Music

Gilberto Gil – ao vivo

Por que, aos 80 anos, ele é o artista mais necessário da música brasileira nestes tensos, conturbados e delicados tempos vividos no país

Texto por Abonico Smith

Foro: Priscila Oliveira (CWB Live)

“Tudo que tem um começo também tem um fim”. Assim disse Gilberto Gil um pouco depois de iniciado seu segundo concerto em Curitiba, onde esteve tocando nos últimos dias 27 e 28 de outubro. Logo depois, regeu o primeiro de quatro coros com o nome de Lula entoados pela plateia. Não era mais preciso muita coisa para se ter uma certeza naquela noite: o cantor e compositor baiano é o artista certo e na hora certa, o principal nome da música brasileira para representar e personificar, através de palavras, letras, melodias e harmonias o momento extremamente delicado que o país viveu nestes últimos dias de outubro.

Gil completou oito décadas de idade em 26 de julho. Está em plena vitalidade fisica, cantando (mesmo estando com a voz um tanto rouca desse dia na capital paranaense) e dançando com plena desenvoltura, empunhando e tocando sua guitarra no palco do Teatro Positivo. Tanto que nos últimos meses fez uma turnê de quinze datas por cidades europeias e ainda se apresentou em três conceituados festivais nacionais (Coala, MITA, Rock in Rio). Em todos os shows trazendo alguns familiares (filhos, netos) para integrar a sua banda de apoio. Também veio à capital paranaense para iniciar uma série de apresentações por cidades nacionais com a turnê Gil 80 Anos. Sorte nossa, sorte de quem estava na plateia – inclusive trinta convidados que representavam o MST em cada noite. Como visto recentemente no reality show Em Casa com os Gil, disponível para streaming na Amazon Prime, Gil é aquele avô carinhoso, amável, que desperta não só encantamento em quem está por perto com ainda provoca aquela sensação de calma e bem-estar em decorrência de seus conselhos, comentários e tudo aquilo que diz de maneira curta e rápida.

Foi assim no Positivo durante cerca de uma hora e meia de apresentação. Volta e meia, fosse no intervalo entre as canções ou mesmo durante elas (através de versos certeiros). Começou com as estrofes e refrão de “Tempo Rei”: “Água mole, pedra dura/ Tanto bate que não restará nem pensamento/ Tempo rei, ó tempo rei, ó tempo rei/ Transformai as velhas formas do viver/ […] Mães zelosas, pais corujas/ Vejam como as águas de repente ficam sujas/ Não se iludam, não me iludo/ Tudo agora mesmo pode estar por um segundo”. Na terceira música, unindo sua versão em português e o original em inglês de Bob Marley, decretou em “Não Chores Mais” que “Se Deus quiser/ Tudo, tudo, tudo vai dar pé”.

Mais pro miolo do set iniciou uma série de canções mais lentas. Menos dançantes e um pouco mais reflexivas. “Mais suaves”, como declarou ao microfone. Contudo, a suavidade também desconcerta. Mesmo passados quarenta anos é impossível não se emocionar com “Drão” (“O amor da gente é como um grão/ Uma semente de ilusão/ Tem que morrer pra germinar/ Plantar em algum lugar/ Ressuscitar no chão nossa semeadura”). Para Gil, esta é “uma canção da crença e da fé absoluta no amor eterno”. OK, ela foi composta em um momento de bastante intimidade, o da separação do cantor e da sua então esposa Sandra Gadelha (mãe de Preta, Maria e o falecido Pedro). Contudo, pode servir também em um espectro mais abrangente, com uma leitura mais pro macro voltada ao nosso tão sofrido dia a dia do país, repleto de imoralidades e absurdos que serviram como morte para o nosso amor e a nossa fé.

Antes de iniciar “A Paz”, Gil prossegue com seus ensinamentos: “ela fala sobre a revitalização da vida que se contrapõe a tudo o que tenta destruí-la. “Já para anunciar “Estrela”, recorre a lembranças pessoais e confidencia ao público ter composto os versos inspirado por “uma menina” da cidade que “viu” nascer. No caso, Estrela, a filha mais nova de seu amigo Paulo Leminski. “Éramos jovens e andávamos de noite pelas ruas de Curitiba eu, Paulo e Helinho [Pimentel, fundador da mítica rádio Estação Primeira e hoje administrador do complexo que envolve os palcos e as áreas para entretenimento da Ópera de Arame e da Pedreira… Paulo Leminski!]. Eu vi esta menina nascer e então esta música tem uma semente curitibana”.

