Movies

As Tartarugas Ninja: Caos Mutante

Nova animação dos quatro adolescentes cascudos que fizeram muito sucesso nos anos 1990 faz crise no cinema terminar em pizza

Texto por Janaina Monteiro

Foto: Paramount/Divulgação

“Acabou em pizza” é uma expressão genuinamente brasileira. Ela vem do futebol, uma paixão nacional. Lá nos idos anos 1960, o jornalista esportivo Milton Peruzzi era setorista do Palmeiras, o time mais italiano do país, e cobria uma grave crise no time para a Gazeta Esportiva. A reunião durou horas e, para controlar o caos e a fome dos cartolas, foram pedidas dezoito pizzas gigantes. No dia seguinte, a manchete era esta: “Crise do Palmeiras termina em pizza”.  

Meu filho Marco tem nome italiano, de guerreiro. Não torce pelo Palmeiras, só come pizza de chocolate, e relutou em assistir à pré-estreia de As Tartarugas Ninja: o Caos Mutante (Teenage Mutant Ninja Turtles: Mutant Mayhem, EUA/Japão/Canadá, 2023 – Paramount). Quando chegamos ao cinema, foi um pequeno caos.

– Mamãe, quero ir embora!

– Mas, mas, mas Marco… Esse filme vai ser muito massa! Vai ter cena de cocô, etc, etc

Sim, apelei para a tática ninja escatológica – que as crianças tanto amam e se partem de rir – para contornar aquele pequeno caos. 

Aqui, preciso fazer um adendo. Marco adora ir ao cinema. Inclusive, amou o Super Mario Bros. Tanto é que ficou impressionado como o final chegou tão rápido. 

– Mamãe, já passou uma hora de filme? 

– Já, Marco!

– “Mas já?

Marco queria mais de Super Mario, mas Tartarugas Ninja… niente! Depois que o pequeno piti foi controlado à moda francesa, com muita elegância, Marco subiu, relutante, até uma das últimas fileiras do cinema. E começou o filme.

Caos Mutante é o mais novo longa da franquia adquirida pela Nickelodeon em 2009 e que fez muito sucesso no Brasil nos anos 1990 (meu irmão era fãzaço!). As personagens foram criadas originalmente para os quadrinhos, na década de 1980, pelos norte-americanos Kevin Eastman e Peter Laird. 

Nesse novo capítulo da saga somos apresentados à versão adolescente das tartarugas, batizadas com nomes de artistas renascentistas italianos: Leonardo (dublado por Nicolas Cantu), Raphael (Brady Noon), Michelangelo (Shamon Brown Jr.) e Donatello (Micah Abbey). Detalhe que, para quem não conhece direito a turma, como o Marco, os nomes das personagens só são citados lá na metade do filme. 

O início mostra como os quatro irmãos se transformaram em animais antropomórficos ao serem expostos a uma substância radiativa. Um rato chamado de Mestre Splinter (que só podia ser dublado por Jackie Chan) – que também fora vítima da mutação – cria os animais no subterrâneo de Nova York, para evitar o contato com os humanos. A cidade, aliás, é infestada por ratos na vida real. Tanto é que o prefeito chegou a criar o cargo de “diretor de mitigação de roedores” – é a vida imitando a arte.

Splinter é mais que um pai. Mestre em kung fu, ele se torna um verdadeiro mentor e passa a ensinar ninjutsu a seus filhos verdinhos, que só saem de casa à noite para comprar as “porcarias gostosas” que todo adolescente gosta. Já, logo de cara, a animação se torna deliciosa.  Como um molho caseiro temperado com manjericão, dá indícios que nos próximos minutos será bem-sucedida ao dar frescor juvenil a esse sétimo filme sobre os répteis.

Bem ao estilo dos anos 1990, quando o mundo era menos chato, esse filme não esconde nenhum merchan. Tá tudo lá: a marca do refri, a da batata frita etc, etc.  Aliás, essa é a grande diversão para aquele público que era criança (ou adolescente como eu) naquela época: provocar essa sensação nostálgica, seja na técnica da animação ou nos elementos anacrônicos. 

Mais artesanal, com imperfeições, essa animação é bem diferente dos longas anteriores, em live action, computação gráfica ou o traço chapado da TV. O resultado lembra aqueles desenhos supercoloridos feitos com giz de cera, com a intenção de refletir o ambiente rebelde das tartarugas no cenário urbano da cultura nova-iorquina com seus skates e grafites, como explicou à imprensa Jeff Rowe. O diretor também consegue, com proeza, mesclar a estética noventista com a atualidade. Isso pode ser percebido no uso de diferentes gadgets pelas personagens. 

A trilha sonora é uma personagem à parte. Assinada pela dupla dinâmica Trent Reznor e Atticus Ross (leia-se Nine Inch Nails), as músicas originais dão ritmo certo à narrativa. Quando “What´s Up” (hit do 4 Non-Blondes) surge, então na versão famosa e depois mais acelerado, a viagem no tempo é garantida. 

Como toda clássica jornada do herói, ao lado do Homem-Aranha e do Batman, as tartarugas se consolidam como os defensores de NYC. Com o treinamento que recebem do ratão pai, eles se sentem confiantes primeiro para se defender dos humanos. Sim, no início, nós também somos os vilões da história, no sentido de não estarmos abertos ao novo. Afinal, se um alienígena verde surgisse na sua casa, você o atacaria ou serviria uma xícara de café?  

A confiança nos seres humanos aumenta quando conhecem uma aspirante a jornalista (e que protagoniza a tal cena de humor escatológico que o Marco curtiu à beça). A jovem está à caça de um furo e consegue uma notícia bombástica quando as tartarugas são obrigadas a proteger a população contra as ameaças do Clã do Pé, que é comandado pelo vilão Superfly (Ice Cube). Os arquiinimigos também são mutantes e querem dominar a cidade. No final, ocorre a grande luta. 

