Postei nas redes sociais no último dia 17 de julho: quando morre alguém da estatura de João Donato, a gente tem a certeza que a lacuna deixada dificilmente será preenchida. Senão vejamos. Donato, 88 anos, mais de 70 de carreira, ajudou a criar a bossa nova ainda em meados dos anos 1950. Foi um dos expoentes do “lado jazz” da bossa, composto por músicos brasileiros que deram suas próprias versões para o ritmo americano, ajudando a criar uma nova variante, que se casou com as experiências que vieram do lado de Jobim, Gilberto e cia. É correto dizer que a turma de Donato seria uma das responsáveis pelo que se chamou de samba-jazz nos anos 1960. E também é correto dizer que ele encontrou um espaço muito mais interessado e cheio de oportunidades nos Estados Unidos. E foi com Jobim que Donato viria a realizar a sua estreia em disco, Chá Dançante, lançada antes do estouro da bossa nova, em 1956.
João já era pianista profissional desde os 19 anos e liderava o Donato e seu Conjunto quando recebeu a oportunidade. A atuação de Jobim foi como curador do repertório do álbum, que seria lançado pela Odeon. Entre as canções escolhidas estavam No Rancho Fundo” (Lamartine Babo – Ary Barroso), “Carinhoso” (Pixinguinha – João de Barro), “Baião” (Luiz Gonzaga – Humberto Teixeira), “Peguei um Ita no Norte” (Dorival Caymmi). Dali em diante, ele iniciaria uma carreira de sucesso e prestígio, que o levaria para uma temporada nos Estados Unidos, tocando em cassinos e boates. Voltaria em 1962, com a bossa nova já estourada mundialmente. Ficou pouco tempo, regressando para a terra do Tio Sam e mantendo sua trajetória lá fora, já tendo na bagagem discos importantes como A Bossa Muito Moderna (1963) e The New Sound of Brasil (1965).
O trabalho mais surpreendente desta fase da carreira de Donato, que, na verdade, antecipa o momento que viveria na primeira metade da década seguinte, é A Bad Donato, lançado em 1970. É um disco surpreendente e impressionante, que mostra como João se tornara fluente no jazz moderno, quase tangente ao funk, com arranjos que também incorporavam psicodelia, trazendo versões diferentes para canções que, àquela altura, já se tornaram clássicos de sua lavra como “A Rã” e “Cadê Jodel?”. Os arranjos ficaram por conta de Eumir Deodato, uma estrela em ascensão na época , que recrutou gente como Bud Shank, Oscar Castro Neves, Dom Um Romão e Paulinho Magalhães para participar do álbum.
João voltaria ao Brasil em 1972 e lançaria os dois discos mais representativos de sua música no Brasil: Quem é Quem (1973) e Lugar Comum (1975). O primeiro é o grande trabalho de jazz samba que ele sempre desejou fazer, devidamente turbinado por suas vivências musicais acumuladas em mais de dez anos nos Estados Unidos. É o primeiro trabalho em que Donato canta, com produção de Marcos Valle e alternando clássicos como “A Rã” (cantada pela primeira vez, com letra de Caetano Veloso), “Cadê Jodel?”, “Me Deixa” (que recebeu letra de Geraldo Carneiro), o instrumental “Amazonas” e até uma composição inédita de Dorival Caymmi, feita especialmente para o disco, “Cala Boca Menino”. Em seguida veio o “disco baiano” de João Donato, Lugar Comum, cuja faixa-título já marcava sua parceria com Gilberto Gil. Outras duas faixas também receberam letra de Gil: “A Bruxa de Mentira” e “Emoriô”, esta última bem em sintonia com o momento pelo qual o baiano atravessava, a transição entre os álbuns Refazenda (1975) e Refavela (1976). Os dois ainda assinariam pelo menos uma canção de muito sucesso, cerca de dez anos depois: “A Paz”, que seria gravada por Zizi Possi e, posteriormente, por Gil em seu álbum Em Concerto, de 1987.
Falando nisso, Donato só regressaria ao disco cerca de vinte anos depois, compondo esporadicamente para outros artistas. Deste período é a nossa canção preferida de sua lavra, “Nasci Para Bailar”, que ganhou interpretação marcante de Nara Leão em 1982. Ele teria um belo álbum instrumental lançado em 1986, Leilíadas, totalmente dedicado à esposa, Leila, mas sua volta efetiva ao mercado fonográfico seria mesmo em 1995, com Coisas Tão Simples, no qual retorna aos clássicos dos anos 1960, gravaria inéditas (como a linda “Gaiolas Abertas”) e reveria canções mais recentes, caso da própria “Nasci Para Bailar”, que ele interpretaria com o filho, Donatinho, ainda bem jovem. Daí pra frente, ele lançaria dezenas de álbuns, entre registros ao vivo, discos de inéditas, colaborações e parcerias. A gente destaca A Blue Donato (2006, com interpretações minimalistas de alguns clássicos perdidos), Água (2011, bela colaboração com a cantora Paula Morelenbaum), Aquarius (2012, em parceria com Joyce Moreno, no qual os dois dividem repertórios), Donato Elétrico (2016, um discaço com canções arranjadas tendo o jazz fusion como linha-mestra) e a trinca mais recente de álbuns: Sintetizamor (2017, em parceria com Donatinho, numa pegada de funk-jazz oitentista), Síntese do Lance (em parceria com Jards Macalé) e o sensacional Serotonina, lançado em 2022, no qual Donato surge atemporal, totalmente sintonizado com novos parceiros, como Anastácia, Céu, Maurício Pereira e Rodrigo Amarante.
João Donato teve uma carreira impressionante e muito influente para a consolidação da música brasileira no exterior. Aqui, como vários outros contemporâneos seus, foi menos conhecido e reconhecido do que deveria. Por essas e outras, é necessário recomendar alguns destaques de sua vastíssima trajetória. Hoje e sempre. Obrigado, João.
Vinte e cinco itens que, 25 anos após a morte de Kurt Cobain, constituem o legado da banda
Texto por Cristiano Viteck
Fotos: Reprodução
Goste ou não, você tem de concordar que o Nirvana foi a última grande banda de rock. Grande no sentido de suas músicas repercutirem muito além do mundinho da cultura pop, o que a transformou em fenômeno de massa como poucas vezes se viu.