Só que Gil impacta ainda por aquilo que não diz, mas também pelo que está implícito em suas músicas. Na primeira parte do concerto, por exemplo, lançou mão de uma sequência de poderosas canções nordestinas. A intenção ali não era apenas saudar a rica cultura musical da região brasileira da qual veio e relembrar um pouco de gêneros que lhe exerceram fascínio e influência desde cedo, como o xote, o baião e o forró. Também era um recado sobre a fortaleza daquele povo um tanto sofrido mas que não só nunca se entrega como também faz valer a sua voz e a sua (força de) vontade. Que elege um presidente que o representa e diz um sonoro não a outro que o despreza. Como dizia Luiz Gonzaga, a ordem agora é “já ir” respeitando os oito baixos!

Ainda tendo como referência seu DNA nordestino, neste show ele voltou a lembrar os tempos de Tropicália e promover assombrosas fusões musicais com gêneros de além-fronteira. No trecho com “Esperando na Janela”, “respeita Januário”, “O Xote das Meninas” e “Eu Só Quero um Xodó” os clássicos surgem emendados por um mesmo padrão de percussão eletrônica. Mestrinho, sanfoneiro e backing de sua banda, abrilhanta os arranjos de reggae de “Não Chores Mais”/“No Woman No Cry” e “Esotérico” com um refinado lamento extraído de seu acordeon. “Realce” e “Palco”, quase meio século depois, ainda arrastam todo mundo para dançar fora de suas cadeiras com a batida disco mesclada à fusão entre rock, jazz e sintetizadores). Por falar em rock, na hora de relembrar com muito peso “Get Back” (devidamente colada à versão em português “De Leve”, assinada e gravada em disco ao vivo de 1977 por Gil e Rita Lee, durante provocativa turnê conjunta para “relançar” ambas as carreiras meses depois de ambos serem detidos por porte de drogas) mostrou o quanto os Beatles foram decisivos na sua carreira.

À parte final do repertório não foram reservados apenas alguns clássicos infalíveis como “Aquele Abraço” (alô, torcida do tricampeão Flamengo!), “Andar com Fé” e “Toda Menina Baiana”. Teve espaço também mais reflexões provocativas de Gil. “Nos Barracos da Cidade” discute sem papas na língua a hipocrisia e a estupidez dos políticos governantes de nosso país (e que em certos casos chegam a “confundir”, na maldade, moradores da favela com ladrões). “Punk da Periferia” é uma ode a tudo aquilo que, embora considerado nojento e fora dos padrões do centrão, confronta o status quo das elites de nossa sociedade. Não à toa, naquela sexta-feira, um monte de gente curitibana, de bem e bem vestida, reagiu com indignação à execução da mesma se levantando das cadeiras e se dirigindo para fora do teatro mesmo antes do fim do espetáculo.

Gil também retomou nesta parte o mode on sabedoria infinita do alto de seus 80 anos de vida. Repetiu várias vezes que devemos “andar com fé porque a fé não costuma falhar”. A poucas horas da eleição mais importante, versos como estes mostraram-se mais do que reconfortantes para quem nunca deixou de crer que o amanhã será um lindo dia da mais louca alegria.

Por fim deu ainda para incendiar mais um pouco a plateia terminados os acordes e batidas na derradeira canção do set list. O eterno doce bárbaro desejou a todos de Curitiba, terra da lava jato e com altíssima adesão bolsonarista, uma “explosiva eleição”. E saiu do palco fazendo com as mãos o sinal do L. Nem foi preciso ter bis do artista mais do que necessário para este nosso conturbado ano de 2022. O concerto todo, extenso, com 21 canções e muitos códigos cifrados em discursos cantados, falados e mostrados, deixou toda aquela noite, às vésperas de toda a tensão no ar da semana anterior ao domingo de votação do segundo turno da mais importante eleição presidencial da História do Brasil, nada mais do que histórica. E confortável.

Set list: “Tempo Rei”, “A Novidade”, “Não Chores Mais”/”No Woman No Cry”, “Vamos Fugir”, “Esperando na Janela”, “Respeita Januário”, “O Xote das Meninas”, “Eu Só Quero um Xodó”, “Drão”, “A Paz”, “Estrela”, “Esotérico”, “Palco”, “Aquele Abraço”, “Andar Com Fé”, “De Leve”/”Get Back”, “Nos Barracos da Cidade”, “Realce” “Punk da Periferia”, “Maracatu Atômico” e “Toda Menina Baiana”. 

