Music

Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá – ao vivo

Turnê com repertório mais suave baseado em dois discos da Legião Urbana se encaixa bem em um teatro de Curitiba

Texto e foto por Abonico Smith

Primeiro elemento: ar. Confissão, entrega, espelho. Segundo: água. Amor, relacionamento, self. Terceiro: terra. Grandes êxitos. Quarto: fogo. Luta, mudanças, política. Na sequência dos quatro elementos da natureza dispostos em uma linha contínua, o complemento do ser humano. Quinto, então: espírito. Só o amor salva.

Foi seguindo esta continuidade que foi montado o repertório da nova turnê de Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá, que desde 2015 percorrem o país todo celebrando as canções (que ajudaram a conceber) da Legião Urbana (banda da qual participaram ativamente e fizeram parte da formação fonográfica clássica). Legalmente não podem utilizar o nome. Mas, afinal, quem que é fã se importa? Por onde passam eles carregam velhos e novos admiradores que estufam o peito, cantam alto e em uníssono tudo de cabo a rabo e celebram hits e lados b do quarteto/trio que saiu de Brasília em meados dos anos 1980 para se tornar uma das marcas mais pungentes do rock brasileiro.

Nos dias 25 e 26 de agosto último de Dado, Bonfá, o vocalista convidado André Frateschi e os outros que compõem o competente trio de apoio dos instrumentistas passaram novamente por Curitiba – justamente a primeira capital, que lá nos idos de 1985, bancou a primeira passagem de avião da Legião para tocar fora do Rio de janeiro, onde o grupo já havia gravado o primeiro álbum e estabelecido moradia. A turnê se chama As V Estações, batismo que condensa os nomes do quarto e do quinto álbum da carreira (respectivamente As Quatro Estações e V, lançados em 1989 e 1991), que fornecem a base para a maior parte do atual set list. Ambos são justamente trabalhos que marcam uma transição profunda na trajetória da banda, então reduzida a trio com a saída do baixista Renato Rocha. A intensidade das letras compostas por Renato Russo para a ser mais reflexiva, quando não bastante melancólica. Foram a passagem para a maturidade sem volta do mundo adulto. Saíam de campo o perfil de rapaz punk pós-adolescente para dar lugar às angústias, responsabilidades, cuidados e outras coisas que vêm junto com os trinta anos. Também foi o período em que o vocalista assumiu publicamente ser gay e descobrir ser HIV positivo. Naquela virada dos anos 1990, sempre é bom lembrar, a sexualidade ainda era um assunto para lá de tabu na mídia e na sociedade brasileira.

O que justifica a costura temática deste repertório de 22 músicas da Legião Urbana. Por isso a apresentação no Teatro Guaíra, um local mais recatado e conservador do que uma casa noturna, caiu bem para esta terceira vinda de Dado e Bonfá como Dado e Bonfá. Quase nenhuma presença do repertório politizado mais explosivo. Clássicos como “Que País é Esse”, “Geração Coca-Cola”, “Perfeição”, “Fábrica” ou  “Baader Meinhof-Blues” foram estrategicamente colocados de lado desta vez. Nada de arriscar acender qualquer pavio de polarização política na plateia – ainda mais em se tratando de uma cidade que claramente (ainda) pende para o lado perdedor da última eleição presidencial. A questão ali, naquelas duas horas de show, era celebrar a comunhão do eu com o ambiente e o mundo ao redor. O espírito com o ar, a água, a terra e o fogo. Não a faísca para que o vermelho pudesse se chocar e gerar grandes atritos com o verde-e-amarelo – embora Frateschi tenha sido bastante aplaudido e incensado ao mudar sorrateiramente dois versos para incluir referencias a questões políticas atuais (“Não boto bomba em Congresso Nacional”, em “Faroeste Caboclo”, e “Somos soldados vendendo joias”,  em “Soldados”).

As Quatro Estações e V  têm uma coisa em comum: são dois trabalhos que solidificaram a formação de trio da Legião e, por terem vindo na sequência de um período de muitas turbulências, serviram para colocar a banda nos trilhos e aquietar um pouco as coisas depois do estouro comercial e de toda a confusão vivida em 1988 no estádio Mané Garrincha, em Brasília, em uma frustrada “volta para casa após o sucesso”. No primeiro, a predominância do amor como a temática principal das canções se junta a citações do livro Tao Te Ching, da Bíblia, da literatura de Luís de Camões e a afirmação de que o caminho é um só. Fala sobre doença, aids, ditadura militar e morte mas procura trazer uma visão positiva no final. Já o posterior teve seu período de concepção abalado pelo confisco do governo Collor mais a descoberta do vírus HIV e um período de rehab de Renato. Isto se refletiu nas canções, mais lentas, sombrias, extensas e com um quê de rock progressivo, inclusive com referências à mitologia, natureza e temas que habitam o universo dos jogos de RPG e filmes/livros de fantasia.

