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Rock in Rio 2022 – ao vivo

Oito grandes concertos para você se lembrar (positivamente) da mais recente edição do festival

Texto por Abonico Smith

Fotos: Cadu Oliveira/Portal RockPress (Gilberto Gil, Ratos de Porão, Gangrena Gasosa); Produção Rock In Rio/Célula Pop (Green Day, Racionais MCs); Reprodução/G1 (Måneskin, Coldplay, Homenagem a Elza Soares)

Mais um Rock in Rio realizado (no Rio de Janeiro, é bom deixar claro, apesar de parecer óbvio demais isso e não ser!) e mais uma coisa grandiloquente marcada por muitos show que, se comparando com as três primeiras edições do evento, mancham a história do evento. Teve Post Malone cantando sem qualquer acompanhamento instrumental ao vivo e ganhando o cachê mais fácil da História. Teve Justin Bieber com a cabeça dando tilt e sendo obrigado a se apresentar para não pagar uma multa altíssima, antes de cancelar todo o resto de sua turnê sul-americana. Teve Megan Thee Stalion enchendo o palco de gente vinda da plateia para compensar a mais profunda falta de performance cênica. Teve Demi Lovato botando uma banda de capacitadas instrumentistas de turnês e estúdios para dar a sensação de que seu power pop era mesmo a última bolacha do planeta. Teve Ivete Sangalo declarando seu voto no 13 (até que enfim!). Teve a esquecida Pabllo Vittar sendo ovacionada ao cantar como convidada no show de Rita Ora. Teve Ludmilla gastando rios de dinheiro em produção para ser headliner do último dia. Teve Luisa Sonza dançando muito e também dublando muito a sua própria voz pré-gravada. Teve Billy Idol se atrapalhando com o som e, segundo disseram as más línguas, esquecendo a letra de um de seus maiores hits, “Eyes Without a Face”. Teve o famoso dia do metal levando um mar de camisetas pretas na primeira das sete noites. Teve neste mesmo dia do metal headliner (Iron Maiden, em sua 765ª vinda ao país) pedindo para tocar antes da penúltima atração (Dream Theater) porque, conforme consta, a idade pesa pro sexteto clássico e eles não queriam ficar pr lá até depois das duas da manhã. Teve o Sepultura fazendo outro crossover musical, agora tocando em conjunto, na abertura oficial do evento, com a Orquestra Sinfônica Brasileira. Teve como primeiro um show de fato do evento um belo cartão de visitas: os power trio Black Pantera e Devotos se unindo para mostrar a força do rock preto brasileiro. Teve Cee-Lo Green fazendo James Brown reencarnar e soltando o vozeirão em grandes clássicos do godfather do funk, acompanhado por uma banda space jazzy viajandona e encantadora. Teve uma homenagem aos artistas nacionais do primeiro Rock In Rio (Ivan Lins, Pepeu Gomes, Alceu Valença, Evandro Mesquita) escanteando os próprios no meio do sanduíche. Teve Dua Lipa sem feder nem cheirar. Teve Djavan pela primeira faz um show para chamar de seu no festival. Teve erros de escalação e transmissão, ambos relacionados à apresentação de Avril Lavigne: ela superlotou o Sunset Stage quando cairia melhor no palco principal, o Mundo e o Multishow cortou o fim da performance dela para mostrar outra que estava começando. Teve obviedades (até quando aturar Capital Inicial e Jota Quest fazendo pela enésima vez o mesmo show?) e teve quem foi muito além da obviedade mas derrapando para o absurdo no meu sentido (como será explicado adiante, no trecho sobre o Coldplay). Ah, sim! Teve ainda o Guns N’Roses vindo pela décima terceira vez ao evento, mais uma vez com a voz de Axl sendo mais rara de ser encontrada do que a barra de ouro dos chocolates de Willy Wonka.

Mas para não perde tempo com aquilo sobre o qual realmente não vale a pena falar, o Mondo Bacana lista aqui os oito concertos que, sim, podem fazer você se lembrar para sempre da ediçãoo 2022 do Rock in Rio (2 a 4 e 8 a 11 de setembro) de um modo positivo.