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Gilberto Gil

Oito motivos para não perder o novo show do artista, estrela de vários festivais no Brasil em 2022 e que acaba de voltar de turnê pela Europa

Texto por Abonico Smith

Foto: Fernando Young/Divulgação

Ele tem em Abelardo Barbosa, o Chacrinha, celebridade citada em uma das famosas músicas suas, a clássica “Aquele Abraço”. Contudo, quem está com tudo e não está prosa é o próprio Gilberto Gil, que está com a agenda cheia nesta temporada em que acabou completar 80 anos de idade.

Gil acaba de voltar de uma bem-sucedida turnê pela Europa, onde foi acompanhado por alguns de seus descendentes no palco. Também acaba de estrear em streaming o reality show Em Casa com os Gil, onde é o protagonista ao lado de toda a sua família. Participou de grandes festivais brasileiros (MITA, Coala, Rock in Rio), com shows concorridos de público e bastante incensados pela crítica. Também percorre o país apresentando-se aqui e ali, em grandes e importantes cidades, com sua banda de apoio, formada majoriamente por gente que carrega o talento e o sobrenome Gil em seu DNA.

Por estar bastante incensado que todos os ingressos para a sua passagem por Curitiba (Teatro Positivo, dias 27 e 28 de outubro), depois de cinco anos sem cantar na capital paranaense, estão esgotados. Quem sabe alguma mágica acontece e, se você não comprou a sua entrada, algum bilhete “premiado” aparece disponível voando por aí?

De qualquer maneira, aí vão oito motivos para não perder (pode não ser um destes mas que seja algum próximo) um concerto de Gilbert. Gil bem à sua frente

Tropicália

Ao lado do amigo e conterrâneo Caetano Veloso, Gil bolou todos os conceitos, preceitos e possibilidades sonoras do movimento que abalou as estruturas da música brasileira no biênio 1967-1968, provocou muita polêmica e desde então vem, década após década, vem rendendo frutos e discípulos maravilhosos para nossos ouvidos escutarem e os olhos verem em ação nos palcos da vida. Expandindo toda e qualquer fronteira, sempre observando e absorvendo tudo o que pudesse, adentrando as várias regiões do país ou mesmo pegando coisas boas lá de fora. Se não fosse a ação feita pela Tropicália lá atrás, que sacodiu a poeira da estagnação da bossa nova e projetou um belo futuro, onde vieram a se encaixar nomes como Sérgio Sampaio, Walter Franco, Chico Science & Nação Zumbi, Paralamas do Sucesso, Los Hermanos, Ana Cañas, Francisco El Hombre, Charme Chulo e Johnny Hooker, por exemplo.

Família no palco

Com 80 anos de idade completados em 26 de junho e dono uma carreira musical ímpar, Gil agora desfila nos palcos toda a sua generosidade em ceder espaço para seus descendentes (filha/os, neta/os, nora) como integrantes de sua banda de apoio. Aliás, quase todo mundo que o acompanha carrega no DNA traços da família Gil – o que faz pensar o quanto os tentáculos deste sobrenome poderoso de três letrinhas se alastraram pelo Rio de Janeiro e que, de uma ou outra maneira, cada profissional da música que esteja radicado na Cidade Maravilhosa está de uma ou outra maneira, até no máximo seis graus de separação (quando muito isso, olha lá!) de Gilberto Passos Gil Moreira. O mais recente membro do clube com o branding Gil é a neta Flor, de apenas 13 anos, com quem chegou a dividir recentemente os vocais principais, no Rock In Rio, em uma versão bilíngue de “Garota de Ipanema”. 

Reality show

Por falar em família, se você tem acesso ao streaming da Amazon Prime não deixe de assistir Em Casa com os Gilreality show criado pela Conspiração Filmes para documentar – da criação à realização de uma turnê de quinze datas feita meses atrás por alguns países europeus, passando por várias reuniões com a participação de todos os membros do clã, que, de uma ou outra maneira, aparecem em cena passando pelo sítio do artista em Araras, onde ele se isolou durante a pandemia da covid-19. Tem até a bisneta Sol de Maria. É interessante ver toda a dinâmica familiar regida por Gil e a esposa Flora, que coordena não só a carreira do artista como também organiza e rege tudo o que envolve os encontros familiares.

Repertório clássico

Não faz muito tempo que Gil deu uma declaração tão polêmica quanto provocativa: ela passara a gravar pouco ou quase nada porque, de uma forma ou de outra, todas as músicas já haviam sido compostas e registradas. Claro que isso é uma hipérbole, mas não deixa de ser algo que faz pensar. Afinal, quanto mais oferta há de obras e artistas neste oceano que é a internet com suas plataformas de comunicação e divulgação, menos chance de se ter tanto um lugar verdadeiramente ao sol como ainda alcançar uma popularidade que tenha a mesma eficácia ou impacto de outrora. Portanto, nada mais natural também que o repertório da atual turnê de Gil seja um belo passeio por clássicos de várias fases de sua extensa trajetória. Afinal, se Gil conseguiu enfileirar hit atrás de hit nos tempos em que as rádios ainda tocavam a boa música brasileira do presente ou pelo menos algumas belezas não muito conhecidas pela massa, tudo o que menos se precisa enfiar em um show seria um punhado de faixas recentes que quase ninguém conhece ou já ouviu, só pela obrigação de se divulgar um disco novo e a justificativa de fazer (mais) uma turnê.