A Nirvanamania saiu dos palcos das casas de shows, ganhou as ruas, chegou às passarelas da moda, virou dissertações de mestrado e teses de doutorado. O comportamento errático do grupo, em especial de Kurt Cobain, motivou debates na imprensa com psicólogos, médicos, religiosos, professores. Motiva até hoje algumas pessoas dedicarem suas vidas a colocar em dúvida se a morte do cantor foi mesmo suicídio ou assassinato.
O legado da banda continua a influenciar gerações nascidas no pós-Nirvana, que encontram naquela música a energia, o prazer, a raiva, as respostas ou pelo menos um ombro amigo para as angústias do dia-a-dia.
Entre aqueles que viveram a Nirvanamania no auge, além da nostalgia, ainda há que se pergunte “o que foi tudo aquilo”. Então, chovem mais livros, filmes e teses a cada ano buscando a explicação.
Neste primeiro fim de semana de abril, completam-se 25 anos do suicídio do compositor, cantor, guitarrista e líder Kurt Cobain. Especula-se que ele tenha morrido no dia 5, mas seu corpo só foi encontrado três dias depois, em sua casa em Seattle, onde passava uns dias sozinho, sem a presença da esposa Courtney Love. E como sempre acontece com astros que morrem muito cedo – e se for de forma trágica, mais ainda – o homem à frente do Nirvana teve sua imagem de jovem rebelde eternizada. Ele cheira a espírito adolescente e para sempre!
De uns tempos para cá, o rock parece cada vez mais música para gente velha. Mas o Nirvana, não. Como Kurt, a sua música também não envelheceu. Aquelas canções e letras, por mais difíceis de compreender, tratam de temas universais como o amor, o ódio, a culpa e o perdão (ou a falta dele). Por isso sempre encontrarão jovens dispostos a ouvi-la, como é natural para toda grande arte.
Os números não mentem. Um quarto de século após o fim, o Nirvana é uma força. No Spotify, seu “rival” do grunge (e ainda na ativa) Pearl Jam, soma 8 milhões de ouvintes. O Metallica, chega a 12,3 milhões. O Foo Fighters, liderado por Dave Grohl que tem presença quase diária nos portais de música com suas peripécias e projetos diversos, atinge 10 milhões de ouvintes. A rainha do pop Madonna, tem 9,4 milhões. O trio formado por Kurt, o baixista Krist Novoselic e o então baterista Grohl supera todos estes, com média de 12,5 milhões de ouvintes. Nada mal para uma banda liderada por alguém que está morto há tanto tempo.
Apresentamos, a seguir, uma lista de 25 itens (livros, discos, filmes, shows, exposição) que contribuíram para a permanência da banda e de Kurt Cobain no panteão dos deuses do rock e da cultura da rebeldia juvenil. Como toda lista, ela é incompleta. Mas serve de mapa para percorrer os caminhos trilhados até aqui pelo legado do Nirvana.
Unplugged In New York (1994)
Primeiro disco póstumo lançado, Unplugged In New York chegou às lojas em 1º de novembro de 1994. Retirado do show gravado quase um ano antes para a série Unplugged, da MTV, o registro é um dos momentos mais sublimes da carreira do Nirvana. Das 14 faixas, oito são versões de músicas da própria banda e, ainda assim, somente um hit massificado pelas rádios (“Come As You Are”, executada logo de cara). As demais foram covers do Vaselines (“Jesus Doesn’t Want Me For a Sunbeam”), David Bowie (“The Man Who Sold The World”), Meat Puppets (“Plateau”, “Oh Me” e “Lake of Fire”) e Leadbelly (“Where Did You Sleep Last Night”). Mesmo 25 anos depois, Unplugged in New York é um disco que incendeia a memória e emociona os fãs. Detalhe: há distorção no violão.
A estreia do Foo Fighters (1995)
Após o suicídio do amigo e companheiro de banda, o baterista Dave Grohl quase desistiu da música. Por sorte, mudou de ideia e seguiu em frente com um novo projeto, agora como vocalista, guitarrista e compositor. O álbum de estreia do Foo Fighters – que leva apenas o nome da banda – foi lançado em 4 de julho de 1995 pelo selo Roswell, criado pelo próprio Grohl. Foi ele quem tocou todos os instrumentos no disco. Este é o trabalho mais cru da carreira do Foo Fighters e aquele que mais se aproxima da sonoridade do Nirvana. Para o álbum foi resgatada a canção “Winnibago”, presente no álbum Pocketwatch, trabalho solo pouco conhecido que Dave Grohl lançou em 1990 sob o pseudônimo Late!, pouco antes de ocupar em definitivo a vaga de baterista do trio. Deste mesmo disco, o Nirvana gravara anteriormente “Colour Pictures of a Marigold”, mas batizada apenas como “Marigold”. A canção, única música cantada e de autoria de Dave Grohl no Nirvana, foi o lado B do single “Heart-Shaped Box”.
O primeiro disco ao vivo com guitarras (1996)
O segundo disco póstumo traz a banda no seu habitat natural. From The Muddy Banks Of Wishkah é uma coletânea de 17 canções gravadas em diferentes shows entre 1989 e 1994. A maior parte da compilação traz o Nirvana em sua melhor forma, quando a apatia e as drogas ainda não haviam roubado o brilho e a energia de Kurt Cobain no palco ou fora dele. A cereja do bolo deste repertório é a faixa ao vivo de “Spank Thru”, cuja versão oficial em estúdio havia sido lançada apenas na coletânea Sub Pop 200, de 1988.
Krist Novoselic de volta à música (1997)
Este episódio faz parte da lista mais por ser o primeiro sinal de vida de Krist Novoselic pós-Nirvana do que propriamente pela importância do trabalho. Depois de Dave Grohl se dar bem com o Foo Fighters, em 1997 foi a vez de Krist Novoselic apostar suas fichas. Mas, diferentemente do primeiro, o baixista do Nirvana não foi bem-sucedido com o projeto Sweet 75. Tendo como parceira a cantora venezuelana Yva Las Vegas, o disco de estreia decepcionou os fãs do Nirvana e foi recebido friamente pela imprensa. Após este fracasso, veio outro. Em 2002, Krist lançou junto com Curt Kirkwood (Meat Puppets) e Bud Gauch (Sublime) o único disco do Eyes Adrift, que não teve destino melhor que o Sweet 75. O mais novo projeto do baixista é a banda Giants In The Trees, cujo disco de estreia foi lançado em 2017, também sem muito alarde. Mais interessantes são outros dois projetos dos quais Krist Novoselic participou. Em 2007, ele assumiu o baixo do Flipper, grupo de pós-punk que teve grande influência sobre o Nirvana. Com a banda Krist gravou dois discos: Love, com material inédito registrado em estúdio, e Fight, ao vivo, ambos lançados há dez anos. Menção honrosa também para a participação dele no No WTO Combo, que contava também com Jello Biafra (Dead Kennedys) e Kim Thayil (Soundgarden). A banda lançou um disco ao vivo em 2000, Live From The Battle Of Seattle, gravado um ano antes, nas manifestações que tomaram as ruas da cidade-berço do grunge, durante reunião de líderes da Organização Mundial do Comércio.