Quando o filme acabou, Marco estava com um sorriso no rosto. Por dias ele se lembrou da barata e do cocô.

– Mamãe, tem cenas pós-créditos! Então vai ter mais um!

Sim! Cowabunga! 

festival, Music

Rock in Rio 2022 – ao vivo

Oito grandes concertos para você se lembrar (positivamente) da mais recente edição do festival

Texto por Abonico Smith

Fotos: Cadu Oliveira/Portal RockPress (Gilberto Gil, Ratos de Porão, Gangrena Gasosa); Produção Rock In Rio/Célula Pop (Green Day, Racionais MCs); Reprodução/G1 (Måneskin, Coldplay, Homenagem a Elza Soares)

Mais um Rock in Rio realizado (no Rio de Janeiro, é bom deixar claro, apesar de parecer óbvio demais isso e não ser!) e mais uma coisa grandiloquente marcada por muitos show que, se comparando com as três primeiras edições do evento, mancham a história do evento. Teve Post Malone cantando sem qualquer acompanhamento instrumental ao vivo e ganhando o cachê mais fácil da História. Teve Justin Bieber com a cabeça dando tilt e sendo obrigado a se apresentar para não pagar uma multa altíssima, antes de cancelar todo o resto de sua turnê sul-americana. Teve Megan Thee Stalion enchendo o palco de gente vinda da plateia para compensar a mais profunda falta de performance cênica. Teve Demi Lovato botando uma banda de capacitadas instrumentistas de turnês e estúdios para dar a sensação de que seu power pop era mesmo a última bolacha do planeta. Teve Ivete Sangalo declarando seu voto no 13 (até que enfim!). Teve a esquecida Pabllo Vittar sendo ovacionada ao cantar como convidada no show de Rita Ora. Teve Ludmilla gastando rios de dinheiro em produção para ser headliner do último dia. Teve Luisa Sonza dançando muito e também dublando muito a sua própria voz pré-gravada. Teve Billy Idol se atrapalhando com o som e, segundo disseram as más línguas, esquecendo a letra de um de seus maiores hits, “Eyes Without a Face”. Teve o famoso dia do metal levando um mar de camisetas pretas na primeira das sete noites. Teve neste mesmo dia do metal headliner (Iron Maiden, em sua 765ª vinda ao país) pedindo para tocar antes da penúltima atração (Dream Theater) porque, conforme consta, a idade pesa pro sexteto clássico e eles não queriam ficar pr lá até depois das duas da manhã. Teve o Sepultura fazendo outro crossover musical, agora tocando em conjunto, na abertura oficial do evento, com a Orquestra Sinfônica Brasileira. Teve como primeiro um show de fato do evento um belo cartão de visitas: os power trio Black Pantera e Devotos se unindo para mostrar a força do rock preto brasileiro. Teve Cee-Lo Green fazendo James Brown reencarnar e soltando o vozeirão em grandes clássicos do godfather do funk, acompanhado por uma banda space jazzy viajandona e encantadora. Teve uma homenagem aos artistas nacionais do primeiro Rock In Rio (Ivan Lins, Pepeu Gomes, Alceu Valença, Evandro Mesquita) escanteando os próprios no meio do sanduíche. Teve Dua Lipa sem feder nem cheirar. Teve Djavan pela primeira faz um show para chamar de seu no festival. Teve erros de escalação e transmissão, ambos relacionados à apresentação de Avril Lavigne: ela superlotou o Sunset Stage quando cairia melhor no palco principal, o Mundo e o Multishow cortou o fim da performance dela para mostrar outra que estava começando. Teve obviedades (até quando aturar Capital Inicial e Jota Quest fazendo pela enésima vez o mesmo show?) e teve quem foi muito além da obviedade mas derrapando para o absurdo no meu sentido (como será explicado adiante, no trecho sobre o Coldplay). Ah, sim! Teve ainda o Guns N’Roses vindo pela décima terceira vez ao evento, mais uma vez com a voz de Axl sendo mais rara de ser encontrada do que a barra de ouro dos chocolates de Willy Wonka.

Mas para não perde tempo com aquilo sobre o qual realmente não vale a pena falar, o Mondo Bacana lista aqui os oito concertos que, sim, podem fazer você se lembrar para sempre da ediçãoo 2022 do Rock in Rio (2 a 4 e 8 a 11 de setembro) de um modo positivo.

Coldplay

Existem dois Coldplays na face da terra. Tem o old school, uma grande banda vinda do universo indie, com clássicos que arrepiam multidões até hoje como “The Scientist”, “Viva La Vida”, “Clocks” e “Yellow”. Existe também, infelizmente, o Coldplay 2.0, feito sob medida para a geração Z, aquela para qual festivais de música viraram experiência e concertos devem trazer muito mais do que boa música (aliás, a qualidade dela nem importa mais também!). A atual turnê do grupo de Chris Martin é um circo tecnológico no qual o figurino combina com a cenografia dos instrumentos e das imagens no telão. Tem um palco menor no qual a banda se aproxima bastante do público e pode tocar pertinho lá do miolo. Tem pulseiras distribuídas para toda a audiência presente ao local e que pisca e muda de cor conforme comandados disparados por técnicos da banda, formando assim um pulsante cenário tridimensional abaixo dos músicos, também na horizontal. Tem o grito pela sustentabilidade, algo do qual esses ingleses não abrem mão.  Mas também tem programações eletrônicas que descambam pro playback puro, completado por quatro horrorosas máscaras de animais (ou seriam ETs?) usadas pelos instrumentistas. Tem, nesta hora, um flerte ao TikTok, no qual Chris Martin, depois de cantar, fica simulando uma dancinha como se estivesse correndo sobre o solo do palco que vai formando desenhos abstratos. Tem uma música cantada por uma marionete manipulada em pleno palco (?!?!?!). A entrega de entretenimento do Coldplay foi prejudicada por uma chuva torrencial, que estragou a roupa de cores fosforescentes de Martin e ainda fez pifar um piano eletrônico colocado lá no palco menor junto à plateia mas de nada alterou a euforia do vocalista em voltar a se apresentar no Brasil. Ah também teve erros técnicos de gravação que fizeram o quarteto tocar na sequência duas músicas de novo (“A Sky Full Of Stars” e “Viva La Vida”) e a tenebrosa tentativa de cantar “Magic” todinha em português. No fim das contas, contudo, fã que é fã continua chorando copiosamente ao assistir de perto à banda. Mas quando o senso crítico começa a se fazer valer, percebe-se que eles passaram do ponto do exagero.