Coldplay

Existem dois Coldplays na face da terra. Tem o old school, uma grande banda vinda do universo indie, com clássicos que arrepiam multidões até hoje como “The Scientist”, “Viva La Vida”, “Clocks” e “Yellow”. Existe também, infelizmente, o Coldplay 2.0, feito sob medida para a geração Z, aquela para qual festivais de música viraram experiência e concertos devem trazer muito mais do que boa música (aliás, a qualidade dela nem importa mais também!). A atual turnê do grupo de Chris Martin é um circo tecnológico no qual o figurino combina com a cenografia dos instrumentos e das imagens no telão. Tem um palco menor no qual a banda se aproxima bastante do público e pode tocar pertinho lá do miolo. Tem pulseiras distribuídas para toda a audiência presente ao local e que pisca e muda de cor conforme comandados disparados por técnicos da banda, formando assim um pulsante cenário tridimensional abaixo dos músicos, também na horizontal. Tem o grito pela sustentabilidade, algo do qual esses ingleses não abrem mão.  Mas também tem programações eletrônicas que descambam pro playback puro, completado por quatro horrorosas máscaras de animais (ou seriam ETs?) usadas pelos instrumentistas. Tem, nesta hora, um flerte ao TikTok, no qual Chris Martin, depois de cantar, fica simulando uma dancinha como se estivesse correndo sobre o solo do palco que vai formando desenhos abstratos. Tem uma música cantada por uma marionete manipulada em pleno palco (?!?!?!). A entrega de entretenimento do Coldplay foi prejudicada por uma chuva torrencial, que estragou a roupa de cores fosforescentes de Martin e ainda fez pifar um piano eletrônico colocado lá no palco menor junto à plateia mas de nada alterou a euforia do vocalista em voltar a se apresentar no Brasil. Ah também teve erros técnicos de gravação que fizeram o quarteto tocar na sequência duas músicas de novo (“A Sky Full Of Stars” e “Viva La Vida”) e a tenebrosa tentativa de cantar “Magic” todinha em português. No fim das contas, contudo, fã que é fã continua chorando copiosamente ao assistir de perto à banda. Mas quando o senso crítico começa a se fazer valer, percebe-se que eles passaram do ponto do exagero.

Green Day

Show do trio californiano é sempre um petardo. Neste Rock in Rio  não foi diferente. Não tiveram o menor medo de começar com um de seus maiores hits, “American Idiot” e depois enfileirar clássico atrás de clássico, sem dar tempo para a plateia respirar ou os fãs pararem de cantar e se recomporem. Billy Joe Armstrong não é apenas um entertainer de primeira. Ele comanda uma banda repleta de bom humor, que não se leva a sério na hora em que não tem de se levar a sério, que tem um repertório poderoso e sabe equilibrar-se perfeitamente entre a pegada punk e a crocância de uma melodia perfeita levada por guitarras do power pop.

Gilberto Gil

Aos 80 anos de idade recém-completados, Gil não precisa fazer mais nada nos palcos para provar sua genialidade. Por isso mesmo, ao optar pela simplicidade de passear por clássicos das mais diversas fases de seu repertório e escalar uma banda de apoio repleta de integrantes de sua família (filha/os, neta/os, nora), fez um show mezzo dançante mezzo contemplativo e algo de primeira grandeza no Palco Mundo, honrando o passado de glórias e retomando o gostinho daquela fase bem pop mostrada lá no primeiro Rock in Rio, em 1985. Sua generosidade ainda vai além ao chamar a neta Flor, de apenas 13 anos de idade, para sair da linha das backings e dividir os vocais principais em uma versão bilíngue de “Garota de Ipanema” em ritmo de reggae e depois consolá-la durante o choro de emoção da garota. Assim, forma mais uma artista de futuro enquanto revisita eternas pérolas semprepreciosas como “Aquele Abraço”, “Palco”, “Andar Com Fé”, “Não Chore Mais”, “Drão”, “Expresso 2222”, “Tempo Rei”, “Vamos Fugir” e “Toda Menina Baiana”. De quebra, colocou dois b sides como “Barato Total” e  Estrela” para contrabalançar o hit parade e mostrar às gerações mais novas a riqueza e a diversidade de sua trajetória musical.