Nove canções de As Quatro Estações, cinco do V. O que significa espaço restrito para o repertório dos outros discos. Muitos “lados B” (vale lembrar que o quinto álbum não teve single trabalhado nas rádios nem videoclipe feito para a MTV) e poucos hits. A sobra ficou para oito clássicos que não podem faltar em um show do grupo: “Faroeste Caboclo”, “Será”, “Tempo Perdido”, “’Índios’”, “Soldados”, “Eu Sei”, “Quase Sem Querer” e “Por Enquanto”. Canções que até hoje vivem sendo executadas em playlists radiofônicos, para o deleite dos mais velhos, e requisitadas nas demandas dos streamings dos mais novos. Esta configuração faz com que a atual turnê seja um pouco diferente das duas anteriores, dedicadas aos álbuns que fizeram a Legião Urbana, entre 1985 e 1988, explodir em onipresença nas rádios nacionais voltadas para o público jovem daquela época, quando o rock reinava soberano no mercado fonográfico nacional e ainda não havia sido solapado pela música sertaneja e pelo pagode.

Por ter um set list mais soft que as turnês anteriores, ter a ambientação em um teatro caiu bem para As V Estações. Poltronas para o público sentar em momentos de menor agito, horário camarada para uma noite de muito frio  em Curitiba (não era nem onze e meia da noite e o concerto já havia acabado). Telão de fundo com vídeos ilustrativos (e/ou abstratos) podendo ser bem visualizado de qualquer lugar. Boca de cena grande o suficiente para garantir boas performances de Frateschi e Dado (que chegam a encenar uma emocionante luta no intenso final de “Soldados”).

“Esta é a primeira vez que a gente levando esse show a um teatro”, comentou Dado em um determinado intervalo entre duas canções. Sinal dos tempos. O rock, gênero musical que nasceu da insatisfação e da vontade de ruptura com o status quo social distanciou-se demais de seu magnetismo perante a juvenília. Para a maior parte da geração de vinte e poucos anos restaram os grandes festivais que misturam musicalmente alhos com bugalhos e se preocupam em ser acima de tudo uma experiência, não uma finalidade musical. Restou a curiosidade de tentar imaginar como o imprevisível Renato Russo se comportaria (e o que falaria ali nos seus famosos discursos afiados ao microfone) se ali estivesse em carne e osso. Ainda mais em se tratando da terra de esmagadora maioria defensora da direita.

Set list: “Há Tempos”, “Meninos e Meninas”, “Sereníssima”, “Eu Sei”, “Quase Sem Querer”, “Eu Era um Lobisomem Juvenil”, “Sete Cidades”, “O Mundo Anda Tão Complicado”, “O Teatro dos Vampiros”, “Vento no Litoral”, “Por Enquanto/Heroes”, “Tempo Perdido”, “’Índios’”, “Será”, “Faroeste Caboclo/I Wanna Be Your Dog”, “1965 (Duas Tribos)”, “Soldados”, “Se Fiquei Esperando Meu Amor Passar”, “Quando o Sol Bater na Janela do Teu Quarto”, “Pais e Filhos” e “Monte Castelo”. Bis: “Metal Contra as Nuvens”. 

Movies, TV

Bo Burnham: Inside

Comediante de stand up usa esquetes musicais para aproximar a audiência de seu humor temático em tempos de isolamento social

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Netflix/Divulgação

O boom de popularidade da Netflix trouxe consigo maior atenção a um gênero específico de comédia: o especial de stand up comedy. De Dave Chappelle e Louis C.K. a Adam Sandler e até o dadaísta do século 21 Eric Andre, a lista de atrações do tipo nas plataformas de streaming aumenta a cada dia. Entre esses nomes, desponta o de Bo Burnham, comediante e ator cujo último especial datava de 2016, mas lança o introspectivo e inovador Inside acabando com seu hiato nos “palcos”.