Green Day

Show do trio californiano é sempre um petardo. Neste Rock in Rio  não foi diferente. Não tiveram o menor medo de começar com um de seus maiores hits, “American Idiot” e depois enfileirar clássico atrás de clássico, sem dar tempo para a plateia respirar ou os fãs pararem de cantar e se recomporem. Billy Joe Armstrong não é apenas um entertainer de primeira. Ele comanda uma banda repleta de bom humor, que não se leva a sério na hora em que não tem de se levar a sério, que tem um repertório poderoso e sabe equilibrar-se perfeitamente entre a pegada punk e a crocância de uma melodia perfeita levada por guitarras do power pop.

Gilberto Gil

Aos 80 anos de idade recém-completados, Gil não precisa fazer mais nada nos palcos para provar sua genialidade. Por isso mesmo, ao optar pela simplicidade de passear por clássicos das mais diversas fases de seu repertório e escalar uma banda de apoio repleta de integrantes de sua família (filha/os, neta/os, nora), fez um show mezzo dançante mezzo contemplativo e algo de primeira grandeza no Palco Mundo, honrando o passado de glórias e retomando o gostinho daquela fase bem pop mostrada lá no primeiro Rock in Rio, em 1985. Sua generosidade ainda vai além ao chamar a neta Flor, de apenas 13 anos de idade, para sair da linha das backings e dividir os vocais principais em uma versão bilíngue de “Garota de Ipanema” em ritmo de reggae e depois consolá-la durante o choro de emoção da garota. Assim, forma mais uma artista de futuro enquanto revisita eternas pérolas semprepreciosas como “Aquele Abraço”, “Palco”, “Andar Com Fé”, “Não Chore Mais”, “Drão”, “Expresso 2222”, “Tempo Rei”, “Vamos Fugir” e “Toda Menina Baiana”. De quebra, colocou dois b sides como “Barato Total” e  Estrela” para contrabalançar o hit parade e mostrar às gerações mais novas a riqueza e a diversidade de sua trajetória musical.

Måneskin

O Rock in Rio é um festival que prima por apostar no certo e no óbvio. Quase não arrisca em suas escalações e faz questão de manter boas novidades do universo da música de fora da Cidade das Artes. Então que este quarteto de vinte e poucos anos de faixa etária tenha vindo nesta edição para fazer a família Medina repensar um pouco os rumos artísticos. Para um evento que já trouxe grandes artistas em seu auge (como B-52’s, Faith No More, Prince, George Michael), ver o Måneskin em ação promovendo uma balburdia cênica e sonora das boas foi o grande alento deste ano. Misturando glamhard rock e power pop com piadas de fluidez de gênero, fizeram a massa cantar em italiano algumas de suas composições (aliás, desde os tempos de Rita Pavone que o Brasil não se entregava tanto a este idioma na música pop), escolheram um seleto conjunto de covers bacanudas e turbinadas (Who, Stooges, Britney Spears, Frankie Valli & The Four Seasons) e ainda encantaram meio mundo de quem estava in loco ou mesmo vendo pela TV. A baixista Victoria de Angelis é um show à parte, com seu ativismo e atitude: adepta do Free Niples, não teve o menor pudor de tocar quase sem roupa e ser tocada por desconhecidos em um duradouro momento de mosh. Ela e seus três mosqueteiros mostraram que rock’n’roll, de fato, é isso daí – atitude, boa música e performance incendiária. Para todo o resto dá para mandar um belo dedo do meio.

Racionais MCs

O dia em que os Racionais MCs foi de glória para o rap e o funk nacional. Antes, os cariocas Papatinho, L7nnon e Filipe Ret abriram os trabalhos no Sunset com classe. Depois veio o também carioca Xamã para mostrar a alta qualidade da nova geração do gênero, inclusive chamando o trio de rappers indígenas Bro MCs para mostrar o quão diverso o gênero pode ser sem perder a classe e a verborragia. Depois veio Criolo, mas para mostrar que o hip hop, em São Paulo, também anda de braços dados com o samba. Superprodução com filminho de abertura, cenografia elaborada imitando um vagão de metrô paulistano, citações ao clássico filme de 1979 sobre rap Warriors: Os Selvagens da Noite, muitos figurantes e dançarinos e um repertório bem porrada que é capaz de reduzir o clássico álbum Sobrevivendo no Inferno a apenas uma faixa (a sempre imprescindível “Capítulo 4, Versículo 3”). De resto, os singles mais novos e tão arrasa-quarteirões quanto (“Quanto Vale o Show?”, “Mil Faces de um Homem Leal (Marighella)” com direito a discurso sobre a figura histórica que inspirou a canção) e clássicos de outros álbuns como “Vida Loka partes 1 e 2”, “Cores & Valores”, “Eu Sou 157”,  “Jesus Chorou” e “Nego Drama”. Aqui veio o momento mais catártico da noite, quando os versos disparados por Mano Brown, Edi Rock e Ice Blue, sob as bases do DJ KL Jay, com a projeção de nomes e fotografias de pretos mortos no Rio de Janeiro pela violência da polícia e da mílicia, inclusive, claro, a vereadora Marielle Franco.