Laços com o reggae

Um dos destaques do repertório clássico de Gil é a sua forte conexão com o reggae. No disco Realce, de 1979, ele verteu português o clássico “No Woman No Cry”, de Bob Marley (Gil tinha acabado de assinar com a recém-inaugurada filial Warner, que era dirigida pelo seu ex-diretor na Phillips, o já falecido André Midani; Bob Marley era um dos grandes nomes do selo Island, representado em nosso país pela Warner, que inclusive chegou a trazer o artista jamaicano para cá). Vinte anos atrás ele chegou a gravar um álbum (Kaya N’Gan Daya) dedicado só ao gênero, com um monte de releitura de Marley inclusive. E em uma ou outra música tocada ao vivo sua o arranjo traz traços de reggae.

Fase pop

Depois de assinar com a  Warner, Gil também passou a desenvolver uma fase tão pop quanto polêmica. Sem deixar de lado a música brasileira, empunhou a guitarra e soube misturar o popular com o pop. Muitos críticos passaram a torcer o nariz para o Gil dos anos 1980, mas não há dúvida de que dali saiu muita coisa boa que ainda levou o artista a ganhar um público mais abrangente que o das rádios FM voltadas à elite cultural. São desta época pérolas dançantes (como “Palco”, “Toda Menina Baiana”, “Realce”, “A Gente Precisa Ver o Luar”, “Andar Com Fé”, “Vamos Fugir”, “Extra”, “Punk da Periferia”, “Extra II”, “Pessoa Nefasta”, “Nos Barracos da Cidade” e “Não Chores Mais”) e baladas de arrepiar (como “Drão”, “Tempo Rei”, “Super-Homem, a Canção” e “Se Eu Quiser Falar Com Deus”.) Ainda tem obras compostas por ele e gravadoras originalmente por outros artistas na época ( “A Paz”, “Um Trem Pras Estrelas”, “A Novidade”). Muitas destas citadas aí são presença constante no repertório dos concertos mais recentes.

Ex-ministro da cultura

Entre 2003 e 2008, nos dois mandatos presidenciais de Lula, Gil esteve à frente do Ministério da Cultura, rebaixado à condição de secretaria durante o (des)governo de Jair Bolsonaro. Esta não fora a primeira incursão do cantor e compositor na política. Em 1988, então filiado ao PMDB, elegeu-se vereador em sua cidade natal, Salvador. Em Brasília, porém, driblou desconfiança de colegas do meio artístico como os atores Marco Nanini e Paulo Autran, para realizar um bom trabalho na Esplanada dos Ministérios. Afastado dos palcos pero no mucho (como ministro, em seu primeiro ano de atuação, botou as Nações Unidas para dançar durante o Show da Paz na Assembleia Geral da ONU), implementou uma série de políticas públicas voltadas à difusão cultural, em um tempo onde o governo federal ainda se preocupava, de fato, com o desenvolvimento e o avanço da arte. Em tempos onde a cultura brasileira anda tão combalida e arrasada, nada melhor do que uma nova mudança de governo e um novo ministro como fora Gilberto Gil para reerguer toda essa riqueza de volta.

Imortal da ABL

Em novembro de 2021, Gil foi eleito para uma vaga na Academia Brasileira de Letras, por meio de 21 votos, para ocupar a cadeira de número 20. Sua inclusão no quadro de imortais da ABL se deu uma semana depois da de Fernanda Montenegro. Uma mostra não apenas de que a instituição (que em julho último celebrou 125 anos de existência) mostra estar se abrindo para textos não formais da literatura tupiniquim como também mais uma faceta pública de Gilberto Gil que vai além dos palcos, instrumentos e microfones. E ele merece, também. Primeiro porque nas últimas décadas revelou-se um dos mais hábeis autores musicais de nosso país. E também porque já demonstrava uma certa queda para o fardão já na capa de seu álbum de estreia, de 1968, quando posou, com olhar matreiro, para as lentes do fotógrafo David Drew Zingg como um dos personagens daquele projeto gráfico. Portanto, mais de meio século antes e ainda no auge da Tropicália, Gil – cuja posse na instituição ocorreu em 8 de abril de 2022 – já revelava sua paixão para as letras e antecipava aquilo que ocorreria às vésperas de chegar à oitava década na idade.