Kurt & Courtney (1998)
Em fevereiro deste ano estreou o primeiro documentário a ter grande repercussão, por defender a tese de que o líder do Nirvana fora assassinado. A suposta criminosa? A viúva, claro. Dirigido por Nick Broomfield, o filme foi exibido pela BBC. Chegou também a ter sua exibição agendada para o Festival de Sundance, mas os organizadores desistiram depois de serem ameaçados de processo por Courtney Love. Familiares e amigos de Kurt Cobain, autoridades policiais e alguns outros sujeitos sinistros de credibilidade questionável são ouvidos no documentário. Dylan Carlson, o amigo que comprou a arma com a qual Kurt teria tirado a própria vida (ou sido assassinado!), aparece também. O clímax é o depoimento do cantor punk El Duce, no qual afirma que Courtney teria lhe oferecido 50 mil dólares para matar o esposo. Ele também diz saber quem matou Kurt, mas que prefere deixar que o FBI descubra. Dois dias depois de ser entrevistado para o documentário, El Duce morreu atropelado por um trem. Portanto, prato cheio para quem gosta de teorias da conspiração. Atulamente, o filme está à disposição para ser visto pelos assinantes da Netflix no Brasil.
Mais Pesado Que o Céu (2001)
A década seguinte ao suicídio de Kurt Cobain foi marcada por uma enxurrada de lançamentos literários sobre a vida do músico e a banda, que começavam a ser revistos com o devido distanciamento histórico, que permite interpretar melhor a carreira e o legado do artista. E é isso o que faz a primeira grande biografia de Kurt Cobain, Heavier Than Heaver, lançada em 2001. Ela foi escrita pelo jornalista Charles R. Cross, que por 15 anos foi editor do The Rocket, jornal musical de Seattle publicado entre 1979 e 2000. Com ampla pesquisa de arquivo e muitas entrevistas com pessoas próximas a Kurt em todas as fases da vida do cantor, o biógrafo conseguiu fazer um retrato apurado do líder do Nirvana. O livro foi lançado por aqui em 2002, com o título Mais Pesado Que o Céu. Em 2014, quando se completaram 20 anos do fim trágico do Nirvana, Charles R. Cross lançou outro livro, Here We Are Now: The Lasting Impact On Kurt Cobain (no Brasil chamado Kurt Cobain: A Construção do Mito). Esta obra é um olhar atento sobre o que representava o Nirvana duas décadas depois de ter transformado a cultura pop mundial.
Nossa Banda Podia Ser Sua Vida (2001)
Seguindo a onda de excelentes publicações que começaram a surgir à época e que tinham o Nirvana como mote, neste ano também foi lançado o livro Our Band Could Be Your Life: Scenes From American Indie Underground 1981-1991, do jornalista Michael Azerrad. Ele mostra como o Nirvana e a explosão do rock alternativo no início dos anos 90 não aconteceu por acaso. Ao resgatar a história de 13 bandas – entre elas Black Flag, Mission Of Burma, Minor Threat, Dinosaur Jr, Sonic Youth, Beat Happening, Hüsker Dü e Replacements – Azerrad interliga cenas musicais diversas da década de 1980 nos Estados Unidos que, embora pequenas, foram influentes e deram a base de fãs necessária para que o Nirvana saltasse do underground ao mainstream com o álbum Nevermind, em 1991. Com tradução do título ao pé da letra, Nossa Banda Podia Ser Sua Vida ganhou edição brasileira no final do ano passado. Azerrad também é autor de Come As You Are: A História do Nirvana, a biografia oficial do Nirvana, de 1993. Uma longa entrevista de Michael Azerrad com Kurt também deu origem ao cultuado documentário About a Son – Retrato de Uma Ausência, de 2006.
“You Know You’re Right” (2002)
A última canção de estúdio gravada pelo Nirvana foi lançada em 2002, na coletânea também batizada Nirvana. Editada como single para promover a compilação de sucessos, “You Know You’re Right” levou o trio de volta ao topo das paradas da Billboard e teve ampla divulgação na MTV, deixando mais do que evidente que havia uma base gigante de fãs sedentos por material inédito. Quem acompanhava a carreira da viúva de Kurt Cobain, Courtney Love, logo lembrou que a composição inédita do Nirvana havia sido tornada pública pelo Hole em 1995, em show da banda para a série Unplugged MTV. A faixa foi apresentada pelo Hole com o nome de “You’ve Got No Right”. A versão do Nirvana foi gravada poucas semanas após o lançamento do álbum In Utero, no final de 1993.
Os diários de Kurt (2002)
Se o livro Mais Pesado Que o Céuapresentava uma visão ampla da vida e da carreira de Kurt Cobain, a publicação dos diários do músico mergulhou os fãs na intimidade e na mente do líder do Nirvana. Journals não ganhou edição em português, o que se justifica pelo fato de o livro ser a reprodução exata das centenas de páginas em que o músico registrou, através de escrita e desenhos, seus aspirações, alegrias e frustrações. Estão lá esboços de letras que se tornariam famosas, de capas de discos que foram ou não lançados pelo grupo, as famosas listas de preferências do vocalista. O que salta aos olhos na leitura dos diários é a transição do problemático jovem músico que sonhava em se tornar rockstarem uma estrela mundial deprimida pelo sucesso e o vício, que já anunciava a própria morte em seus cadernos íntimos.
Fragmentos de Uma Autobiografia (2002)
Também neste ano, o jornalista brasileiro Marcelo Orozco lançou um título sobre o líder do Nirvana. Kurt Cobain: Fragmentos de Uma Autobiografia, chegou às livrarias pela saudosa Editora Conrad. Na obra, Orozco se propôs a fazer aquilo que o próprio biografado desencorajou o público a tentar: atribuir significados biográficos às composições (“cansei de ver pessoas querendo por sentido em minhas letras”, disse uma vez Kurt). Em geral, percebidos como difíceis de decodificar, os versos do compositor continuam inspirando e desafiando os fãs ao longo dos anos. De um jeito ou de outro, Orozco consegue fazer em seu livro um apanhado razoável da vida de Cobain e a obra merece crédito por isso. O autor justificou sua motivação. “Em sua música, Kurt soltava raiva quando sentia raiva; era doce quando se sentia doce; despachava rancores e pedia desculpas quando magoava alguém; tinha tristeza e humor. Imperfeito, complexo, vivo. E transparente, mesmo quando os versos pareciam enigmas sem sentido para outras pessoas”, afirmou o jornalista.