Ratos de Porão

Enfim, o Rock In Rio reparou uma injustiça tamanha! Se o Sepultura vem se apresentando há várias edições, por que nunca convidaram João Gordo e sua banda para tocar antes por lá? Outra das grandes instituições do rock subterrâneo brazuca, o RxDxPx precisou completar quatro décadas de carreira para ser lembrado pelo maior (em tamanho) festival de rock do país. OK que o palco reservado ao quarteto não foi nenhum dos dois principais – ironia das ironias, foi espaço chamado Supernova, dedicado a “novas” atrações. Mas João também não deixou barato em sua performance. Detonou o (des)governo bolsominion várias vezes em seu microfone e dividiu o set list entre faixas do novo álbum (o poderoso Necropolítica) e clássicos eternos dos Ratos. Para completar, ainda teve uma bandeira do MST no palco.

Gangrena Gasosa

Outra instituição do underground nacional, desta vez made in Rio de Janeiro. Aliás, o Gangrena só poderia ter nascido no Rio, para saber misturar tão bem a sonoridade do metal com a cultura da umbanda, inclusive com letras explorando (com ironias e sarcasmo) detalhes deste religião de matriz africana e cada um de seus integrantes personificando uma entidade dos terreiros. O saravá metal do Gangrena pode até ter começado sendo encarado como uma piada, um chiste, mas depois de uma trajetória de quase trinta anos, com direito a pausa nas atividades e uma barulhenta briga judicial pelo direito de uso do nome entre o vocalista e alguns ex-integrantes que fundaram o negócio. O novo Omulú da formação (Dave Sterminium) deu um gás nos vocais mais guturais e realça o contraste com o gogó mais malandro e tradicional de Zé Pelintra (Angelo Arede). A percussão rola solta no meio das palhetadas velozes e é impossível não se contagiar pela fusão sonora cada vez mais competente deste (atual) sexteto. Claro que os trocadilhos dos títulos das canções ainda provocam boas risadas, mas a performance precisa e afiada mostrada no palco Espaço da Favela revelou que muito tesouro precioso pode estar escondido nos locais mais periféricos do festival.

Homenagem a Elza Soares

Um line-up integralmente feminino marcou o último dia do festival, tanto no palco Mundo quanto no Sunset. E engana-se que quem fez o melhor concerto do dia foi a headliner Dua Lipa. Aliás, a melhor do dia nem estava presente no local, quanto mais nesta dimensão. Afinal, Elza Soares é daquelas pessoas que nem David Bowie: descarnam mas continuam por aí, preenchendo nossas vidas com tamanha presença como se estivessem ali, do nosso lado, com uma boa velha amizade. Para entoar um punhado de hinos eternizados na voz de Elza foram convocadas seis vozes tão poderosas quanto a da diva: Agnes Nunes, Mart’nália, Gaby Amarantos, Larissa luz, Majur e Caio Prado (foto acima) – vale lembrar que Alcione também estava escalada, mas teve de cancelar sua participação por causa de uma cirurgia recente. “A Carne” abriu o set cheio de discursos entre as canções e nas letras das mesmas. Pela valorização das mulheres, do universo LGBT, dos pobres, dos pretos, dos favelados. Enquanto for necessário bradar contra as injustiças sociais e de gênero, Elza Soares sempre estará muito viva ecoando em nossos ouvidos. Nem que por meio de outras vozes interpretando as suas músicas.

Movies, Music

Trilha sonora: Last Night In Soho

Oito motivos para se deliciar com o fantástico mergulho na Swinging London feito pelo diretor e roteirista Edgar Wright em seu novo filme

Texto por Abonico Smith

Foto: Universal Pictures/Divulgação

Para saber que o diretor e roteirista Edgar Wright é um fã assumido de cultura pop basta ver todos os easter eggs espalhados pelos filmes. Contudo, sua predileção pela (boa) música jovem das últimas décadas vem ganhando cada vez mais destaque em seus títulos mais recentes.

Em 2010, para contar a história de um jovem baixista de uma banda underground apaixonado por uma misteriosa garota de cabelos coloridos, ele contou com a ajuda de Beck para construir boa parte da trilha rock’n’roll original de Scott Pilgrim Contra o Mundo (no original, Scott Pilgrim vs The World), além de incluir obras de Rolling Stones, Metric, Black Lips, T-Rex, Plumtree, Beachwood Sparks e Frank Black.

Sete anos depois, em Baby Driver – Em Ritmo de Fuga, o intrépido teenager com habilidade especial no volante ouve tão paciente quanto hiperativamente Jon Spencer Blues Xplosion no heaphone enquanto espera o resto da gangue criminosa que integra terminar o assalto a um banco para pisar no acelerador e escapar de modo espetacular da perseguição de vários carros da polícia. Depois, por meio de nomes como Blur, Queen, Martha and The Vandellas, Damned, Alexis Korner, Incredible Bongo Band, Sam & Dave, Beach Boys e Jonathan Richman & The Modern Lovers, o espectador percebe que personagem, que ganhou um problema de tinnitus ao escapar com vida de um acidente automobilístico que matou seus pais, encontra catarse na música conectada diretamente aos ouvidos. Para o mesmo filme, os DJs e produtores de música eletrônica Kid Koala e Danger Mouse fizeram faixas inéditas.

Agora Wright mergulha na Swinging London em Noite Passada em Soho (Last Night In Soho, 2021) para traçar a história de sonho, ambição, fantasia e alucinações de uma jovem interiorana apaixonada pelo estilo e pelas canções pop da Inglaterra dos anos 1960 que acaba de chegar a Londres para fazer a tão sonhada universidade de moda. Há um foco bem maior nas cantoras pop que fizeram história com graciosidade e hits singelos, bem verdade. Mas ele também abre espaço para bandas – umas muito conhecidas até hoje, outras com fama não tão duradoura e reduzida geograficamente à ilha da Rainha Elizabeth – e representantes masculinos em vozes e talento instrumental. Em comum a todas as inclusões, o fato de serem pérolas musicais que, de uma forma ou de outra, acabam por se encaixar na narrativa das trajetórias das duas personagens principais da trama – a adolescente Ellie e a não menos sonhadora – e um pouco mais velha – Sandie, interpretadas respectivamente pelas atrizes Thomasin McKenzie e Anya Taylor-Joy.