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Rock in Rio 2022 – ao vivo

Oito grandes concertos para você se lembrar (positivamente) da mais recente edição do festival

Texto por Abonico Smith

Fotos: Cadu Oliveira/Portal RockPress (Gilberto Gil, Ratos de Porão, Gangrena Gasosa); Produção Rock In Rio/Célula Pop (Green Day, Racionais MCs); Reprodução/G1 (Måneskin, Coldplay, Homenagem a Elza Soares)

Mais um Rock in Rio realizado (no Rio de Janeiro, é bom deixar claro, apesar de parecer óbvio demais isso e não ser!) e mais uma coisa grandiloquente marcada por muitos show que, se comparando com as três primeiras edições do evento, mancham a história do evento. Teve Post Malone cantando sem qualquer acompanhamento instrumental ao vivo e ganhando o cachê mais fácil da História. Teve Justin Bieber com a cabeça dando tilt e sendo obrigado a se apresentar para não pagar uma multa altíssima, antes de cancelar todo o resto de sua turnê sul-americana. Teve Megan Thee Stalion enchendo o palco de gente vinda da plateia para compensar a mais profunda falta de performance cênica. Teve Demi Lovato botando uma banda de capacitadas instrumentistas de turnês e estúdios para dar a sensação de que seu power pop era mesmo a última bolacha do planeta. Teve Ivete Sangalo declarando seu voto no 13 (até que enfim!). Teve a esquecida Pabllo Vittar sendo ovacionada ao cantar como convidada no show de Rita Ora. Teve Ludmilla gastando rios de dinheiro em produção para ser headliner do último dia. Teve Luisa Sonza dançando muito e também dublando muito a sua própria voz pré-gravada. Teve Billy Idol se atrapalhando com o som e, segundo disseram as más línguas, esquecendo a letra de um de seus maiores hits, “Eyes Without a Face”. Teve o famoso dia do metal levando um mar de camisetas pretas na primeira das sete noites. Teve neste mesmo dia do metal headliner (Iron Maiden, em sua 765ª vinda ao país) pedindo para tocar antes da penúltima atração (Dream Theater) porque, conforme consta, a idade pesa pro sexteto clássico e eles não queriam ficar pr lá até depois das duas da manhã. Teve o Sepultura fazendo outro crossover musical, agora tocando em conjunto, na abertura oficial do evento, com a Orquestra Sinfônica Brasileira. Teve como primeiro um show de fato do evento um belo cartão de visitas: os power trio Black Pantera e Devotos se unindo para mostrar a força do rock preto brasileiro. Teve Cee-Lo Green fazendo James Brown reencarnar e soltando o vozeirão em grandes clássicos do godfather do funk, acompanhado por uma banda space jazzy viajandona e encantadora. Teve uma homenagem aos artistas nacionais do primeiro Rock In Rio (Ivan Lins, Pepeu Gomes, Alceu Valença, Evandro Mesquita) escanteando os próprios no meio do sanduíche. Teve Dua Lipa sem feder nem cheirar. Teve Djavan pela primeira faz um show para chamar de seu no festival. Teve erros de escalação e transmissão, ambos relacionados à apresentação de Avril Lavigne: ela superlotou o Sunset Stage quando cairia melhor no palco principal, o Mundo e o Multishow cortou o fim da performance dela para mostrar outra que estava começando. Teve obviedades (até quando aturar Capital Inicial e Jota Quest fazendo pela enésima vez o mesmo show?) e teve quem foi muito além da obviedade mas derrapando para o absurdo no meu sentido (como será explicado adiante, no trecho sobre o Coldplay). Ah, sim! Teve ainda o Guns N’Roses vindo pela décima terceira vez ao evento, mais uma vez com a voz de Axl sendo mais rara de ser encontrada do que a barra de ouro dos chocolates de Willy Wonka.

Mas para não perde tempo com aquilo sobre o qual realmente não vale a pena falar, o Mondo Bacana lista aqui os oito concertos que, sim, podem fazer você se lembrar para sempre da ediçãoo 2022 do Rock in Rio (2 a 4 e 8 a 11 de setembro) de um modo positivo.