De grunge e governo (2004)
Após o fim do Nirvana e com os novos projetos musicais que não deram certo, o baixista Krist Novoselic passou a se dedicar a causas sociais e, principalmente, políticas. Um dos temas que mais o motivam é a revisão do processo eleitoral dos Estados Unidos. Desde 2005, ele é um dos mais ilustres membros da FairVote, organização fundada em 1992 em defesa desta causa. Um ano antes de entrar para a FairVote, Krist Novoselic publicou o livro Of Grunge and Government: Let’s Fix This Broken Democracy. Na obra, sem tradução para o Brasil, o músico e ativista expôs suas críticas e propostas para modernizar as eleições naquele país. E também explicou o seu interesse tardio pela política: “Eu costumava acreditar na retórica punk que defendia o completo abandono das instituições, a lógica sendo que nosso governo é a fonte da injustiça, então ele é o problema. Meu erro foi confundir hipocrisia, abuso de poder e a exclusão alimentada pelo nosso sistema eleitoral falido com sistema democrático. De modo errado eu me separava do meu governo. Hoje em dia, muitos cidadãos estão cometendo o mesmo erro.”
With The Lights Out (2004)
Após batalhas judiciais que se estenderam por anos pelos direitos do espólio do Nirvana, foi lançado em novembro de 2004 o box With The Lights Out. Formado por três CDs e um DVD, este material deu caráter oficial a uma série de gravações ao vivo, demos e faixas lançadas de forma avulsa pelo Nirvana em tributos, trilhas sonoras e afins. São 61 faixas de áudio e outras 20 registradas em vídeo no DVD. É ainda a melhor antologia do Nirvana: cobre toda a carreira da banda, desde o começo em Aberdeen em 1987 até o seu final em Seattle, em 1994. Uma das faixas mais interessantes é o cover de “Seasons In The Sun”, do cantor Terry Jacks, presente no DVD. Gravada em estúdio no Rio de Janeiro, em 1993, tem Kurt Cobain no vocal e bateria, Krist Novoselic na guitarra e Dave Grohl no baixo. Com essa mesma formação, a banda também tocou a música na caótica apresentação do festival Hollywood Rock, em São Paulo.
Classic Album: Nevermind (2005)
Produzida pela Isis Productions e distribuída pela Eagle Rock Entertainment, Classic Albums é uma série de documentários para TV/DVD sobre discos que se tornaram legendários. Com entrevistas com músicos, produtores, jornalistas, empresários e quem mais puder contribuir para contar uma boa história sobre os registros destes álbuns, a série é um prato cheio aos aficionados em música pop. Em 2005, Nevermindfoi esmiuçado em um dos episódios. Krist Novoselic, Dave Grohl e o produtor Butch Vig deram seus depoimentos sobre os bastidores das gravações. Chama atenção como, mesmo depois de tanto tempo desde o lançamento, os três ainda se mostram surpresos com o tamanho do sucesso alcançado por Nevermind, registrado pela modesta quantia de 60 mil dólares. Dave Grohl: “eu não pensava que estávamos gravando um álbum clássico, apenas pensava que ele soava bem”. Krist Novoselic: “este disco é o que de melhor eu fiz na minha vida”.
Live At Reading (2009)
São muitos os que dizem, inclusive membros do Nirvana, que a melhor apresentação em toda a história do grupo foi a do Reading Festival, no dia 30 de agosto de 1992, época em que o Nirvana e o grunge eram fenômeno mundial. Junto a isso, os vícios e as overdoses de Kurt Cobain já alimentavam a imprensa, sendo as vidas dele, da esposa Courtney Love e da filha Frances Bean estampadas com frequência nas capas dos tabloides sensacionalistas britânicos. Quem não se lembra das reportagens que afirmavam que Courtney havia usado continuamente heroína durante a gravidez e que a filha do casal havia nascido viciada? Vivendo em um mundo onde caos pode ser a palavra definidora, muitos duvidavam de que Kurt apareceria para fechar a noite grunge do Festival. Até mesmo os membros do Nirvana estavam receosos sobre se conseguiriam fazer uma apresentação à altura da expectativa que havia sobre a “maior bando do mundo” na época. Dave Grohl: “Eu realmente pensei, ‘Isso será um desastre. Será o fim da nossa carreira’. E aí acabou sendo um show maravilhoso que nos curou por um tempinho”. Em 2009, Live At Reading foi lançado em áudio e vídeo para todos poderem ver e ouvir porquê esta ser considerada uma apresentação histórica. Além de músicas conhecidas, naquela o Nirvana antecipava outras que estariam em In Útero (“Tourette’s”, “All Apologies”) e fez versões de “The Money Will Roll Right In” (do Fang), “D-7” (do Wipers) além da já popular entre os fãs “Love Buzz” (do Schocking Blue). Não há como citar a entrada de Kurt no palco naquela noite, empurrado em uma cadeira de rodas e vestindo um jaleco de doente, fazendo piada com os rumores a respeito da própria saúde.
Os vinte anos de Nevermind (2011)
O 20º aniversário do disco Nevermind foi marcado pelo lançamento de um box supercaprichado, disponível em diversos formatos: vinil quádruplo, 4 CD + DVD ou CD duplo. Além do álbum “normal”, dependendo da versão que os fãs adquirissem, o material oferecia b-sides, versões inéditas, demos e faixas ao vivo. É verdade que boa tarde do material já estivesse disponível nos incontáveis bootlegs do Nirvana, mas não com a qualidade agora oferecida. Do material que marcou a efeméride, o mais interessante é a gravação da apresentação realizada em 31 de outubro de 1991. O show também foi lançado só em vídeo, com o título Live At The Paramount. A apresentação é o marco zero da Nirvanamania. Vale lembrar que o mesmo show havia sido dissecado pelo jornalista brasileiro André Barcinski no livro Barulho, lançado em 1992. Ele esteve lá, gostou muito do que viu e profetizou na época: “O legal do Nirvana é que eles ainda não têm uma história. Ela está sendo contada agora. Daqui uns dez ou vinte anos, a gente vai poder falar daquela ‘loucura do final de 91’”.
