sua longeva vida e isso acaba por se refletir na premissa da trama. Outro detalhe é que esta história de Poirot mergulha fundo no terror, mais precisamente em questões ligadas ao sobrenatural – o que vira um grande chamariz de audiência, já que este é o gênero que vem bombando há várias temporadas nas bilheterias mundiais, sempre com grande oferta de títulos pipocando aqui e ali, inclusive produções de países fora do eixo anglo-americano.

Terceiro apontamento: o filme joga o protagonista em nos aposentos lúgubres de um castelo supostamente assombrado na Veneza do pós-guerra, de onde nem ele nem ninguém pode sair por conta da água dos canais e da chuva torrencial que cai a noite inteira. Entre fantasmas, comunicação com os mortos e tentativas bem e mal sucedidas de assassinatos, o protagonista precisa lutar contra seus próprios demônios e manter-se mentalmente são para poder solucionar o que está à sua frente. Ou seja, ele bate o pé no ceticismo mais irretocável para provar que o mundo de lá realmente não existe e o além-vida não passa de uma sequência de farsas e fraudes. Mesmo que tudo pareça, de fato, real.

Hercule, entretanto, não está sozinho nesta empreitada. Aliás, ele nem desejava estar lá no castelo. Ao ter escolhido a charmosa e secular cidade no nordeste italiano para morar enquanto curte a aposentadoria de sua vida como investigador, acaba sendo procurado por uma velha amiga, a autora de livros de suspense e mistério Ariadne Oliver. Interpretado por Tina Fey, este explícito alter-ego de Agatha Christie transformado em um de seus personagens mais famosos, convence Poirot a ajuda-la em mais um caso que pretende utilizar em seus livros: desvendar se uma famosa médium é capaz de conversar mesmo com quem já bateu as botas. Os dois vão a uma sessão promovida pela mãe de uma jovem que teria sido assassinada anos antes, na noite de 31 de outubro. Enquanto isso, a mesma mulher promove no castelo uma festa local e tradicional para as crianças da cidade naquela data.

Michael e Kenneth mexem bastante na história criada por Agatha, a ponto de nem utilizar o nome original do livro (na verdade, o título em português resgata o mesmo utilizado por aqui desde o seu primeiro lançamento). Joyce Reynolds, a tal sensitiva mediúnica, não é uma adolescente de 13 anos de idade e que garante ter presenciado um homicídio. No filme, aliás, ela já tem idade bem avançada e provoca polêmica na opinião pública, sendo inclusive presa por acusações de falsidade ideológica. Michelle Yeoh faz o papel e garante alguns pequenos alívios cômicos da história, sobretudo nos diálogos trocados com o “insensível” e racional detetive.

Diferentemente de Morte no Nilo, aqui o foco é na trama mesmo, não no passado de Hercule Poirot e em dilemas pessoais trazidos por ele lá do passado. Com isso, não só Michael e Kenneth enxugam bastante o tempo de projeção como permitem uma narrativa mais fluida e direta, sem tanta lenga-lenga e demora para engrenar e envolver o espectador no misterioso caso. Tudo bem que em determinadas ocasiões os jump scares apresentados não diferem muito do trivial dos filmes de terror. Entretanto, essa ferramenta não compromete o resultado final nem o envolvimento do espectador. Aliás, a trilha sonora composta pela celista islandesa Hildur Guðnadóttir ajuda a dissociar as imagens do lugar-comum.

O elenco também se mostra mais afiado do que aquele escolhido para o segundo longa. Além de Fey e Yeoh, temos aqui Kelly Reilly (a tal mãe da jovem), Camille Cottin (a empregada da mulher), Jamie Dorman (um médico que sofre com o estresse pós-traumático provocado pelos horrores da Segunda Guerra Mundial), Jude Hill (o filho dele, entrando na puberdade e um adolescente nada convencional), Emma Laird e Ali Khan (os irmãos que querem fazer de Reynolds uma mera escada para poderem fugir aos Estados Unidos e morar lá de vez).

Para um filme que propõe a quem assiste embarcar em uma sessão de quase duas horas de entretenimento de qualidade, com direito a astúcia e inteligência, A Noite das Bruxas deve garantir a sobrevivência de Hercule Poirot nas telas por mais um bom tempo. E não só isso, aliás. James Pritchard, bisneto da escritora britânica, administrador de seu legado e produtor executivo dos longas dirigidos e estrelados por Branagh, dá indícios de que um novo elemento do agathaverso está prestes a ser descortinado. Pode estar vindo por aí a primeira história da  versão feminina de Poirot, a senhora solteirona que brinca de detetive amadora conhecida como Miss Marple.

Music

BNegão – ao vivo

MC do Planet Hemp recria obra praieira de Dorival Caymmi com a participação de Danilo Caymmi e da Orquestra à Base de Sopro de Curitiba

Texto e foto por Abonico Smith

Bernardo Santos teve uma epifania na adolescência, nos anos 1980, deitado no chão do quarto, ouvindo o vinil Canções Praieiras, de Dorival Caymmi. Durante a audição das quatro faixas do lado A, seu corpo tremia todo, a cabeça alucinava com as imagens propostas pelas letras. Quando a agulha chegou ao sulco central do long play, bateu aquele medo de virar o disco. Se a metade inicial já provocara todo esse rebuliço nele, arriscar as outras quatro faixas finais logo de cara passava a ser algo temeroso a se fazer de imediato.