Måneskin

O Rock in Rio é um festival que prima por apostar no certo e no óbvio. Quase não arrisca em suas escalações e faz questão de manter boas novidades do universo da música de fora da Cidade das Artes. Então que este quarteto de vinte e poucos anos de faixa etária tenha vindo nesta edição para fazer a família Medina repensar um pouco os rumos artísticos. Para um evento que já trouxe grandes artistas em seu auge (como B-52’s, Faith No More, Prince, George Michael), ver o Måneskin em ação promovendo uma balburdia cênica e sonora das boas foi o grande alento deste ano. Misturando glamhard rock e power pop com piadas de fluidez de gênero, fizeram a massa cantar em italiano algumas de suas composições (aliás, desde os tempos de Rita Pavone que o Brasil não se entregava tanto a este idioma na música pop), escolheram um seleto conjunto de covers bacanudas e turbinadas (Who, Stooges, Britney Spears, Frankie Valli & The Four Seasons) e ainda encantaram meio mundo de quem estava in loco ou mesmo vendo pela TV. A baixista Victoria de Angelis é um show à parte, com seu ativismo e atitude: adepta do Free Niples, não teve o menor pudor de tocar quase sem roupa e ser tocada por desconhecidos em um duradouro momento de mosh. Ela e seus três mosqueteiros mostraram que rock’n’roll, de fato, é isso daí – atitude, boa música e performance incendiária. Para todo o resto dá para mandar um belo dedo do meio.

Racionais MCs

O dia em que os Racionais MCs foi de glória para o rap e o funk nacional. Antes, os cariocas Papatinho, L7nnon e Filipe Ret abriram os trabalhos no Sunset com classe. Depois veio o também carioca Xamã para mostrar a alta qualidade da nova geração do gênero, inclusive chamando o trio de rappers indígenas Bro MCs para mostrar o quão diverso o gênero pode ser sem perder a classe e a verborragia. Depois veio Criolo, mas para mostrar que o hip hop, em São Paulo, também anda de braços dados com o samba. Superprodução com filminho de abertura, cenografia elaborada imitando um vagão de metrô paulistano, citações ao clássico filme de 1979 sobre rap Warriors: Os Selvagens da Noite, muitos figurantes e dançarinos e um repertório bem porrada que é capaz de reduzir o clássico álbum Sobrevivendo no Inferno a apenas uma faixa (a sempre imprescindível “Capítulo 4, Versículo 3”). De resto, os singles mais novos e tão arrasa-quarteirões quanto (“Quanto Vale o Show?”, “Mil Faces de um Homem Leal (Marighella)” com direito a discurso sobre a figura histórica que inspirou a canção) e clássicos de outros álbuns como “Vida Loka partes 1 e 2”, “Cores & Valores”, “Eu Sou 157”,  “Jesus Chorou” e “Nego Drama”. Aqui veio o momento mais catártico da noite, quando os versos disparados por Mano Brown, Edi Rock e Ice Blue, sob as bases do DJ KL Jay, com a projeção de nomes e fotografias de pretos mortos no Rio de Janeiro pela violência da polícia e da mílicia, inclusive, claro, a vereadora Marielle Franco.

Ratos de Porão

Enfim, o Rock In Rio reparou uma injustiça tamanha! Se o Sepultura vem se apresentando há várias edições, por que nunca convidaram João Gordo e sua banda para tocar antes por lá? Outra das grandes instituições do rock subterrâneo brazuca, o RxDxPx precisou completar quatro décadas de carreira para ser lembrado pelo maior (em tamanho) festival de rock do país. OK que o palco reservado ao quarteto não foi nenhum dos dois principais – ironia das ironias, foi espaço chamado Supernova, dedicado a “novas” atrações. Mas João também não deixou barato em sua performance. Detonou o (des)governo bolsominion várias vezes em seu microfone e dividiu o set list entre faixas do novo álbum (o poderoso Necropolítica) e clássicos eternos dos Ratos. Para completar, ainda teve uma bandeira do MST no palco.

Gangrena Gasosa

Outra instituição do underground nacional, desta vez made in Rio de Janeiro. Aliás, o Gangrena só poderia ter nascido no Rio, para saber misturar tão bem a sonoridade do metal com a cultura da umbanda, inclusive com letras explorando (com ironias e sarcasmo) detalhes deste religião de matriz africana e cada um de seus integrantes personificando uma entidade dos terreiros. O saravá metal do Gangrena pode até ter começado sendo encarado como uma piada, um chiste, mas depois de uma trajetória de quase trinta anos, com direito a pausa nas atividades e uma barulhenta briga judicial pelo direito de uso do nome entre o vocalista e alguns ex-integrantes que fundaram o negócio. O novo Omulú da formação (Dave Sterminium) deu um gás nos vocais mais guturais e realça o contraste com o gogó mais malandro e tradicional de Zé Pelintra (Angelo Arede). A percussão rola solta no meio das palhetadas velozes e é impossível não se contagiar pela fusão sonora cada vez mais competente deste (atual) sexteto. Claro que os trocadilhos dos títulos das canções ainda provocam boas risadas, mas a performance precisa e afiada mostrada no palco Espaço da Favela revelou que muito tesouro precioso pode estar escondido nos locais mais periféricos do festival.