Bo Burnham: Inside (EUA, 2021 – Netflix) é um longa-metragem especialmente pandêmico – dirigido, gravado e editado pelo próprio comediante em isolamento, ao mesmo tempo que aborda temas profundamente pessoais que, de uma forma ou outra, todo espectador teve de lidar em algum momento da pandemia de covid-19. Ao acostumar-se com o modelo de produção e desenvolver sua linguagem, o filme se torna melhor à medida que avança.

De um experimentalismo ímpar às produções de comédia da Netflix, o filme aceita sua condição de “banda de um homem só” e dá asas à criatividade com pouco mais de um projetor, uns painéis de luz e um estrobo. O humor fortemente musical de seu protagonista parte do tradicional esquema de voz, piano e risadas de fundo a uma produção musical completa e rica. Cada canção é um videoclipe único em estilo e, ao mesmo tempo que distinto em relação aos demais, capaz de formar coesão entre as seções do longa-metragem.

Contudo, a fórmula de Burnham para a realização de cada esquete musical é bastante repetitiva. Toma-se consciência do fluxo de edição do comediante já nas primeiras frações de Inside, o que empaca sua primeira metade consideravelmente – ainda mais àqueles que não nutrem interesse particular em stand up musical. Se esse esquecível início do especial mira em temas contundentes com o cenário político-racial dos Estados Unidos e as adaptações de convivência no início da pandemia, o panorama finalmente muda quando Bo mira em assuntos mais pessoais. A qualidade acompanha positivamente essa mudança.

O trunfo de Bo Burnham: Inside está, justamente, em aliar a mudança formal de um especial de comédia com um intenso intimismo temático. Qualquer um que sofreu com o isolamento em algum momento da pandemia encontra nas canções um espelho de sua própria inércia. O comediante também propõe uma coesão temática maior – o escurecimento dos quadros, as interseções com conteúdos amplamente consumidos na internet, reflexões sobre seu papel nas vidas contemporâneas e autorreflexões profundas definem o tom do restante da obra. Tudo presente no texto, nas piadas de fato, e na linguagem, com fotografia e montagem sempre de acordo com o discurso explorado.

Bo inicia seu Inside questionando a si mesmo: seria esse o momento para fazer piadas? Se a primeira parcela de seu longa-metragem é, de fato, a tentativa de “curar o mundo com a comédia”, como propõe, a consequência é a aceitação da impossibilidade da tarefa, o encarar o abismo e, depois de muito tempo, perceber que ele devolve um humor que beira o deprimente. Por isso, talvez, seja tão capaz de conversar com a audiência.

Music

Sisters Of Mercy – ao vivo

Andrew Eldritch e sua banda vivem de um passado cada vez mais distante mas os fãs nem ligam para a ausência de qualquer novidade

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Textos de Abonico Smith e Fábio Soares

Fotos: Abonico Smith

A discografia do Sisters Of Mercy é extremamente curta. Primeiro foram lançados dois EPs entre 1983 e 1984. Depois vieram três álbuns entre 1985 e 1990. Nos anos seguintes alguns singles e, enfim, duas coletâneas em 1992 e 1993. Depois mais nada. Neca de pitibiriba. O modelo de negócios do mercado da música mudou do vinil ao compact disc e depois à compressão digital do MP3 e nada de Andrew Eldritch se animar em compor algo novo.

Em 2016, um pouco antes da banda desembarcar pela primeira vez em Curitiba para uma apresentação, ele me disse por telefone que se sentia confortável com essa questão. Não havia planos de lançar material inédito. Três anos se passaram e o Sisters Of Mercy veio de novo à capital paranaense como uma das escalas de nova turnê pela América do Sul. E tudo continua da mesma maneira, com o repertório ao vivo passeando pelos dez anos fonográficos por uma hora e meia de show.

O que muda de tempos em tempos são os integrantes que o acompanham. Agora, na mesma Ópera de Arame, Eldritch trocou um dos guitarristas – o australiano Dylan Smith faz dobradinha com o veterano Ben Christo nas seis cordas. Um cara fica mais recuado comandando os computadores que detonam as bases pré-gravadas de baixo e bateria e lá atrás da plateia, junto ao operador das mesas de som e luz, um quinto músico incógnito se divide entre mais um computador e um teclado de cor laranja (?!?!) e de pendurar nos ombros que parece ter saído da uma típica banda tecnopop dos anos 1980.