Os vinte anos de In Utero (2013)
As duas décadas de In Utero receberam tratamento semelhante ao 20º aniversário de “Nevermind”. O último disco de estúdio do Nirvana foi relançado em: vinil triplo, CD duplo e 3 CD + DVD. Da mesma forma, o material era formado pelo álbum normal, b-sides, versões e faixas ao vivo. Mas dois itens merecem destaque. Um deles é o vídeo, também lançado separadamente, com o show Live And Loud,que o grupo gravou em Seattle em 13 de dezembro de 1993 e originalmente exibido pela MTV como um programa especial. Outro material de destaque é a versão “2013 Mix” de In Utero, lançada em vinil duplo e capa diferente, com uma nova mixagem de Steve Albini, produtor original do disco e conhecido pela crueza de suas gravações. À época, a mixagem feita por ele foi motivo de uma pequena polêmica. A lenda é de que os diretores da gravadora detestaram o disco. Os membros do Nirvana também ficaram em dúvida quanto ao resultado. Por fim, acabou que a mixagem original de Albini ficou polida na masterização e duas das faixas de maior potencial radiofônico (“Heart-Shaped Box” e “All Apologies”) foram remixadas por Scott Litt, produtor identificado pelo seu trabalho de sucesso com o REM. A versão “2013 Mix” de Steve Albini mostra um In Utero mais áspero do que o original.
Hall da Fama do Rock and Roll (2014)
Na noite de 10 de abril de 2014, quando a morte de Kurt completava 20 anos, o Nirvana passou a fazer parte do Hall da Fama do Rock and Roll. A cerimônia, realizada em Nova York, marcou a primeira vez que Krist Novoselic, Dave Grohl e o agregado Pat Smear voltaram a se apresentar como Nirvana. Tocaram quatro músicas, todas cantadas por mulheres: Joan Jett (“Smells Like Teen Spirit”), Kim Gordon (“Aneurysm”), St Vincent (“Lithium”) e Lorde (“All Apologies”). O discurso de introdução ficou por conta de Michael Stipe (REM). Momento fofura da noite foi a reconciliação no palco entre Courtney Love e Dave Grohl, brigados desde sempre após o fim do Nirvana. As comemorações se estenderam noite adentro em um bar, com um show de 19 músicas tocadas pelo Nirvana com a participação das mesmas cantoras, entre outros convidados.
Fotos inéditas do corpo (2014)
Além de muitas homenagens, os vinte anos da morte de Kurt Cobain ficaram marcados pelo retorno das teorias de que ele fora assassinado. Isso motivou o Departamento de Polícia de Seattle a divulgar cerca de vinte fotos do local e de como Kurt Cobain foi encontrado, como forma de refutar a hipótese de assassinato. Apenas partes como o braço ou o pé de Kurt Cobain aparecem em algumas das imagens. Ainda assim, algumas fotos são bastante perturbadoras. Retratos da arma usada também foram tornadas públicas em 2016.
Sonic Highways (2014)
Depois de fazer, em 2013, o documentário Sound City, que conta a história do estúdio onde o Nirvana gravou Neverminde outras bandas também fizeram álbum clássicos, Dave Grohl lançou no ano seguinte a série de TV Sonic Highways, exibida nos Estados Unidos pela HBO e no Brasil pelo Canal Bis. O documentário é dividido em oito episódios, retratando oito cidades-chave na história da música estadunidense: Austin, Chicago, Los Angeles, Nashville, Nova York, Nova Orleans, Seattle e Washington. Grohl percorreu estas cidades e entrevistou músicos e produtores e visitou locais fundamentais de cada cena musical ali surgidas. O resultado é brilhante e não está descartada uma segunda temporada da série. Já o disco de áudio do projeto, lançado como apêndice do documentário e gravado nas mesmas localidades, é o mais fraco do Foo Fighters. A série foi lançada em DVD e blu-ray em 2015.
Soaked In Bleach (2015)
A teoria da conspiração de que Kurt Cobain fora vítima de assassinato ganhou um novo capítulo em 2015. Soaked In Bleach, documentário dirigido por Benjamin Stattler, questiona a versão oficial do suicídio. Tem depoimentos de autoridades que trabalharam no caso da morte de Kurt e principalmente do ex-detetive Tom Grant, contratado por Courtney Love para encontrar o marido dias antes dele ser achado morto. O próprio Tom reforça a suspeita de que a história de “suicídio” não passa de farsa. Soaked In Bleach é explícito na intenção de acusar Courtney como assassina ou mandante do “crime”.
Montage Of Heck (2015)
Um dos projetos mais importantes relacionados a Kurt Cobain. O filme/disco/livro Montage Of Heckfoi um mergulho nos arquivos do ex-líder do Nirvana, com o consentimento de Courtney Love e da filha Francis Bean. Dirigido por Brett Morgen, o carro-chefe do projeto é o documentário, que remonta a história de Kurt da infância até o suicídio. Tem imagens tocantes, como do músico feliz da vida quando criança brincando, fazendo “música” e se divertindo valer. Outras cenas são perturbadoras, como o músico chapadaço em um momento família: o primeiro corte de cabelo da filha. Morgen teve trabalho para pesquisar e dar um sentido ao material que tinha em mãos. Foram quase oito anos entre o início da produção e o lançamento de Montage Of Heck. O disco resultante já é menos interessante, até mesmo porque muito do arquivo musical de Kurt já havia sido explorado exaustivamente. Mas uma joia foi encontrada: uma gravação de “And I Love Her”, coverdos Beatles cantado e tocado no violão e registrado sem maiores pretensões por Cobain, que virou o single promocional do projeto. Menos repercussão teve o livro homônimo. Uma injustiça, pois ele reúne as entrevistas completas para o documentário com o avô Don Cobain, a mãe Wendy O’Connor e a irmã Kim, além das falas de Courtney Love, Krist Novoselic e a ex-namorada Tracy Marander. O livro é ilustrado com muitas fotos de Kurt e frames das animações de Stefan Nadelman e Hisko Hulsing que foram utilizadas em muitos momentos do documentário, quando não havia registros em vídeo para situações vividas por Kurt.