Mondo Bacana dá oito motivos para você não deixar de se encantar pela trilha sonora de Last Night In Soho e, mais, procurar ouvi-la além do filme e conhecer um pouco mais de detalhes que acabaram contando um pouquinho da história da música pop sixtie britânica – uma época em que viabilidade comercial combinava perfeitamente com refinamento harmônico, sofisticação instrumental e, claro, muito, muito glamour. Na lista abaixo cabem só oito citações, mas aqui também ficam menções honrosas para outros artistas que também fazem parte do filme e do disco. São eles Searchers, Walker Brothers, Graham Bond Organisation, R. Dean Taylor, James Ray (com a gravação original de “Got My Mind Set On You”, petardo que 25 anos depois estouraria nas paradas na carreira solo de George Harrison) mais os megarreverenciados Dusty Springfield, Who e Siouxsie & The Banshees (“Happy House”, de 1981, é a única peça temporalmente deslocada aqui, mas que mesmo assim não deixar de ser empolgante).

>> Clique aqui para ler a crítica do filme Noite Passada em Soho

“A World Without Love” (Peter and Gordon)

Os Beatles dominaram o mundo com vários hits número um, mas só uma canção com a assinatura Lennon-McCartney chegou ao topo sem ter sido gravada pelo quarteto de Liverpool. Paul, o verdadeiro autor da composição, não a considerava “a altura do repertório do grupo” e, então, entregou-a de bandeja para Peter Asher gravá-la no primeiro single da dupla formada com o amigo escocês Gordon Waller. O baixista começou a namorar a atriz adolescente Jane Asher em 1963 e, quando os Fab Four mudaram-se para Londres, lá foi ele morar na casa dela, dividindo o quarto com o cunhado de cara de nerd e vasta franja ruiva. Os versos de, tão românticos quanto ingênuos, nem chamam muito atenção se comparados ao feliz casamento entre melodia açucarada, refinada harmonia pop e, sobretudo, ao agradável jogo entre primeira e segunda voz de Peter and Gordon. Em Last Night In Soho, Wright usa o hit para dar sequência à sua marca autoral de cenas memoráveis de aberturas de filmes. Aqui o público é imediatamente apresentado ao mundo de amores e sonhos adolescentes de Ellie Turner. Enquanto a música toca e o espectador enxerga objetos de seu mundinho particular (vitrola vintage, compactos em vinil dos anos 1960, pôster do filme Bonequinha de Luxo, moda retrô), ela flutua em uma coreografia até arranhar acidentalmente a agulha no disco ao se deparar com a visão da falecida mãe no espelho.

“Beat Girl” (John Barry Orchestra)

Houve um tempo, antes de o mundo conhecer o rock’n’roll tal qual uma evolução do rhythm’n’blues combinada com pitadas de country’n’western, que quem incendiava os salões de dança eram grandes orquestras com um pé e meio no jazz e melodias lideradas por um naipe de sopros. Já com a febre adolescente em curso a partir de meados dos anos 1950, o trumpetista britânico John Barry deu um passo além. Montou seu septeto, colocou uma virtuosa guitarra twangy executada por Vic Flick à frente dos arranjos, e passou a fazer fama com sua pequena “orquestra”. Em 1959, em menos de dois minutos e logo em sua primeira empreitada casada à sétima arte, gravou “Beat Girl” para a festiva cena de abertura do filme inglês de mesmo nome, feito com orçamento barato para ir na cola da exploração do sucesso alcançado por Hollywood com seus filmes sobre jovens, diversão e muito rock. O sucesso foi tanto que esta foi a primeira trilha sonora britânica a ser lançada em disco e ainda garantiu uma convocação feita pelo produtor Alberto Broccoli para registrar com seu grupo o tema principal de um filme que trazia um misto de galã e espião em missões secretas cheias de aventura pelo mundo e sedução de mulheres. Com o mesmo Flick à frente, Barry eternizou o tema principal de James Bond, que, curiosamente, não fora composto por ele, mas sim por um ex-crooner de big bands chamado Monty Norman. Depois de assinar a trilha dos longas de 007 até 1967, Barry lançou-se em uma bem-sucedida carreira musical nas grandes telas, chegando a receber vários prêmios como Oscar, Grammy e Globo de Ouro por soundtracks de filmes como Entre Dois Amores (1985) e Dança com Lobos (1990). Em Last Night in Soho, enquanto Ellie passeia pelas ruas com seus novos amigos de república estudantil fica impossível não reconhecer o poderoso riff da guitarra de Flick, resgatado de volta ao sucesso graças ao sample feito pelo DJ Fatboy Slim em seu principal hit do fim dos anos 1990, o big beat “The Rockafeller Skank”.