Homenagem a Elza Soares

Um line-up integralmente feminino marcou o último dia do festival, tanto no palco Mundo quanto no Sunset. E engana-se que quem fez o melhor concerto do dia foi a headliner Dua Lipa. Aliás, a melhor do dia nem estava presente no local, quanto mais nesta dimensão. Afinal, Elza Soares é daquelas pessoas que nem David Bowie: descarnam mas continuam por aí, preenchendo nossas vidas com tamanha presença como se estivessem ali, do nosso lado, com uma boa velha amizade. Para entoar um punhado de hinos eternizados na voz de Elza foram convocadas seis vozes tão poderosas quanto a da diva: Agnes Nunes, Mart’nália, Gaby Amarantos, Larissa luz, Majur e Caio Prado (foto acima) – vale lembrar que Alcione também estava escalada, mas teve de cancelar sua participação por causa de uma cirurgia recente. “A Carne” abriu o set cheio de discursos entre as canções e nas letras das mesmas. Pela valorização das mulheres, do universo LGBT, dos pobres, dos pretos, dos favelados. Enquanto for necessário bradar contra as injustiças sociais e de gênero, Elza Soares sempre estará muito viva ecoando em nossos ouvidos. Nem que por meio de outras vozes interpretando as suas músicas.

Music

Érika Martins

Cantora fala sobre os diversos projetos, sua entrada nos Autoramas, a carreira solo, o passado na Penélope e o que ainda está por vir

erika martins

Entrevista por Fábio Soares

Fotos: Léo de Azevedo/Divulgação (Érika) e Divulgação (Autoramas)

Ela é um dos mais famosos rostos femininos do rock brasileiro e vive o melhor momento de sua longeva carreira de pouco mais de duas décadas, iniciada com a banda Penélope e seguida de período solo. Há quatro anos, integra (ao lado do marido Gabriel Thomaz, o baixista Jairo Fajer e o baterista Fábio Lima) o “conglomerado” Autoramas, a mais bem sucedida banda independente brasileira, que no próximo mês de maio viajará à Europa para a sua décima sexta turnê internacional. Não sem antes finalmente tocar no festival Lollapalooza, no Autódromo de Interlagos, em São Paulo. Ou depois subir ao palco Sunset, no próximo Rock In Rio, para ser uma das convidadas especiais dos Titãs.

Antes de uma apresentação na capital paulista, Érika Martins recebeu o MONDO BACANA em seu camarim para uma entrevista. Na pauta, a música como filosofia de vida, a objetificação da mulher no rock e projetos que estão por vir.

No início de sua carreira, nos anos 1990, você teve contato com dois grandes produtores que, infelizmente, não estão mais entre nós: Tom Capone e Carlos Eduardo Miranda. Atualmente, essa figura do superprodutor anda ausente no cenário por uma série de fatores. Na sua opinião, a presença de um grande nome assinando a direção artística de um trabalho ainda é preponderante ou a possibilidade de lançar um trabalho de forma independente não a torna tão necessária assim?

Acho que isso independe da época em que vivemos e que cada década teve o seu grande nome em produções musicais. Não que isso também seja algo primordial na gravação de um disco. No meu caso, tive a sorte e o privilégio de trabalhar com esses dois grandes nomes. Na época das gravações do primeiro disco da Penélope, Mi Casa, Su Casa, a Sony Music nos disponibilizou um grande orçamento para realizá-lo. Para se ter uma ideia, a verba nos possibilitou que o grande Eumir Deodato fizesse os arranjos de cordas do disco. Enfim, tínhamos infinitas possibilidades ao nosso alcance.

Como chegaram ao Tom Capone?

Por indicação do Marcio Melo, artista baiano que tinha, nos anos 1980, uma banda com a Lan Lanh, ex-percussionista de Cássia Eller, e com a Érika Nande, que foi nossa baixista na Penélope. Junto com ele, veio o Antoine Midani, filho do “messias” André Midani, que eu já admirava por seus trabalhos de arranjos de voz com a Marisa Monte.