Taking Punk To The Masses no Brasil (2017)
Entre junho e dezembro de 2017, primeiro o Rio de Janeiro e depois São Paulo, receberam a exposição Taking Punk To The Masses. Foi a primeira vez que ela saiu de Seattle, onde estava sendo exibida desde 2011 no Museu de Cultura Pop da cidade. Com mais de 500 itens, muitos deles icônicos, a coleção é o maior acervo sobre Kurt Cobain e o Nirvana no mundo. Para o Brasil, o curador Jacob McMurrey selecionou cerca de 200 peças. Entre elas: a fita demo original gravada por Jack Endino em 1988, o contrato da banda com a gravadora Sub Pop, manuscritos originais de letras de músicas, pôsteres, roupas, instrumentos musicais, credenciais. O visitante pôde interagir ainda mais com o mundo do Nirvana, a partir de instalações interativas ou se perdendo na coleção de 21 discos de artistas diversos selecionados por Krist Novoselic. Coisa para fã nenhum botar defeito.
Batalha judicial (2018)
Após quatro anos de uma disputa judicial entre o jornalista Richard Lee e o Departamento de Polícia de Seattle, a Justiça decidiu que as fotografias do corpo morto de Kurt Cobain jamais poderão ser divulgadas. Sobre o processo Frances Bean, filha de Kurt, disse: “Liberar estas fotografias machucaria fisicamente a mim e minha mãe. Não posso imaginar o quão terrível seria saber que as imagens que o Sr. Lee procura seriam públicas, ou que eu ou qualquer uma das pessoas que amo, incluindo a mãe e as irmãs do meu pai, poderiam vê-las acidentalmente. A publicação destas fotos me chocaria e reforçaria o estresse pós-traumático de que sofro desde a infância”. Richard Lee foi um dos primeiros jornalistas a questionar a versão de suicídio. Há mais de duas décadas, ele foi o responsável pelo documentário amador Kurt Cobain Was Murdered, exibido pelo canal a cabo Seattle Public Access TV. Ele insiste até hoje nesta versão.
Cal Jam (2018)
Em 6 de outubro de 2018, Krist, Dave e Pat mais uma vez se apresentaram como Nirvana. A reunião aconteceu no Cal Jam, festival promovido pelo Foo Fighters na California. Para os vocais, mais uma vez Joan Jett foi convidada (“Breed”, “Smells Like Teen Spirit” e “All Apologies”), assim como John McCauley, membro da banda Deer Tick (“Serve The Servants”, “Scentless Apprentice” e “In Bloom”). Desde então, Krist e Dave têm considerado seriamente a possibilidade de uma pequena turnê do Nirvana. Os fãs aguardam ansiosamente!
Lembrando Kurt Cobain (2019)
Neste último dia 2 de abril, foi lançado nos Estados Unidos um novo livro de memórias: Serving The Servant: Remembering Kurt Cobain. Ele foi escrito por Danny Goldberg, empresário do Nirvana e um dos melhores amigos de Kurt entre o início de 1991 até o fim trágico em 1994. Goldberg esteve no olho do furacão durante o período mais famoso e turbulento da banda. Agora, 25 anos depois, ele compartilha suas lembranças, com a ajuda de outras pessoas próximas que também deram seus depoimentos para o livro. “Da forma que eu vejo, quem antecedeu o nível de Kurt em se conectar com a angústia adolescente não se encontra no cânone do rock and roll, mas na ficção de JD Salinger, particularmente em O Apanhador no Campo de Centeio. Como nesta clássica novela dos anos 1950, a arte de Kurt deu dignidade aos oprimidos”, comentou Goldberg. Ainda não exisye previsão de lançamento deste livro no Brasil.
Live At The Paramount, o vinil (2019)
E o mais recente item oficial da discografia é o lançamento, agora em vinil, do show Live At The Paramount. É a mesma apresentação de 31 de outubro de 1991, que já havia sido lançada oficialmente em vídeo e também em áudio (na edição superluxo comemorativa aos vinte anos de Nevermind). A data oficial de lançamento deste vinil é o próximo dia 12 de abril. O disco virá acompanhado de um pôster e uma réplica do ingresso daquele show.
Cantora fala sobre os diversos projetos, sua entrada nos Autoramas, a carreira solo, o passado na Penélope e o que ainda está por vir
Entrevista por Fábio Soares
Fotos: Léo de Azevedo/Divulgação (Érika) e Divulgação (Autoramas)
Ela é um dos mais famosos rostos femininos do rock brasileiro e vive o melhor momento de sua longeva carreira de pouco mais de duas décadas, iniciada com a banda Penélope e seguida de período solo. Há quatro anos, integra (ao lado do marido Gabriel Thomaz, o baixista Jairo Fajer e o baterista Fábio Lima) o “conglomerado” Autoramas, a mais bem sucedida banda independente brasileira, que no próximo mês de maio viajará à Europa para a sua décima sexta turnê internacional. Não sem antes finalmente tocar no festival Lollapalooza, no Autódromo de Interlagos, em São Paulo. Ou depois subir ao palco Sunset, no próximo Rock In Rio, para ser uma das convidadas especiais dos Titãs.
Antes de uma apresentação na capital paulista, Érika Martins recebeu o MONDO BACANA em seu camarim para uma entrevista. Na pauta, a música como filosofia de vida, a objetificação da mulher no rock e projetos que estão por vir.
No início de sua carreira, nos anos 1990, você teve contato com dois grandes produtores que, infelizmente, não estão mais entre nós: Tom Capone e Carlos Eduardo Miranda. Atualmente, essa figura do superprodutor anda ausente no cenário por uma série de fatores. Na sua opinião, a presença de um grande nome assinando a direção artística de um trabalho ainda é preponderante ou a possibilidade de lançar um trabalho de forma independente não a torna tão necessária assim?
Acho que isso independe da época em que vivemos e que cada década teve o seu grande nome em produções musicais. Não que isso também seja algo primordial na gravação de um disco. No meu caso, tive a sorte e o privilégio de trabalhar com esses dois grandes nomes. Na época das gravações do primeiro disco da Penélope, Mi Casa, Su Casa, a Sony Music nos disponibilizou um grande orçamento para realizá-lo. Para se ter uma ideia, a verba nos possibilitou que o grande Eumir Deodato fizesse os arranjos de cordas do disco. Enfim, tínhamos infinitas possibilidades ao nosso alcance.
Como chegaram ao Tom Capone?
Por indicação do Marcio Melo, artista baiano que tinha, nos anos 1980, uma banda com a Lan Lanh, ex-percussionista de Cássia Eller, e com a Érika Nande, que foi nossa baixista na Penélope. Junto com ele, veio o Antoine Midani, filho do “messias” André Midani, que eu já admirava por seus trabalhos de arranjos de voz com a Marisa Monte.