“Starstruck” (Kinks)

Se lá pelos nineties um levante de bandas inglesas solidificou a bandeira do britpop cantando sobre a vida e os hábitos comuns dos habitantes da ilha governada pela Rainha Elizabeth, isso se deveu à existência do Kinks e o direcionamento conceitual de seus álbuns na segunda metade dos anos 1960. Através das canções cantadas e compostas por Ray Davies, sempre na companhia de seu irmão Dave. À frente do grupo, Ray rabiscou uma série de crônicas musicais que podem não ter acompanhado as altíssimas vendagens de seus conterrâneos daquele momento mas, ao menos, garantiram uma sólida reputação através de gerações de futuros seguidores. Edgar Wright sempre foi fã declarado dos Kinks. Em Last Night In Soho, ele ilustra todo o fascínio da jovem interiorana Ellie logo após a sua chegada a Londres para cursar a tão sonhada faculdade de moda na capital. Esta não é a primeira vez que o diretor e roteirista recorre ao som dos irmãos Davies – em 2007, ele já havia pegado outras duas faixas do mesmo álbum na trilha sonora de Chumbo Grosso. O disco em questão é o aclamado The Kinks Are The Village Green Conservation Society, de 1968, composto por pequenas operetas pop transbordando de sátira e fina ironia em suas letras. O sentido dado por Ray nesta música cabe como uma luva para contar a história da fascinada Eloise no momento em que ela se afasta das raízes familiares na Cornuália para ser absorvida de corpo, alma, sonhos e inspiração pela cultura sempre viva e pulsante da Swinging London.

“Puppet On A String” (Sandie Shaw)

Obra escolhida pelo Reino Unido para representa-lo no festival Eurovision de 1967, foi a responsável pela coroação da carreira ascendente de uma mais populares cantoras do pop britânico dos anos 1960. Sandie Shaw, contudo, sempre odiou a canção que teve de defender por questões contratuais – e nunca foi pelo cafonice extrema do arranjo de bandinha germânica das oktoberfests da vida. Os versos machistas – que acabariam por vencer aquela edição – são uma explícita glorificação da submissão aceita de forma pacata e até alegre pela mulher em um relacionamento abusivo com um cara que insiste em manipulá-la feito uma marionete, sem qualquer pudor. Não por acaso Wright encaixou a música com perfeição na narrativa de Last Night In Soho. Na voz da própria Anya Taylor-Joy, sua personagem (batizada com o mesmo apelido da cantora, por sinal) utiliza a música para tentar alavancar a carreira no meio musical sob a tutela implacável de seu amante/empresário/cafetão Jack – inclusive fazendo a performance de uma boneca-gigante movida por cordas. Sandie ainda tem uma segunda canção, “(There’s) Always Something There To Remind Me”, incluída nessa trilha do filme.

“Eloise” (Barry Ryan)

Depois que Brian Wilson abriu a porteira da barroquice instrumental em Pet Sounds, ficou bem fácil explorar todos os limites nos arranjos de música pop. Dois anos depois, em 1968, Barry Ryan emplacou este épico de cinco minutos e meio com direito a versos melodramáticos, fortes pontuações a cargo de um naipe de metais, arranjo para cordas, modulação de uma estrofe para a seguinte, interlúdio com diminuição da intensidade para depois levar ao clímax com nova explosão, uso de treze acordes na harmonia inteira e uma performance vocal com direito a agudos e melismas dignos de levar multidões à loucura em arenas. A composição operística, assinada pelo seu irmão gêmeo Paul, é considerada uma das principais influências de um pré-adolescente Freddie Mercury para tentar a sorte na carreira musical. Em Last Night In Soho, ela aparece já no final, tocada pela jukebox quando a protagonista desce as escadas para adentrar em um pub subterrâneo e se encontrar com o misterioso homem que parece persegui-la pelas ruas (e que interage com a letra e a gravação original de Ryan). É o momento da deixa para Wright fazer a conexão com o batismo da personagem e explicar um pouco de sua conturbada história vivida ao chegar na grande cidade. Ah, o clipe feito para o lançamento da faixa naquela época, é digno de nota, com direito ao cantor contracenando com sua musa tanto sob as luzes da vida noturna londrina quanto em uma praia deserta, com direito a coadjuvância de um par de cavalos e outro de cavalos, ambos brancos. Mais grandioso e exagerado (e kitsch) impossível.

“You’re My World” (Cilla Black)

Queridinha dos mods e de Morrissey, Cilla tem seus dois grandes hits de 1964  incluídos na trilha sonora de Last In Night In Soho. “Anyone Who Had A Heart”, clássico da dupla de compositores Hal David e Burt Bacharach, está como fundo de uma conversa elucidativa entre Ellie e a senhora que aluga a ela um quarto em Londres. Já “You’re My World” (versão em inglês de um sucesso composto originalmente na língua italiana) aparece duas vezes no filme. Uma logo no início, na voz estilosa de Cilla e com poderoso arranjo orquestral, quando a jovem estudante aparece pela primeira vez imersa nos anos 1960 que ela tanto idolatra. Mais para o final, já na voz de Taylor-Joy, a letra se encaixa na ilustração sonora da trama de uma outra maneira: por meio da assustadora relação entre os versos que fazem a paixão se confundir com obsessão (e que, não por acaso, guardam semelhança em demasia com o que Sting escreveu em “Every Breath I Take”).

“Downtown” (Petula Clark)

Pérola indiscutível do pop orquestral britânico dos anos 1960, “Downtown” é uma grande celebração de uma intensa vida jovem, que pulsa em lugares badalados e que nunca fecham, sempre cheios de gente, com muita música ao vivo, filmes exibidos nos cinemas, o colorido do neon nos letreiros comerciais e o som que vem dos carros no congestionamento. Gravada em 1964 por Petula Clark, a faixa rapidamente chegou ao primeiro lugar das paradas dos Estados Unidos e até hoje volta e meia aparece em trilhas sonoras de filmes e seriados. Depois de incluída em SeinfeldGarota, Interrompida e Lost, é a vez de ser citada em Last Night In Soho. São duas as ocasiões e ambas na voz de Taylor-Joy: primeiro, a capella, quando Sandie aparece em uma audição para uma vaga de cantora. Depois, bem perto do encerramento, num remix com base mais eletrônica.