Como já faz quase três décadas que Eldritch não faz a mínima questão de desovar material inédito do Sisters Of Mercy, todo o repertório é calcado em cima de velhos conhecidos do público. Não chegam a ser exatamente hits, mas para os fãs cada música que compõe o set list é um clássico. Recebido com urros, cantado em uníssono a plenos pulmões. A voz de Eldritch é bem grave. Não há backings, apenas o acompanhamento de todos os versos pela plateia. As guitarras de Ben e Dylan somente tecem camadas e mais camadas de riffs e harmonias que se somam ao peso dançante da cozinha que já vêm alto e direto dos computadores.

Com os músicos todos de preto e fazendo jogos coreográficos que aproveitavam-se da penumbra como o único elemento cênico, o som que o Sisters Of Mercy despejou na Ópera de Arame foi o convite perfeito para uma festa na antessala das trevas, com uma pista de dança exorcizando em passos lentos todas as suas angústias, melancolias e (por que não?) desejos ardentes e flamejantes.

O que, naquela noite em especial, tornou-se algo ainda mais curioso porque exatamente do lado da Ópera, na Pedreira Paulo Leminski, acontecia um evento cristão. Mais precisamente um concerto de canções de louvor e adoração sob o comando do grupo Hillsong United, formado há duas décadas pela união dos ministérios de uma gigantesca congregação carismática australiana chamada Hillsong. Enquanto a luz estava ali pertinho, Andrew Eldritch fazia nas sombras uma nova celebração gótica tão aguardada havia três anos. Para almas aflitas e torturadas não era preciso ter qualquer ineditismo. Vampiros, afinal, vivem por séculos e séculos e não fazem lá muita questão de novidades. (ARS)

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O que esperar de um show do Sisters Of Mercy em 2019? Quanto a você, eu não sei. Mas para mim um mínimo de dignidade a este expoente do dark não seria de todo mal. E foi com este ceticismo que me dirigi ao Tom Brasil no último sábado (9 de novembro). A plateia “quarentona” – como era de se esperar – não lotou o espaço por completo. Também é inexato rotular os fãs do Mercy com a simples alcunha de “gótico”. São seguidores fiéis. Um exército vestido de preto que acompanhará a banda tantas vezes ela pisar por aqui.

Calcado na onipresente figura de seu decano Andrew Eldritch, o grupo retornou a São Paulo com uma econômica formação com o eterno escudeiro Ben Christo e o novo guitarrista Dylan Smith. Para os efeitos de baixo e bateria, esqueça a seminal aura da Doktor Avalanche, histórica drum machine imortalizada pela banda nos anos 1980. O Sisters Of Mercy versão 2019 conta com um par de iBooks operados por um anônimo quarto integrante e que nem de longe faz lembrar o peso da engenhoca sisteriana.

“More” abriu os trabalhos na noite paulistana e o etéreo clima de um show dos Mercy mostrou que permanece com o passar dos anos: muita fumaça, iluminação à contraluz e Eldrich fazendo seu peculiar jogo de gato e rato com a plateia. Surge no centro do palco e desaparece. Ressurge no lado direito para novamente sumir em meio à fumaça no lado esquerdo. A dupla de guitarristas também procura preencher o resto como dá. Porém a proposital falta de iluminação do palco que deveria evidenciar a voz do frontman ressalta o óbvio. Com 60 anos de idade recém-completados, Eldritch tem extrema dificuldade em sustentar os tons graves de voz que os clássicos da banda exigem. Dificuldade esta explicitada em “Doctor Jeep/Detonation Boulevard”, na maravilhosa (no disco!) “Dominion” e na quase constrangedora interpretação de “Marian”. O público pouco importou-se para tal e tratou de reverenciar a figura do pai do dark enquanto pôde. Porém, a falta de punch nas programações de baixo e bateria trouxe um ar taciturno a cada canção. Uma chatíssima execução instrumental beirando os sete minutos e de nome desconhecido marcou a reta final da primeira parte da apresentação.

Parafraseando Mauro César Pereira, comentarista dos canais ESPN, o bis teve um início pífio, pragmático e resultadista com “Lucretia My Reflection” sendo executada sem a sua histórica linha de baixo. É isso mesmo o que você está lendo. “Lucretia My Reflection” sem a sua indefectível linha de baixo é o mesmo que Buchecha sem Claudinho. E cá estava eu a xingar três gerações antepassadas da Família Eldritch quando o par de ases final salvou a apresentação de um naufrágio histórico. “Temple Of Love” e “This Corrosion” foram executadas como se deve: com peso, batidas marciais e atmosfera de catarse coletiva. Ao final de noventa minutos, houve quem saiu de alma lavada, houve quem achou mais ou menos e teve este aqui que vos escreve. No fim das contas, esta apresentação só serviu mesmo para eu dizer que, um dia, vi um show dos Sisters of Mercy. Nada mais, nada menos… (FS)

Set list (SP e Curitiba): “More”, “Ribbons”, “Crash And Burn”, “Doctor Jeep/Detonation Boulevard”, “No Time To Cry”, “Alice”, “Show Me”, “Dominion/Mother Russia”, “Marian”, “Better Reptile”, “First And Last And Always”, (Unknown), “Something Fast”, “I Was Wrong”, “Flood II”. Bis: “Lucretia My Refletion”, “Vision Thing”, “Temple Of Love” e “This Corrosion”.