Imaginei que você tivesse conhecido o Tom Capone através da Constança [Scofield, tecladista da Banda Penélope e viúva do produtor]…
Não! Aí é que vem a história que é sensacional: nosso primeiro encontro com o Tom foi no estúdio para a pré-produção do disco. Quando os dois trocaram olhares, eu já senti a faísca! Se apaixonaram! Assim, Mi Casa, Su Casa foi gravado em meio a uma bolha de amor maravilhosa!
Então você é testemunha de que amores à primeira vista realmente existem!
Sim! Presenciei! E a Constança sempre foi mais séria e cética… Quando a vi apaixonada daquele jeito perguntei a mim mesma: “o que tá acontecendo com minha amiga?” (risos)
E como você conheceu o Miranda?
Com o sucesso da repercussão do Mi Casa… fui convidada para gravar uma participação no disco Só No Forévis, dos Raimundos [Érika participou da faixa “A Mais Pedida”, grande sucesso do grupo e que foi amplamente executada nas rádios]. Recebi o convite em Salvador, sem ter a mínima ideia de como seria minha participação. Fui ao Rio, cheguei no estúdio para gravar e dou de cara com quem? O Miranda! Que já era ídolo de todos nós havia muito tempo. Pra você ter uma ideia, em 1995 saí de Salvador e vim a São Paulo distribuir algumas fitas-demo da Penélope e uma das pessoas que eu já tinha em mente para entregar era o Miranda. Ele foi muito receptivo e disse “pô, já estava esperando esse material faz tempo!”. Quase cinco anos depois estava eu ali, em estúdio com ele. Apesar de ter passado três meses com o Tom na gravação do Mi Casa…, eu era muito jovem e ainda muito verde em gravações. Mas aí veio o Miranda, com toda a paciência do mundo para me ensinar o caminho das pedras. Uma generosidade ímpar. Olhava para ele e pensava: “caramba, é o Miranda… que pressão e responsabilidade!”. Tudo correu bem e foi sensacional. Era um grande produtor.
Quais eram as diferenças mais evidentes entre os dois? Ou eles eram muito parecidos no modo de trabalhar?
O Tom era mais “mão cheia”. Tocava e timbrava os instrumentos como ninguém. Metia a mão na massa de verdade. Já o Miranda tinha o dom de saber extrair do artista o que ele tinha de melhor. Além de ser uma espécie de olheiro de primeira. Tinha uma capacidade surreal de descobrir novos artistas. Um curador de verdade.
Certa vez, vi o Miranda dizer numa entrevista que pesquisava novos artistas de uma maneira quase compulsiva.
Sabe o que era legal no Miranda? Ele ia aos shows! Cheguei a encontrá-lo uma vez num festival em Belém do Pará. Em outra, fiz um show solo em Porto Alegre e quem estava na plateia? O Miranda! Acho que isso está em falta atualmente. Hoje dificilmente você encontra produtores em shows algo que acrescentaria em muito no trabalho deles. Sacar o que está rolando sem beber exclusivamente da fonte da internet.
Já que tocamos no assunto, com pouco mais de vinte anos de carreira, você já pensou em produzir outros artistas?
Agora faria sim. Antes não me sentia segura o suficiente mas neste momento adoraria pegar um trabalho do zero e colocar meu toque pessoal. Estou mais à vontade.
O que falta é tempo…
Nem me fale! Às vezes acordo e nem sei por onde começar. Tenho os Autoramas, minha carreira solo, Lafayette & Os Tremendões [projeto de Érika e Gabriel Thomaz para releituras de clássicos da Jovem Guarda com a participação de Lafayette Coelho, tecladista e grande nome do movimento], o Chuveiro In Concert [projeto de karaokê ao vivo com banda, realizado na maioria das vezes em eventos corporativos]… É muita coisa! Imagina ter que parar tudo isso pra assinar a produção de um disco! (risos) Depois ainda temos que ouvir que artista não trabalha.
Pegando o gancho dessas diversas atividades que você exerce, em seu pouquíssimo tempo livre ainda há disposição para descobrir novas bandas e artistas?
Sim! Sempre! Até porque recebo quase diariamente em minhas redes sociais muito material de novas bandas. Claro que não dá para ouvir tudo de uma vez mas sempre procuro fazer isso e dar o feedback depois. Nisso acabo descobrindo muita coisa boa e quer saber? Tenho preferência para ouvir o que ainda não está na mídia. É muito prazeroso ouvir artistas em início de carreira e dar força e atenção a eles é o mínimo que posso fazer. E, intimamente, agradecer ao universo por ter tido o privilégio de viver de música.
Libido é o oitavo álbum dos Autoramas e foi muito bem recebido pela critica especializada, inclusive fora do país. A banda é praticamente uma unanimidade no cenário independente brasileiro. Uma prova disso, foi o recente lançamento da coletânea A 300 Km Por Hora, na qual 41 artistas estão reunidos para homenageá-los. No meio dessa louca rotina que levam, já caiu a ficha de que vocês são um expoente da cena e, por tabela, um exemplo a serem seguidos? Ou então relaxam com relação a isso para que tudo flua naturalmente?
Tenho uma visão mais destacada com relação a este assunto. Estou na banda há quatro anos e convivo com o Gabriel há mais de quinze. Quando a Penélope fez shows no Rio para lançar o Mi Casa…, a gravadora nos pediu uma indicação para banda de abertura e não pensei duas vezes: Autoramas, que eu já adorava desde aquela época. Quando eu casei com o Gabriel passei a “respirar” os Autoramas mais ainda. Mais até do que os próprios integrantes. Lembro de uma vez o Gabriel precisar de um cenário para um show e, como sempre gostei dessa parte de cenografia, eu mesma costurei o cenário. Fora isso, já compúnhamos juntos e eu participava dos discos e shows. Então, mesmo eu não fazendo parte da banda, tinha esta visão destacada do respeito que o público tinha pelos Autoramas e de que sua obra nunca teria um conteúdo raso. Via ao vivo e pensava: “é uma banda para a História, criativa, original, única e com tudo muito inspirado!”, Lembro-me de assistir a documentários de bandas que amo, como Ramones ou Cramps… Quando vejo os Autoramas hoje, logo penso que no futuro ela será lembrada como estes artistas. Exponencial. Por isso me sinto privilegiada. Por ter vivido os dois lados: de fã e integrante.
Sua carreira solo estava muito bem encaminhada e você ainda colhia os frutos do sucesso do álbum Modinhas quando foi integrada à banda. Houve algum momento de hesitação de sua parte em dar este hiato ou aceitou de imediato?