Coldplay

Existem dois Coldplays na face da terra. Tem o old school, uma grande banda vinda do universo indie, com clássicos que arrepiam multidões até hoje como “The Scientist”, “Viva La Vida”, “Clocks” e “Yellow”. Existe também, infelizmente, o Coldplay 2.0, feito sob medida para a geração Z, aquela para qual festivais de música viraram experiência e concertos devem trazer muito mais do que boa música (aliás, a qualidade dela nem importa mais também!). A atual turnê do grupo de Chris Martin é um circo tecnológico no qual o figurino combina com a cenografia dos instrumentos e das imagens no telão. Tem um palco menor no qual a banda se aproxima bastante do público e pode tocar pertinho lá do miolo. Tem pulseiras distribuídas para toda a audiência presente ao local e que pisca e muda de cor conforme comandados disparados por técnicos da banda, formando assim um pulsante cenário tridimensional abaixo dos músicos, também na horizontal. Tem o grito pela sustentabilidade, algo do qual esses ingleses não abrem mão.  Mas também tem programações eletrônicas que descambam pro playback puro, completado por quatro horrorosas máscaras de animais (ou seriam ETs?) usadas pelos instrumentistas. Tem, nesta hora, um flerte ao TikTok, no qual Chris Martin, depois de cantar, fica simulando uma dancinha como se estivesse correndo sobre o solo do palco que vai formando desenhos abstratos. Tem uma música cantada por uma marionete manipulada em pleno palco (?!?!?!). A entrega de entretenimento do Coldplay foi prejudicada por uma chuva torrencial, que estragou a roupa de cores fosforescentes de Martin e ainda fez pifar um piano eletrônico colocado lá no palco menor junto à plateia mas de nada alterou a euforia do vocalista em voltar a se apresentar no Brasil. Ah também teve erros técnicos de gravação que fizeram o quarteto tocar na sequência duas músicas de novo (“A Sky Full Of Stars” e “Viva La Vida”) e a tenebrosa tentativa de cantar “Magic” todinha em português. No fim das contas, contudo, fã que é fã continua chorando copiosamente ao assistir de perto à banda. Mas quando o senso crítico começa a se fazer valer, percebe-se que eles passaram do ponto do exagero.

Green Day

Show do trio californiano é sempre um petardo. Neste Rock in Rio  não foi diferente. Não tiveram o menor medo de começar com um de seus maiores hits, “American Idiot” e depois enfileirar clássico atrás de clássico, sem dar tempo para a plateia respirar ou os fãs pararem de cantar e se recomporem. Billy Joe Armstrong não é apenas um entertainer de primeira. Ele comanda uma banda repleta de bom humor, que não se leva a sério na hora em que não tem de se levar a sério, que tem um repertório poderoso e sabe equilibrar-se perfeitamente entre a pegada punk e a crocância de uma melodia perfeita levada por guitarras do power pop.

Gilberto Gil

Aos 80 anos de idade recém-completados, Gil não precisa fazer mais nada nos palcos para provar sua genialidade. Por isso mesmo, ao optar pela simplicidade de passear por clássicos das mais diversas fases de seu repertório e escalar uma banda de apoio repleta de integrantes de sua família (filha/os, neta/os, nora), fez um show mezzo dançante mezzo contemplativo e algo de primeira grandeza no Palco Mundo, honrando o passado de glórias e retomando o gostinho daquela fase bem pop mostrada lá no primeiro Rock in Rio, em 1985. Sua generosidade ainda vai além ao chamar a neta Flor, de apenas 13 anos de idade, para sair da linha das backings e dividir os vocais principais em uma versão bilíngue de “Garota de Ipanema” em ritmo de reggae e depois consolá-la durante o choro de emoção da garota. Assim, forma mais uma artista de futuro enquanto revisita eternas pérolas semprepreciosas como “Aquele Abraço”, “Palco”, “Andar Com Fé”, “Não Chore Mais”, “Drão”, “Expresso 2222”, “Tempo Rei”, “Vamos Fugir” e “Toda Menina Baiana”. De quebra, colocou dois b sides como “Barato Total” e  Estrela” para contrabalançar o hit parade e mostrar às gerações mais novas a riqueza e a diversidade de sua trajetória musical.