Music

Titãs: Doze Flores Amarelas – ao vivo

“Ensaio aberto” de ópera rock apresentado em Curitiba mostra que a banda se mantém como uma das mais criativas do país

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Texto por Marcos Anúbis e foto de Pri Oliveira (cedidos por CWB Live)

Passar mais de três décadas juntos e ainda se manter relevante e inventivo não é uma coisa comum no mundo da música. Sendo assim, o que os Titãs mostraram nesta última terça-feira (3 de abril), no Teatro Guaíra, durante o ensaio aberto da ópera rock Doze Flores Amarelas, foi revigorante. O espetáculo fez parte da programação do Festival de Curitiba, o evento mais importante do teatro brasileiro.

Antes do início do show, os diretores Hugo Possolo (ator, dramaturgo e diretor do grupo de teatro Parlapatões) e Otavio Juliano (que no ano passado produziu o documentário Endurance, do Sepultura) subiram no palco para explicar o que seria o “ensaio aberto”. Visivelmente emocionados, os dois alertaram que existia a possibilidade de parar o show se fosse necessário corrigir algum erro. A interrupção só aconteceu uma vez durante a noite.

Na sequência, as cortinas se abriram para Branco Mello (baixo e vocal), Tony Bellotto (guitarra e vocal) e Sérgio Britto (teclado, vocal e baixo) mostrarem que só melhoram com o passar do tempo. Os três, aliás, sempre foram a alma mais rock’n’roll dos Titãs e, felizmente, essa chama ainda se mantém acesa. Mario Fabre (bateria) e Beto Lee (guitarra) completam a formação atual da banda com muita qualidade.

O show é divido em três atos, que contam a história das estudantes “Marias A, B e C”, interpretadas pelas cantoras Corina Sabba, Cyntia Mendes e Yas Werneck. As meninas, como a maioria dos jovens do mundo atual, estão imersas nas redes sociais e, consequentemente, nos perigos da tecnologia. O trio usa um aplicativo chamado Facilitador, uma espécie de Facebook na trama. Procurando diversão, as garotas acabam conhecendo cinco meninos e são violentadas durante uma festa. A partir daí, buscando vingança, elas buscam a ajuda do Facilitador, que sugere o feitiço Doze Flores Amarelas, e as consequências desse ato respingam em todos os personagens até o fim do espetáculo.

No desenrolar do enredo, um dos estupradores morre e as Marias passam a se questionar, acreditando que foram elas que causaram a morte do rapaz. No enterro, as meninas decidem parar de usar o Facilitador e denunciam o abuso às autoridades competentes. O argumento do espetáculo foi escrito por Branco, Britto e Tony em parceria com Hugo Possolo e o escritor Marcelo Rubens Paiva. Em algumas passagens, a cantora Rita Lee narra parte da trama.

“Sei Que Seremos” abre o show, apresentando as “Marias A, B e C”. Durante o espetáculo, pareceu muito claro que a banda procurou construir o enredo do espetáculo por meio de suas canções. O palco foi montado de forma simples, com uma plataforma na parte de trás e um telão que exibe algumas imagens ilustrando as canções. Nada de muitos recursos cênicos ou tecnológicos.

A banda faz de suas músicas o grande atrativo de Doze Flores Amarelas, uma decisão artística que fez toda diferença. “Às vezes, você tem uma boa história, mas isso não quer dizer que ela se transformará em uma boa canção. O desafio pra gente foi transformar essas situações em boas canções. É uma coisa que a gente já tinha enfrentado quando fez o Cabeça Dinossauro, por exemplo. As pessoas falam que ele é um disco contestador, mas o que você vai falar? Como você vai fazer uma música sobre a polícia? Aí é que está o xis da questão. Às vezes, quando a gente fazia uma música muito legal, ela também influenciava na criação do argumento (do espetáculo). Nós pensávamos ‘essa música precisa estar aqui, vamos dar um jeito para que ela faça parte da história’. Eu acho que nós fomos muito bem-sucedidos e tivemos muita sorte, porque enquanto as coisas iam acontecendo a gente percebia que a coisa estava rolando”, diz Tony.