“Last Night In Soho” (Dave Dee, Dozy, Beaky, Mick & Tich)

Não, não é a escalação de cinco jogadores da defesa retranqueira de um time que joga feito ferrolho para evitar tomar um gol sequer do Flamengo hoje em dia. Por incrível que pareça, Dave Dee, Dozy, Beaky, Mick & Tich este é o nome de uma banda britânica ativa entre 1966 e 1970, quando lançou cinco álbuns. Esta faixa de sucesso gravada durante o auge, em 1968, celebra sem meias palavras a vida noturna e a badalação jovem que sempre estiveram presente nos dias e noites do Soho londrino. Os versos pegam direto na veia beat do quinteto, que não faria feio se incluída na trilha de clássicos do cinema psicodélico americano como Easy Rider e The Trip. Falam de um outsider que cai na tentação de trocar momentos quentes ao lado da namorada pela companhia de amigos em uma noitada. Escalada estrategicamente para a hora dos créditos do filme que lhe empresta o título.

Music

L7

Oito motivos para você não perder a volta da banda ao Brasil depois de um intervalo de vinte e cinco anos

L72018

Texto por Abonico R. Smith

Foto: Divulgação

Vinte e cinco anos separam a histórica passagem do L7 pelo Brasil, em pleno auge do rock alternativo, da segunda vinda da banda ao país. Foi preciso esperar um quarto de século para ver de novo por aqui Donita Sparks (guitarra e voz), Suzi Gardner (guitarra e voz), Jennifer Finch (baixo e voz) e Dee Plakas (bateria), ícones daquela época áurea em que vocais berrados, guitarras sujas e distorcidas e uma estética que cruzava informações vindas do punk rock e do heavy metal saíram do subterrâneo para tomar de assalto o mainstream, a imprensa corporativa, as grandes gravadoras, as filiais da MTV e o gosto das pessoas espalhadas ao redor do planeta.

Depois de um longo tempo em inatividade, a banda voltou à ativa em 2015 com sua formação clássica. Ainda é esperado um disco novo, com faixas inéditas. Mas enquanto isso não acontece, as quatro “gurias” (hoje na faixa entre os 50 e 60 anos) estão volta às turnês, tocando aqui, ali e em todo lugar. Na primeira semana de dezembro será a vez do Brasil recebê-las, com cinco datas em cinco capitais diferentes. O giro começa pelo Rio de Janeiro no dia 1 de dezembro (mais infos aqui). Depois segue para São Paulo no dia 2 (mais infos aqui). No dia 4, a escala será em Porto Alegre (mais infos aqui). No dia 5, em Curitiba (mais infos aqui). Por fim, no dia 6, em Belo Horizonte (mais infos aqui).

Para celebrar o retorno do L7 ao país, o Mondo Bacana preparou uma relação com oito motivos para você não perder a nova passagem da banda por aqui.

Documentário

Dirigido pela cineasta Sarah Price, o documentário L7: Pretend We’re Dead foi lançado em 2016, depois de uma campanha de crowdfunding que arrecadou fundos para a sua realização. O filme conta a história da banda do underground ao estrelato e, então, de volta ao underground até o fim das atividades em 2001. São muitas imagens de arquivo e acervo pessoal com trechos de shows e festivais, curiosidades de bastidores e depoimentos de Donita, Suzi, Jennifer e Dee em off. Por enquanto, a obra pode ser vista em streaming nos Estados Unidos através da Amazon. Em breve deverá estar disponível aqui no Brasil também.

Nada de girl band

Se existe uma coisa que elas deixam claro logo nos primeiros minutos de L7: Pretend We’re Dead é para não chamá-las de “banda de garotas”. Afinal, essa questão da diferenciação pelo gênero – e sempre através de um modo tão comparativo quanto negativo, diga-se de passagem – já é uma coisa tão batida, sem noção e sem sentido que elas já disparam que estão enojadas e cansadas de que usem isso a respeito do grupo. Donita afirma que rejeita toda a imagem criada ao longo destes anos pelo fato do L7 nunca ter sido algo que a pessoas pudessem esperar delas, sobretudo pela questão de não se encaixar no que se chama de estereótipo da beleza feminina.

Punk porém também heavy

O L7 foi formado na esteira de um cenário punk e hardcore criado por jovens que não se encaixavam com a apatia de seus semelhantes durante o governo Ronald Reagan nos 1980. Paralelamente a isso, na cidade em que as musicistas viviam (Los Angeles), o rock era tomado pelo mainstream de bandas glam metal, mais preocupadas com o visual andrógino e a estética da cosmética, levada aos extremos comerciais através dos videoclipes em alta rotação na MTV norte-americana. Entretanto, o heavy clássico, mais sujo e poderoso, também faz parte da formação delas. Isso pode ser facilmente notado em diversas faixas de álbuns como Smell The Magic (lançado pela Sub Pop em 1990) ou Bricks Are Heavy (de 1992, quando a banda era contratada do selo Slash, então ligado às gravadoras major Warner nos Estados Unidos e PolyGram no resto do mundo). São muitos riffs, pedais de efeito e power chords – sem falar que Donita leva uma guitarra Flying V a tiracolo ao subir em um palco. A vocalista também se ressente do fato do grupo nunca ter sido convidado até hoje para participar de um festival dedicado a bandas heavy metal nos Estados Unidos. “Ne Europa nos aceitam muito bem e volta e meia participamos destes eventos. Mas em nosso país isso nunca aconteceu.”

Bricks Are Heavy

Responsável pela sonoridade assumidamente pop (porém sem negar as origens alternativas) de vários discos de sucesso da época – como Dirty (Sonic Youth), Nevermind (Nirvana) e Siamese Dream (Smashing Pumpkins) – o produtor Butch Vig também conseguiu fazer o mesmo com o L7 em Bricks Are Heavy. Deixou toda a sujeira sonora lá, mas conseguiu aparar as arestas e arredondar as músicas compostas e cantadas por Donita, Suzi e Jennifer, inclusive fazendo os mesmos com seus vocais. O resultado foram três grandes hits (“Pretend We’re Dead”, “Monster” e “Everglade”), indispensáveis em qualquer set list do L7 até o final dos tempos da banda. Mas o repertório dos atuais shows da banda não se sustenta apenas nessas faixas do disco. Outras menos conhecidas na época continuam bastante poderosas quando tocadas ao vivo. É o caso de “Scrap”, “Slide”, “One More Thing” e “Shitlist”. Os versos desta última, que sempre encerra todo bis, permanecem atualíssimos como um grito de guerra feminista.