Måneskin

O Rock in Rio é um festival que prima por apostar no certo e no óbvio. Quase não arrisca em suas escalações e faz questão de manter boas novidades do universo da música de fora da Cidade das Artes. Então que este quarteto de vinte e poucos anos de faixa etária tenha vindo nesta edição para fazer a família Medina repensar um pouco os rumos artísticos. Para um evento que já trouxe grandes artistas em seu auge (como B-52’s, Faith No More, Prince, George Michael), ver o Måneskin em ação promovendo uma balburdia cênica e sonora das boas foi o grande alento deste ano. Misturando glamhard rock e power pop com piadas de fluidez de gênero, fizeram a massa cantar em italiano algumas de suas composições (aliás, desde os tempos de Rita Pavone que o Brasil não se entregava tanto a este idioma na música pop), escolheram um seleto conjunto de covers bacanudas e turbinadas (Who, Stooges, Britney Spears, Frankie Valli & The Four Seasons) e ainda encantaram meio mundo de quem estava in loco ou mesmo vendo pela TV. A baixista Victoria de Angelis é um show à parte, com seu ativismo e atitude: adepta do Free Niples, não teve o menor pudor de tocar quase sem roupa e ser tocada por desconhecidos em um duradouro momento de mosh. Ela e seus três mosqueteiros mostraram que rock’n’roll, de fato, é isso daí – atitude, boa música e performance incendiária. Para todo o resto dá para mandar um belo dedo do meio.

Racionais MCs

O dia em que os Racionais MCs foi de glória para o rap e o funk nacional. Antes, os cariocas Papatinho, L7nnon e Filipe Ret abriram os trabalhos no Sunset com classe. Depois veio o também carioca Xamã para mostrar a alta qualidade da nova geração do gênero, inclusive chamando o trio de rappers indígenas Bro MCs para mostrar o quão diverso o gênero pode ser sem perder a classe e a verborragia. Depois veio Criolo, mas para mostrar que o hip hop, em São Paulo, também anda de braços dados com o samba. Superprodução com filminho de abertura, cenografia elaborada imitando um vagão de metrô paulistano, citações ao clássico filme de 1979 sobre rap Warriors: Os Selvagens da Noite, muitos figurantes e dançarinos e um repertório bem porrada que é capaz de reduzir o clássico álbum Sobrevivendo no Inferno a apenas uma faixa (a sempre imprescindível “Capítulo 4, Versículo 3”). De resto, os singles mais novos e tão arrasa-quarteirões quanto (“Quanto Vale o Show?”, “Mil Faces de um Homem Leal (Marighella)” com direito a discurso sobre a figura histórica que inspirou a canção) e clássicos de outros álbuns como “Vida Loka partes 1 e 2”, “Cores & Valores”, “Eu Sou 157”,  “Jesus Chorou” e “Nego Drama”. Aqui veio o momento mais catártico da noite, quando os versos disparados por Mano Brown, Edi Rock e Ice Blue, sob as bases do DJ KL Jay, com a projeção de nomes e fotografias de pretos mortos no Rio de Janeiro pela violência da polícia e da mílicia, inclusive, claro, a vereadora Marielle Franco.

Ratos de Porão

Enfim, o Rock In Rio reparou uma injustiça tamanha! Se o Sepultura vem se apresentando há várias edições, por que nunca convidaram João Gordo e sua banda para tocar antes por lá? Outra das grandes instituições do rock subterrâneo brazuca, o RxDxPx precisou completar quatro décadas de carreira para ser lembrado pelo maior (em tamanho) festival de rock do país. OK que o palco reservado ao quarteto não foi nenhum dos dois principais – ironia das ironias, foi espaço chamado Supernova, dedicado a “novas” atrações. Mas João também não deixou barato em sua performance. Detonou o (des)governo bolsominion várias vezes em seu microfone e dividiu o set list entre faixas do novo álbum (o poderoso Necropolítica) e clássicos eternos dos Ratos. Para completar, ainda teve uma bandeira do MST no palco.

Gangrena Gasosa

Outra instituição do underground nacional, desta vez made in Rio de Janeiro. Aliás, o Gangrena só poderia ter nascido no Rio, para saber misturar tão bem a sonoridade do metal com a cultura da umbanda, inclusive com letras explorando (com ironias e sarcasmo) detalhes deste religião de matriz africana e cada um de seus integrantes personificando uma entidade dos terreiros. O saravá metal do Gangrena pode até ter começado sendo encarado como uma piada, um chiste, mas depois de uma trajetória de quase trinta anos, com direito a pausa nas atividades e uma barulhenta briga judicial pelo direito de uso do nome entre o vocalista e alguns ex-integrantes que fundaram o negócio. O novo Omulú da formação (Dave Sterminium) deu um gás nos vocais mais guturais e realça o contraste com o gogó mais malandro e tradicional de Zé Pelintra (Angelo Arede). A percussão rola solta no meio das palhetadas velozes e é impossível não se contagiar pela fusão sonora cada vez mais competente deste (atual) sexteto. Claro que os trocadilhos dos títulos das canções ainda provocam boas risadas, mas a performance precisa e afiada mostrada no palco Espaço da Favela revelou que muito tesouro precioso pode estar escondido nos locais mais periféricos do festival.