Musicalmente, algumas canções se destacam. Em “O Bom Pastor”, Branco aparece vestido com uma espécie de túnica branca e as cantoras descem do palco para colher o “dízimo” do público. Em “Canção de Vingança”, Tony assume os vocais, fato raríssimo durante a carreira dos Titãs. Já em “O Jardineiro”, Branco é caracterizado como um coveiro. Em “Me Estuprem”, que encerra o Ato I, Britto canta a letra em cima de uma melodia tocante.

Inteligência para abordar a realidade

Todos os assuntos abordados no espetáculo são “espinhosos”. Afinal, diante do extremismo do que cresce cada vez mais no Brasil, cada pessoa tem a sua própria interpretação do que ouve ou vê. Temas como a violência contra a mulher, o estupro, o machismo e outras mazelas da sociedade estão presentes no texto de Doze Flores Amarelas. E o público é convidado a refletir sobre tudo isso.

Demonstrando tranquilidade, a banda está ciente da complexidade dos temas e faz questão de ressaltar a teatralidade das canções. “Obviamente, algumas músicas não estariam em um disco nosso, normal, porque você está falando em nome de um moleque machista, que violentou. Ele está lá, exercendo o pensamento dele, e a gente fazendo essa interpretação. Nós estamos entrando nesse universo dos personagens também. Isso é rico, do ponto de vista criativo e diferente de você assinar uma música como várias que nós fizemos durante a nossa carreira”, eplica Branco. “Você expressa o pensamento de um personagem por meio da canção, não o seu pensamento”, complementa Possolo.

Desse ponto de vista, foi um desafio para a banda criar canções que se encaixassem no espetáculo não só do ponto de vista musical, mas também dentro de um viés teatral. “Essas canções têm uma particularidade porque algumas são escritas em terceira pessoa, na voz desses personagens; outras, nas de personagens periféricos, como os estupradores; e outras são meras narrações de situações que assustam, de que a gente nunca tratou. Então, do ponto de vista das letras, da maneira com que nós tratamos dos assuntos, é uma novidade porque existem aquelas que nós não gostaríamos porque elas estão na voz de um personagem que é um estuprador, e por aí vai. Do ponto de vista da criação, pra gente foi muito interessante”, reflete Britto. “Hoje, é preciso tomar cuidado com essas questões todas. Essas interpretações ao pé da letra, sem o distanciamento necessário, do valor artístico daquilo”, acrescenta Tony.

Fica muito clara também a intenção de abordar a relação dos jovens com as redes sociais e todas as implicações que isso traz. “Hoje a tecnologia e o acesso às redes sociais descontextualizaram tudo. De outra maneira, a peça fala disso e da falta de contexto que essas pessoas têm. Nós esperamos que, na ópera, as pessoas consigam entender que são vozes de personagens narrando tudo aquilo em função de uma trama que tem um ponto de vista bem definido até pela conclusão da história. Porque essas meninas sofrem as consequências do abuso e tomam a decisão que nós deixamos clara no final, que é a de denunciar o que aconteceu e se livrarem da influência das redes sociais para que possam tocar as vidas. Eu acho que o espetáculo tem esses dois motes finais que são bem importantes e contundentes pra nossa história”, analisa Possolo.

Set List: (Ato I) “Abertura – Sei Que Seremos”, “Nada Nos Basta”, “O Facilitador”, “Weird Sisters”, “Disney Drugs”, “A Festa”, “Fim de Festa”, “Me Estuprem”. (Ato II) “Interlúdio 1 –  Depois Daquela Festa.. Eu Sou Maria”, “O Bom Pastor”, “Eu Sou Maria”, “Hoje”, “Nossa Bela Vida”, “Canção da Vingança”, “Personal Hater”, “Interlúdio 2 – Doze Flores Amarelas”, “De Janeiro Até Dezembro”, “Mesmo Assim”, “Não Sei”, “Essa Gente Tem Que Morrer”. (Ato III) “Interlúdio 3 – É Você – Juntas de Novo Iríamos Enfrentar”, “Me Chame de Veneno”, “Doze Flores Amarelas”, “Ele Morreu”, “Pacto de Sangue”, “O Jardineiro”, “Réquiem”, “É Você” e “Sei Que Seremos”.