Imaginei que você tivesse conhecido o Tom Capone através da Constança [Scofield, tecladista da Banda Penélope e viúva do produtor]…

Não! Aí é que vem a história que é sensacional: nosso primeiro encontro com o Tom foi no estúdio para a pré-produção do disco. Quando os dois trocaram olhares, eu já senti a faísca! Se apaixonaram! Assim, Mi Casa, Su Casa foi gravado em meio a uma bolha de amor maravilhosa!

Então você é testemunha de que amores à primeira vista realmente existem!

Sim! Presenciei! E a Constança sempre foi mais séria e cética… Quando a vi apaixonada daquele jeito perguntei a mim mesma: “o que tá acontecendo com minha amiga?” (risos)

E como você conheceu o Miranda?

Com o sucesso da repercussão do Mi Casa… fui convidada para gravar uma participação no disco Só No Forévis, dos Raimundos [Érika participou da faixa “A Mais Pedida”, grande sucesso do grupo e que foi amplamente executada nas rádios]. Recebi o convite em Salvador, sem ter a mínima ideia de como seria minha participação. Fui ao Rio, cheguei no estúdio para gravar e dou de cara com quem? O Miranda! Que já era ídolo de todos nós havia muito tempo. Pra você ter uma ideia, em 1995 saí de Salvador e vim a São Paulo distribuir algumas fitas-demo da Penélope e uma das pessoas que eu já tinha em mente para entregar era o Miranda. Ele foi muito receptivo e disse “pô, já estava esperando esse material faz tempo!”. Quase cinco anos depois estava eu ali, em estúdio com ele. Apesar de ter passado três meses com o Tom na gravação do Mi Casa…, eu era muito jovem e ainda muito verde em gravações. Mas aí veio o Miranda, com toda a paciência do mundo para me ensinar o caminho das pedras. Uma generosidade ímpar. Olhava para ele e pensava: “caramba, é o Miranda… que pressão e responsabilidade!”. Tudo correu bem e foi sensacional. Era um grande produtor.

Quais eram as diferenças mais evidentes entre os dois? Ou eles eram muito parecidos no modo de trabalhar?

O Tom era mais “mão cheia”. Tocava e timbrava os instrumentos como ninguém. Metia a mão na massa de verdade. Já o Miranda tinha o dom de saber extrair do artista o que ele tinha de melhor. Além de ser uma espécie de olheiro de primeira. Tinha uma capacidade surreal de descobrir novos artistas. Um curador de verdade.

Certa vez, vi o Miranda dizer numa entrevista que pesquisava novos artistas de uma maneira quase compulsiva.

Sabe o que era legal no Miranda? Ele ia aos shows! Cheguei a encontrá-lo uma vez num festival em Belém do Pará. Em outra, fiz um show solo em Porto Alegre e quem estava na plateia? O Miranda! Acho que isso está em falta atualmente. Hoje dificilmente você encontra produtores em shows algo que acrescentaria em muito no trabalho deles. Sacar o que está rolando sem beber exclusivamente da fonte da internet.

Já que tocamos no assunto, com pouco mais de vinte anos de carreira, você já pensou em produzir outros artistas? 

Agora faria sim. Antes não me sentia segura o suficiente mas neste momento adoraria pegar um trabalho do zero e colocar meu toque pessoal. Estou mais à vontade.

O que falta é tempo…

Nem me fale! Às vezes acordo e nem sei por onde começar. Tenho os Autoramas, minha carreira solo, Lafayette & Os Tremendões [projeto de Érika e Gabriel Thomaz para releituras de clássicos da Jovem Guarda com a participação de Lafayette Coelho, tecladista e grande nome do movimento], o Chuveiro In Concert [projeto de karaokê ao vivo com banda, realizado na maioria das vezes em eventos corporativos]… É muita coisa! Imagina ter que parar tudo isso pra assinar a produção de um disco! (risos) Depois ainda temos que ouvir que artista não trabalha.

Pegando o gancho dessas diversas atividades que você exerce, em seu pouquíssimo tempo livre ainda há disposição para descobrir novas bandas e artistas?