Homenagem a Elza Soares

Um line-up integralmente feminino marcou o último dia do festival, tanto no palco Mundo quanto no Sunset. E engana-se que quem fez o melhor concerto do dia foi a headliner Dua Lipa. Aliás, a melhor do dia nem estava presente no local, quanto mais nesta dimensão. Afinal, Elza Soares é daquelas pessoas que nem David Bowie: descarnam mas continuam por aí, preenchendo nossas vidas com tamanha presença como se estivessem ali, do nosso lado, com uma boa velha amizade. Para entoar um punhado de hinos eternizados na voz de Elza foram convocadas seis vozes tão poderosas quanto a da diva: Agnes Nunes, Mart’nália, Gaby Amarantos, Larissa luz, Majur e Caio Prado (foto acima) – vale lembrar que Alcione também estava escalada, mas teve de cancelar sua participação por causa de uma cirurgia recente. “A Carne” abriu o set cheio de discursos entre as canções e nas letras das mesmas. Pela valorização das mulheres, do universo LGBT, dos pobres, dos pretos, dos favelados. Enquanto for necessário bradar contra as injustiças sociais e de gênero, Elza Soares sempre estará muito viva ecoando em nossos ouvidos. Nem que por meio de outras vozes interpretando as suas músicas.

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Silva

Cantor capixaba transforma em disco seu show formado por resgate de clássicos da axé music baiana

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Texto por Janaina Monteiro

Foto: Breno Galtier/Divulgação

O músico Silva é do Espírito Santo, mas tem um pezinho no estado vizinho, a Bahia, que gerou um dos ritmos mais genuinamente brasileiros, o axé. Pertencente a uma geração que cresceu embalada por hits de Banda Eva, Banda Mel, Banda Beijo, Chiclete com Banana, Ara Ketu e Olodum, Silva não nega a baianidade nagô presente em seu estilo. Depois de lançar um tributo a Marisa Monte e o autoral Brasileiro, no qual flerta com vários ritmos, o cantor rodou o país com o show Bloco do Silva, cantando ao lado de nomes que brotaram do axé, como Daniela Mercury e Ivete Sangalo.

A apresentação em Vitória, sua terra natal, o projeto se transformou num álbum ao vivo, lançado pela Som Livre, traduzindo-se num tributo merecido a bandas que revelaram algumas das principais estrelas da música popular brasileira, principalmente vozes femininas.  Mais que um aquecimento para o próximo carnaval, o lançamento de Bloco do Silva dá um ar de nostalgia e serve como um resgate da maior festa popular brasileira, que hoje é uma mistura híbrida de funk com sertanejo e pagode em versões de axé.

O repertório com dezenove faixas foi escolhido entre as favoritas de Silva e nos remete àquele velho LP, CD ou K7 com as “melhores da axé music”. Bloco do Silva inicia com a “A Cor é Rosa”, uma evidente homenagem ao gênero, no melhor estilo Caetano Veloso e que foi composta para Brasileiro (lançado no fim do ano passado, este disco mostra um Silva que mergulha de cabeça na MPB, mesclando ritmos nativos, como bossa nova, sempre flertando com batidas eletrônicas).

Depois da abertura autoral, o cantor embala uma série de sucessos radiofônicos das décadas de 1980 e 1990. A Banda Eva surge com “Me Abraça”, “Beleza Rara” e “Alô Paixão”, este um dos primeiros hits da então quase irreconhecível Ivete Sangalo. Ara Ketu é representado com duas músicas: “Ara Ketu é Bom Demais” e “Mal Acostumada”. O axé mais raiz surge nas releituras de “Eu Também Quero Beijar”, lançada em 1981 pelo guitarrista Pepeu Gomes e “Toda Menina Baiana”, de Gilberto Gil. Dessa leva mais saudosista, Caetano é lembrado em “Não Enche”, “A Luz de Tieta” e “Meia Lua Inteira”. Esta última canção é de Carlinhos Brown, que na época (começo dos anos 1990) era percussionista dos shows de Caetano. Também há uma composição de outro Veloso, o filho Moreno, “Deusa do Amor”.

Silva também ressuscitou o Olodum e um pot-pourri com hits das bandas Mel e Beijo. Claro que também não poderiam faltar Chiclete Com Banana e Daniela Mercury. De novidade ainda há mais uma canção autoral que Silva gravou com a cantora pop Anitta – que, aliás, fica bem melhor sem a participação dela.

O disco, enfim, é para os mais nostálgicos e para quem, porventura, pretende introduzir o axé às novas gerações. Um ritmo muito mais agradável de se dançar e ouvir do que novas batidas que tomaram conta da oitava maravilha do mundo, o carnaval brasileiro.