Esta pequena lembrança de sua adolescência foi contada logo após o início do show BNegão Canta Dorival Caymmi com a Orquestra à Base de Sopro de Curitiba, a principal atração do último dia 27 de janeiro da tradicional Oficia de Música de Curitiba que há 40 edições enche de harmonias, melodias, cantos e instrumentos a capital paranaense. No Teatro Guaíra, BNegão voltava a receber seu fiel escudeiro neste projeto, o violinista Bernardo Bosisio, para recriar as tradicionais canções registradas na fase “praieira” de Dorival Caymmi, majoritariamente gravadas no formato voz e violão. Juntos, algumas vezes já se apresentaram algumas vezes nos últimos anos para celebrarem este período todo especial da obra desta divindade que representa um período de ligação entre os sambas-canção da era de ouro do rádio no Brasil (todos os anos 1940) e o surgimento da bossa nova (final dos 1950). Desta vez, porém, trouxe novidades.

Dois convidados ilustres da cidade também participaram do concerto. Veio primeiro Orquestra à Base de Sopro de Curitiba, criada há 25 anos e com extenso currículo de concertos e presenças na Oficina, veio primeiro. Com doze instrumentistas de sopro (um deles seu regente e diretor artístico, Sergio Albach) e mais o acompanhamento de bateria, percussão, contrabaixo acústico e piano. Preencheu alguns dos arranjos com uma sofisticada orquestração que em vários momentos não só relembrou a sofisticação do pop dos anos 1960 como também o tempo em que as canções pré-praieiras de Caymmi era executadas pelos muitos músicos contratados para trabalhar diariamente no auditório da Rádio Nacional no Rio de Janeiro. Isto é, tempos em que a música popular, fosse nacional ou estrangeira, apresentava uma riqueza de possibilidades analógicas que maravilhavam todo e qualquer ouvido. E já na metade final do repertório, Danilo Caymmi, um dos filhos do homenageado (e que também mora em Curitiba há alguns anos), ocupou a cadeira do outro lado de BNegão para dividir com ele os vocais de algumas das principais composições do pai. Por fim, o set list de 16 canções apontou para o que o artista carioca irá apresentar em seu próximo álbum, o primeiro efetivamente solo, que será gravado no decorrer deste ano (e muito provavelmente com o acompanhamento não só de Bosisio mas também da própria orquestra curitibana).

O que se viu durante cerca de uma hora de concerto foi um BNegão extremamente emocionado por estar no comando de versos poderosos de Caymmi, que exaltam as belezas, alegrias, tristezas e perigos do mar mais todo o universo que gravita ao redor das ondas: o vento, os peixes, as jangadas e canoas, a praia, as mulheres dos pescadores e também a soberana rainha das águas, Iemanjá. A afinação mais grave do violão usado por Caymmi nas gravações estava reproduzida por Bosisio. O vozeirão tonitruante de Danilo, por sua vez, incorporou a principal característica de seu pai enquanto intérprete. Já o também MC do Planet Hemp, por sua vez, justificou de cabo a rabo a “herança espiritual” daquele repertório. Fala mansa, timbre menos grave do que o de Dorival porém não tão longe assim para se encaixar perfeitamente nas canções, reverência constante ao mestre e ainda um ligeiro quê de esperteza e malemolência para dar brilho à interpretação das obras escolhidas para aquela noite. Do início, sossegado e na brisa de “O Vento” às várias saudações a Iemanjá (“Dois de Fevereiro”, “Promessas de Pescador”, “Morena do Mar” e “Rainha do Mar”), passando por flertes com o PH, como no canto falado da work song “Pescaria (Canoeiro)” ou nos versos violentamente trágicos e impactantes de “A Jangada Voltou Só”.

E não poderia ser algo diferente o final de toda aquela celebração que não com “Canção da Partida”. De vinheta de abertura do álbum Caymmi e o Mar (pertencente a uma história narrada com prosa e músicas entremeadas), a marchinha transformou-se em hino, daqueles de serem cantados a plenos pulmões. Tanto que, segundo contou Danilo no palco daquela noite, tornou-se um grande hit na Rússia de Vladimir Putin. Tudo por conta de uma adaptação do cinema norte-americano (rodada inteiramente na Bahia e falada em inglês) do livro Capitães de Areia, de Jorge Amado. The Sandpit Generals, de 1971, foi fracasso de bilheteria em território norte-americano, mas fez tanto sucesso quando exibido na então União Soviética, com a canção na voz de Dorival na trilha sonora. Se no Brasil pouco se soube sobre a produção, já que ela fora censurada pela ditadura militar, os jovens russos adotaram a melodia, que depois até ganhou uma versão em russo e se transformou em símbolo da entrada no mundo adulto no comunismo da era anterior a Leonid Brejnev, que liderou o Soviete Supremo de 1977 até morrer em 1982). Vale lembrar que aquele período ficou conhecido como era da estagnação. Muitos dos recrutas dispensados de servir ao país durante a Guerra do Afeganistão (que duraria de 1979 a 1989) não encontravam oportunidades de estudar nem trabalhar e viram na obra do baiano o manifesto perfeito para quem se encontrava às margens da sociedade e via o ingresso em organizações mafiosas daquele país como a única tábua de salvação para continuar tocando a vida.