Sim! Sempre! Até porque recebo quase diariamente em minhas redes sociais muito material de novas bandas. Claro que não dá para ouvir tudo de uma vez mas sempre procuro fazer isso e dar o feedback depois. Nisso acabo descobrindo muita coisa boa e quer saber? Tenho preferência para ouvir o que ainda não está na mídia. É muito prazeroso ouvir artistas em início de carreira e dar força e atenção a eles é o mínimo que posso fazer. E, intimamente, agradecer ao universo por ter tido o privilégio de viver de música.

autoramas2018

Libido é o oitavo álbum dos Autoramas e foi muito bem recebido pela critica especializada, inclusive fora do país. A banda é praticamente uma unanimidade no cenário independente brasileiro. Uma prova disso, foi o recente lançamento da coletânea A 300 Km Por Hora, na qual 41 artistas estão reunidos para homenageá-los. No meio dessa louca rotina que levam, já caiu a ficha de que vocês são um expoente da cena e, por tabela, um exemplo a serem seguidos? Ou então relaxam com relação a isso para que tudo flua naturalmente?

Tenho uma visão mais destacada com relação a este assunto. Estou na banda há quatro anos e convivo com o Gabriel há mais de quinze. Quando a Penélope fez shows no Rio para lançar o Mi Casa…, a gravadora nos pediu uma indicação para banda de abertura e não pensei duas vezes: Autoramas, que eu já adorava desde aquela época. Quando eu casei com o Gabriel passei a “respirar” os Autoramas mais ainda. Mais até do que os próprios integrantes. Lembro de uma vez o Gabriel precisar de um cenário para um show e, como sempre gostei dessa parte de cenografia, eu mesma costurei o cenário. Fora isso, já compúnhamos juntos e eu participava dos discos e shows. Então, mesmo eu não fazendo parte da banda, tinha esta visão destacada do respeito que o público tinha pelos Autoramas e de que sua obra nunca teria um conteúdo raso. Via ao vivo e pensava: “é uma banda para a História, criativa, original, única e com tudo muito inspirado!”, Lembro-me de assistir a documentários de bandas que amo, como Ramones ou Cramps… Quando vejo os Autoramas hoje, logo penso que no futuro ela será lembrada como estes artistas. Exponencial. Por isso me sinto privilegiada. Por ter vivido os dois lados: de fã e integrante.

Sua carreira solo estava muito bem encaminhada e você ainda colhia os frutos do sucesso do álbum Modinhas quando foi integrada à banda. Houve algum momento de hesitação de sua parte em dar este hiato ou aceitou de imediato?

Não pensei duas vezes! Mas isso foi um processo mais que natural tendo em vista que eu já participava da banda de uma forma ou outra. E o convite veio num momento muito apropriado porque eu já havia divulgado muito bem o Modinhas na imprensa. Fiz shows nas principais capitais e no exterior, inclusive. Então, minha entrada nos Autoramas não gerou nenhum tipo de confronto de datas, por exemplo. Eu já estava numa fase de parar e pensar em um próximo projeto. Mas minha carreira solo não acabou não, hein? (risos) Há um novo projeto a caminho que só não está em andamento por conta da grande demanda de nossa agenda. Mas o que queria dizer é que estar nos Autoramas vai muito além da questão artística pura e simplesmente: tem a ver com vida. Tem a ver com o que escolhi para mim. Adoro viajar, conhecer gente, lugares novos, outras culturas e os Autoramas me propiciaram tudo isso. Além, é claro, o fato de poder viajar com o Gabriel, que é meu marido. Antes de meu ingresso na banda, viajávamos pouquíssimas vezes juntos. Era cada um para um lado. Mas, agora, não. Fazemos tudo juntos, viajamos o mundo juntos e tocamos numa banda sensacional. Realmente, me sinto privilegiada em viver tudo isso.

Tocarei num assunto polêmico agora: objetificação da mulher na música. Agora, em 2019, completam-se vinte anos de sua participação no álbum Só No Forévis, dos Raimundos. Uma dúvida paira no ar quando surge a questão se os Raimundos fariam o sucesso hoje em dia devido ao conteúdo de algumas de suas letras, tendo em vista que a questão do feminismo final e merecidamente está em voga nos dias de hoje. Gostaria de saber como você se sentia na época com relação a este assunto. Isso já te incomodava há vinte anos?