Agent Orange

Na volta para o bis de cada show, a banda rende sua homenagem a uma histórica banda dos primórdios do punk rock oitentista americano. Primeiro single lançado em 1979 pelo trio Agent Orange, a música “Bloodstrains” é um petardo que não dura sequer dois minutos. Seus versos tratam da rejeição completa ao american way of life, onde a felicidade parece sempre rimar com estabilidade financeira, família e aquela vida bem baunilha. A gravação oficial do L7 para esta música está no álbum-compilação Teriyaki Asthma Vols 1-5, lançado em 1992 pelo microsselo independente C/Z, criado pelo casal Chris Hanzsek e Tina Casale em Seattle em 1985. Deste disco também fazem parte gravações raras de outras bandas de suma importância naquele momento do rock alternativo, como Nirvana, Babes In Toyland e Gas Huffer. Todas ainda em fase pré-fama, fazendo seus shows em pequenas casas e viajando pelos Estados Unidos em carros e vans.

Brasil, janeiro de 1993

O festival Hollywood Rock de 1993, realizado no segundo e no terceiro final de semana de janeiro, respectivamente em São Paulo e no Rio de Janeiro, trouxe uma escalação memorável. Duas das três noites eram reservadas a bandas internacionais que estavam, naquele momento, no auge de suas carreiras mundiais, fato até hoje não superado por qualquer outro evento do tipo em solo brasileiro. Uma das noites trazia o Alice In Chains e, como headliner, o Red Hot Chili Peppers. A outra, no mesmo esquema, era composta por L7 e Nirvana. E o show do L7 acabou sendo tão memorável quanto o de Kurt Cobain, Krist Novoselic e Dave Grohl. O estádio do Morumbi (onde este que aqui escreve estava presente) chacoalhava na noite do sábado 15 com a multidão pulando sem parar no gramado, cadeiras e arquibancada. Não foi bem um aquecimento para o trio principal, já disparado no topo das paradas mundiais, mas sim um show de primeira e que deixou todo mundo tão suado quanto. No Rio de Janeiro, sete dias depois, foi tudo igualzinho (conforme você pode checar aqui, assistindo à gravação da apresentação de mais de uma hora na íntegra).

Tampax em direção à plateia

A edição de 1992 do Reading Festival, na Inglaterra, entrou para a História pela trolagem do Nirvana. Havia uma expectativa negativa em relação ao show do trio porque Kurt Cobain estava entrando e saindo de períodos na rehab e muito se falava sobre a possibilidade da gig no evento ser cancelada. Sem qualquer aviso, Dave Grohl entrou no palco empurrando Kurt sentado em uma cadeira de rodas e com roupa hospitalar. O vocalista simulou uns espasmos e jogou-se ao chão, assustando e arregalando os olhos de todos. Posteriormente levantou-se e fez um puta show à frente de sua banda. Mas o L7 também deu sua bela contribuição para fazer aquele verão ser inesquecível para quem estava lá no festival. A apresentação do quarteto foi um grande caos. A tensão já era grande no início, quando começou a haver problemas técnicos no som. A plateia ensandecida e à espera do Nirvana, reagia contra o grupo. A banda chegou a trolar todo mundo que queria mainstream começando a tocar o riff de “Enter The Sandman”, do Metallica, para depois parar tudo e xingar ao microfone. Depois, muita gente passou a arremessar lama em direção às integrantes. Irritadíssima, Donita não pensou duas vezes. Pôs a mão dentro da calcinha, arrancou o tampax, mostrou-o a todo mundo e arremessou-o em direção às pessoas, provocando reações de espanto e nojo em muitos. Apesar da gravação tosca e cheia de problemas, este fatídico show do L7 também está registrado no YouTube (veja aqui). O “incidente” do tampax – que chegou a ser incluído entre os cem melhores momentos de toda a história do heavy metal pelo canal de TV VH1 (veja aqui) – ocorre quase no final, aos 40 minutos e 24 segundos, assim que acaba a penúltima música do set list.

#Resist

Em entrevistas já publicadas por veículos brasileiros, Donita já deixou clara a sua total antipatia pelo próximo presidente que está por assumir nosso país. Só que, ao contrário do que muita gente estúpida poderá (e deverá) afirmar, a vinda do L7 não tem nada a ver com financiamento da Lei Rouanet, nem a banda não precisa de promover de qualquer forma ou deve manifestar interesse em ir à Polícia Federal em Curitiba para visitar o ex-presidente Lula. As quatro integrantes do grupo começaram a tocar durante o governo neoliberal de Ronald Reagan, que ocupou a Casa Branca entre 1981 e 1989. Depois, quando anunciaram o hiato das atividades em 2001, aguentaram mais oito anos de George W. Bush até 2009. Atualmente ela não perde a chance de dizer que adoraria jogar em Donald Trump seu tampax. “Parece que quando esses imbecis estão no poder, o punk se reaviva. A resistência dos artistas também. A música ajudou a derrubar o apartheid nos anos 1980. Ajudou os movimentos sindicais nos EUA dos anos 1930. O folk e a música de protesto ajudaram nas manifestações contra a Guerra do Vietnam. Eu acho muito importante os artistas e as pessoas em geral resistirem a toda essa merda, fazendo qualquer coisa que elas façam de melhor”, declarou Sparks ao site WikiMetal (leia toda a entrevista aqui).