No Guaíra, a pequena multidão não vinha de Moscou e arredores e nem devia saber da existência do tal filme mas reagiu tal qual aquela juventude russa distante dos anos de 1971 (o filme) ou 1957 (Caymmi e o Mar). Quando o arranjo acabou, a alternativa para os cantores e instrumentistas ali no palco foi retomar a música imediatamente, de tanto entusiasmo e efusividade. Sinal de toda a contemporaneidade de Dorival Caymmi, afinal grande parte da plateia do teatro era formada por pós-adolescentes, jovens e jovens adultos que também não eram nascidos no tempo da produção fonográfica praieira de Caymmi ou quando The Sandpit Generals foi rodado. E tal como BNegão, tiveram uma epifania – agora coletiva – naquela noite ao som da obra do baiano que cantou como ninguém o mar (e sem saber nadar, aliás!). 

Set list: “O Vento”, “Noite de Temporal”, “Quem Vem Pra Beira do Mar”, “Pescaria (Canoeiro)”, “Dois de Fevereiro”, “O Bem do Mar”, “Promessa de Pescador”, “Morena do Mar”, “Rainha do Mar”, “Itapoã”, “O Mar”, “A Jangada Voltou Só”, “É Doce Morrer no Mar”, “A Lenda do Abaeté”, “Saudade de Itapoã” e “Canção da Partida”.

Movies, Music

Bowie: Moonage Daydream

Película com acesso a muito material inédito da trajetória de David Bowie é um bilhete de loteria transformado em ode à arte

Texto por Fabio Soares

Foto: Universal Pictures/Divulgação

Brett Morgen é uma sujeito de sorte. Às vésperas de completar 54 anos, o diretor californiano (que esteve à frente de Cobain: Montage of Heck, filme de 2015 sobre a vida do líder do Nirvana) obteve acesso a milhares de arquivos de imagens, manuscritos e registros sonoros de David Bowie, tudo disponibilizado pela família do cantor. Aliás, o termo “cantor” transforma-se em definição diminutiva e errônea diante da mastodôntica importância do britânico, morto em janeiro de 2016 e que hoje faria 76 anos de idade.

A película Bowie: Moonage Daydream (EUA, 2022 – Universal Pictures) foi exibida em cinemas no Brasil por somente uma semana durante a segunda quinzena do último mês de setembro. Ela não é um documentário. Também não é um filme. Muito menos um videoclipe com exacerbada extensão. É um bilhete de loteria transformado em ode à arte.

Com narração do próprio Bowie, este acontecimento multissensorial convida o espectador a mergulhar (sem tanque de oxigênio) por águas tortuosas. O jogo de imagens incomoda, instiga, provoca. Morgen sabia que o acesso a registros nunca antes divulgados era um bilhete de loteria valioso demais para ser desperdiçado. A marcial trilha sonora ainda é um personagem à parte. Há Bowie para todos os gostos. Do lirismo de “Rock and Roll With Me” à urgência de “Cracked Actor”, passando pela fase dançante da monumental retorno da carreira após breve hiato no início dos 1980, tudo impressiona, é grandioso e magistral.

A montagem do longa também merece destaque. A sobreposição de camadas visuais, misturadas a imagens de apresentações ao vivo, elevam a experiência audiovisual a outro patamar. Tente não se emocionar com Bowie cantando “Space Oddity” simultaneamente em 1972 e 1997. Perceba, nesta hora, a discreta diminuição de uma oitava na execução noventista.

Os mais esotéricos se surpreenderão com o ascendente em aquário do popstar sobrepor-se ao seu lado capricorniano, fazendo com que ele não criasse raízes em lugar algum, mudasse de país quando lhe desse na telha e carregasse consigo apego ZERO a lugares e pessoas. Desapego este que desabou por completo ao conhecer Iman Mohamed Abdulmajid, a modelo somali por quem se apaixonou em 1992. Mas daí é outra história.

Após a sessão, a vontade de possuir Bowie: Moonage Daydream no modal físico é mais que justificável! Saí da sala de cinema querendo adquirir o DVD, a camiseta, o CD, o vinil, o shampoo ou seja lá qual for o produto oriundo desta obra de arte que extrapole o conceito de documentário.

Só que no streaming (disponível para locação via Amazon Prime no Brasil) podemos consumir a películas uma, duas, quinze, cento e cinquenta vezes! Documento vivo de nosso tempo. Um tempo que é só nosso e que podemos fazer dele o que quisermos.