Sempre procurei ser um exemplo de ir contra esse tipo pensamento. No início da Penélope, uma de minhas maiores preocupações era justamente peitar essa coisa machista de que “para se fazer rock era necessário ter uma postura masculinizada”. Sempre fui contra isso! Com relação ao convite dos Raimundos, deixei bem claro que não colocaria minha voz ou emprestaria minha imagem ao clipe de uma faixa que tivesse palavrão, putaria ou algo pejorativo do tipo porque meu perfil não é esse. Tanto é que a temática de “A Mais Pedida” é totalmente outra. Sobre o conteúdo de algumas letras dos Raimundos que, por ventura, seriam muito mal vistas hoje em dia, sempre achei meio papo de “turma de fundão”, sabe? Mesmo não concordando, estava lá. Existia. O que sempre pensei com relação a qualquer coisa era: temos que ocupar os espaços! Se o espaço é machista, temos que ocupá-lo sendo a referência do contrário. Muitas meninas me procuravam na época e diziam odiar essa coisa do machismo no rock e viam, na minha figura, alguém que dizia o discurso que elas queriam ouvir. Mas olha só: eu fui projetada pelos Raimundos! O disco da Penélope estava engavetado, na geladeira. Só foi lançado porque “A Mais Pedida” foi o sucesso que foi. Os Raimundos foram a ponte para que eu chegasse a algum lugar. E chegar a esse lugar sendo um exemplo do que é legal. Ser mulher e ter atitude! É preciso ocupar e preencher os espaços. Na divulgação do Mi Casa… fomos convidados para o Faustão e choveram críticas do tipo “que queimação de filme!”. Nem ligamos para isso. Tínhamos de aparecer e levar nosso discurso ao maior número possível de pessoas e levo esse pensamento até hoje. Não concorda com o conteúdo de programa X ou emissora Y? Vá lá e mostre o contrário. Mostre a esse público que só consome X ou Y que há um mundo de outras possibilidades. E se conseguir a fazer com que alguém absorva sua mensagem e se interesse pelo seu trabalho, já terá valido a pena.

Você já tocou em duas edições do Rock In Rio. Neste ano, o Lollapalooza, em sua oitava edição, finalmente convidou os Autoramas para o line up. No festival dos sonhos da Érika, quem tocaria no mesmo dia dos Autoramas?

Cara, tanta banda! Os B-52s, com certeza! Encontramos a Cindy Wilson no ano passado no Festival South by Southwest e foi um sonho! O Cramps também estaria. Dos nacionais, sem dúvida, a Gang 90 com a formação original, com as Absurdettes, seria lindo! Adoraria ter conhecido o Júlio Barroso. Acho que tá bom, né?

Está ótimo! Vocês sempre tiveram uma relação de muito afeto com a Jovem Guarda. Além do Lafayette, vocês recentemente tiveram contato com o Silvio Brito. Elocubração do entrevistador aqui: uma parceria entre Autoramas e Erasmo Carlos. Já pensaram em algo a respeito?

Ele é maravilhoso! Superaberto! Recentemente assistimos à sua biografia no cinema. Ficamos muito emocionados. Mandamos uma mensagem e ele respondeu “muito obrigado, meu casal lindo!”. Sempre foi muito carinhoso conosco e sempre fomos apaixonados por ele. Fazer algo juntos seria mágico! Sempre tivemos muito respeito com o pessoal da Jovem Guarda. A Wanderléa participou do segundo álbum da Penélope (Buganvília, na faixa “Não Vou Ser Má”). Com relação ao Silvio Brito, já temos um projeto em andamento e com o qual estamos ensaiando. Muito respeito por essa turma mais antiga e que nos ensinou e continua nos ensinando demais. Amo escutar as histórias. Certa vez, o Lafayette e o Jerry Adriani ficaram horas contando histórias e ficamos ali, assistindo a isso de boca aberta.

Em maio, os Autoramas embarcarão para mais uma turnê europeia. Quando retornarem, a divulgação de Libido prosseguirá ou vocês darão mais atenção a estes novos projetos?

Libido seguirá a todo vapor, até porque foi lançado há pouquíssimo tempo. Estou louca para que saia logo o clipe de “No Futuro”, minha faixa favorita do álbum.

Creio que seja a favorita de todo mundo!

Pois é! (risos) Estou sonhando com esse clipe mas, como não paramos nunca, um milhão de coisas acontecerão paralelamente. Lançarei o áudio do especial que fiz para o Canal Brasil. Já o Gabriel lançará o disco de seu projeto instrumental, o Gabriel Thomaz Trio. Enfim, não pararemos.

E qual é o limite dos Autoramas?

Não há limite! Trezentos quilômetros por hora são pouco… (risos) Bota trezentos quilômetros por hora nisso!