Não pensei duas vezes! Mas isso foi um processo mais que natural tendo em vista que eu já participava da banda de uma forma ou outra. E o convite veio num momento muito apropriado porque eu já havia divulgado muito bem o Modinhas na imprensa. Fiz shows nas principais capitais e no exterior, inclusive. Então, minha entrada nos Autoramas não gerou nenhum tipo de confronto de datas, por exemplo. Eu já estava numa fase de parar e pensar em um próximo projeto. Mas minha carreira solo não acabou não, hein? (risos) Há um novo projeto a caminho que só não está em andamento por conta da grande demanda de nossa agenda. Mas o que queria dizer é que estar nos Autoramas vai muito além da questão artística pura e simplesmente: tem a ver com vida. Tem a ver com o que escolhi para mim. Adoro viajar, conhecer gente, lugares novos, outras culturas e os Autoramas me propiciaram tudo isso. Além, é claro, o fato de poder viajar com o Gabriel, que é meu marido. Antes de meu ingresso na banda, viajávamos pouquíssimas vezes juntos. Era cada um para um lado. Mas, agora, não. Fazemos tudo juntos, viajamos o mundo juntos e tocamos numa banda sensacional. Realmente, me sinto privilegiada em viver tudo isso.
Tocarei num assunto polêmico agora: objetificação da mulher na música. Agora, em 2019, completam-se vinte anos de sua participação no álbum Só No Forévis, dos Raimundos. Uma dúvida paira no ar quando surge a questão se os Raimundos fariam o sucesso hoje em dia devido ao conteúdo de algumas de suas letras, tendo em vista que a questão do feminismo final e merecidamente está em voga nos dias de hoje. Gostaria de saber como você se sentia na época com relação a este assunto. Isso já te incomodava há vinte anos?
Sempre procurei ser um exemplo de ir contra esse tipo pensamento. No início da Penélope, uma de minhas maiores preocupações era justamente peitar essa coisa machista de que “para se fazer rock era necessário ter uma postura masculinizada”. Sempre fui contra isso! Com relação ao convite dos Raimundos, deixei bem claro que não colocaria minha voz ou emprestaria minha imagem ao clipe de uma faixa que tivesse palavrão, putaria ou algo pejorativo do tipo porque meu perfil não é esse. Tanto é que a temática de “A Mais Pedida” é totalmente outra. Sobre o conteúdo de algumas letras dos Raimundos que, por ventura, seriam muito mal vistas hoje em dia, sempre achei meio papo de “turma de fundão”, sabe? Mesmo não concordando, estava lá. Existia. O que sempre pensei com relação a qualquer coisa era: temos que ocupar os espaços! Se o espaço é machista, temos que ocupá-lo sendo a referência do contrário. Muitas meninas me procuravam na época e diziam odiar essa coisa do machismo no rock e viam, na minha figura, alguém que dizia o discurso que elas queriam ouvir. Mas olha só: eu fui projetada pelos Raimundos! O disco da Penélope estava engavetado, na geladeira. Só foi lançado porque “A Mais Pedida” foi o sucesso que foi. Os Raimundos foram a ponte para que eu chegasse a algum lugar. E chegar a esse lugar sendo um exemplo do que é legal. Ser mulher e ter atitude! É preciso ocupar e preencher os espaços. Na divulgação do Mi Casa… fomos convidados para o Faustão e choveram críticas do tipo “que queimação de filme!”. Nem ligamos para isso. Tínhamos de aparecer e levar nosso discurso ao maior número possível de pessoas e levo esse pensamento até hoje. Não concorda com o conteúdo de programa X ou emissora Y? Vá lá e mostre o contrário. Mostre a esse público que só consome X ou Y que há um mundo de outras possibilidades. E se conseguir a fazer com que alguém absorva sua mensagem e se interesse pelo seu trabalho, já terá valido a pena.
Você já tocou em duas edições do Rock In Rio. Neste ano, o Lollapalooza, em sua oitava edição, finalmente convidou os Autoramas para o line up. No festival dos sonhos da Érika, quem tocaria no mesmo dia dos Autoramas?
Cara, tanta banda! Os B-52s, com certeza! Encontramos a Cindy Wilson no ano passado no Festival South by Southwest e foi um sonho! O Cramps também estaria. Dos nacionais, sem dúvida, a Gang 90 com a formação original, com as Absurdettes, seria lindo! Adoraria ter conhecido o Júlio Barroso. Acho que tá bom, né?
Está ótimo! Vocês sempre tiveram uma relação de muito afeto com a Jovem Guarda. Além do Lafayette, vocês recentemente tiveram contato com o Silvio Brito. Elocubração do entrevistador aqui: uma parceria entre Autoramas e Erasmo Carlos. Já pensaram em algo a respeito?
Ele é maravilhoso! Superaberto! Recentemente assistimos à sua biografia no cinema. Ficamos muito emocionados. Mandamos uma mensagem e ele respondeu “muito obrigado, meu casal lindo!”. Sempre foi muito carinhoso conosco e sempre fomos apaixonados por ele. Fazer algo juntos seria mágico! Sempre tivemos muito respeito com o pessoal da Jovem Guarda. A Wanderléa participou do segundo álbum da Penélope (Buganvília, na faixa “Não Vou Ser Má”). Com relação ao Silvio Brito, já temos um projeto em andamento e com o qual estamos ensaiando. Muito respeito por essa turma mais antiga e que nos ensinou e continua nos ensinando demais. Amo escutar as histórias. Certa vez, o Lafayette e o Jerry Adriani ficaram horas contando histórias e ficamos ali, assistindo a isso de boca aberta.
Em maio, os Autoramas embarcarão para mais uma turnê europeia. Quando retornarem, a divulgação de Libido prosseguirá ou vocês darão mais atenção a estes novos projetos?
Libido seguirá a todo vapor, até porque foi lançado há pouquíssimo tempo. Estou louca para que saia logo o clipe de “No Futuro”, minha faixa favorita do álbum.
Creio que seja a favorita de todo mundo!
Pois é! (risos) Estou sonhando com esse clipe mas, como não paramos nunca, um milhão de coisas acontecerão paralelamente. Lançarei o áudio do especial que fiz para o Canal Brasil. Já o Gabriel lançará o disco de seu projeto instrumental, o Gabriel Thomaz Trio. Enfim, não pararemos.
E qual é o limite dos Autoramas?
Não há limite! Trezentos quilômetros por hora são pouco… (risos) Bota trezentos quilômetros por hora nisso!