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The Town 2023 – ao vivo

Yeah Yeah Yeahs, Foo Fighters, Bruno Mars, Racionais MCs, Criolo + Planet Hemp, Ney Matogrosso, Garbage e Wet Leg: oito grandes shows do festival

Yeah Yeah Yeahs

Texto por Abonico Smith

Foto: Fernando Schlaepfer/The Town/Divulgação (Yeah Yeah Yeahs), Adriana Vieira (Rock On Board), G1/Reprodução (Ney Matogrosso e Bruno Mars)

Foram apenas cinco dias (2, 3, 7, 9 e 10 de setembro) em relação aos tradicionais sete do irmão bem mais velho Rock In Rio. Dando mais espaço ao pop e limando a programação mais voltada para os amantes do metal em sua primeira, o caçula The Town veio para colocar São Paulo na rota dos concert goers no calendário bienal de descanso do evento carioca.

Realizado no mesmo Autódromo de Interlagos que sedia outros megafestivais da capital paulista (como o Lollapalloza, o GPWeek e o Primavera Sound BR), o The Town proporcionou gigs intercaladas entre os dois palcos principais e passou a dar maior importância e visibilidade aos artistas nacionais. Mesmo ainda sendo escalados, em sua maioria, antes das atrações estrangeiras, os brazucas em nada deixaram a dever tanto em matéria de produção, grandiosidade, majestade e recepção de público. Em alguns casos, inclusive, fizeram shows melhores do que quem veio depois. Em outros, foram headliner de (muito) respeito em um desses palcos.

Mondo Bacana destaca agora oito motivos que fizeram os tais concertos marcarem a estreia do The Town no calendário de festivais em verde e amarelo.

Yeah Yeah Yeahs

Já faz um tempo que o uso da palavra diva anda bem banalizado. Pelo menos no terreno da música pop. Outrora utilizado para chamar as cantoras principais das óperas, que sempre soltavam o vozeirão nos palcos, o termo hoje serve para chamar qualquer artista do gênero feminino que se apresenta com mais atributos do que o de cantar, como interagir com quinhentos bailarinos, rebolar e fazer mil e uma trocas de roupa durante o concerto. Por causa da forte sensualização, há um grande apelo de adoração do público LGBTQIA+. Seguindo essa linha de raciocínio, então, estaria correto dizer que Karen O é tudo menos diva? Não, nada disso! E ela simplesmente divou no The Town com uma performance espetacularmente teatral, indo do figurino luxuoso e megacolorido aos irônicos gestuais característicos do mais poseur dos roqueiros empastichados em cima de um palco. O começo com a atmosférica “Spitting In The Edge Of The World” (uma das poucas do novo álbum Cool It Down incluídas no set list) deu a largada para uma hora fenomenal em um dia de peso (artisticamente falando também) e que ainda contou com outras grandes bandas como Garbage, Wet Leg e Foo Fighters. Hits dos três primeiros discos (“Zero”, “Cheatd Hearts”, “Maps”, “Heads Will Roll”, “Gold Lion”, “Y Control”) vieram contrabalançados por b-sides que funcionam muito bem ao vivo (“Pin”, “Soft Shock”, “Shame And Fortune”), muito graças ao ótimo entrosamento entre as texturas da guitarra de Nick Zinner, a bateria escandalosamente jazzy de Brian Chase e o multiinstrumentista David Pajo (Slint, Tortoise, Zwan), que se divide entre teclados, baixo e segunda guitarra. Como se não bastasse tudo isso, Karen ainda brindou, no final, o público com muito sarcasmo frente ao machismo que por muito tempo imperou no rock, colocando o microfone em sua boca e enfiando o mesmo sob a calça. O gran finale foi arremessando o mesmo algumas vezes com muita fúria ao chão. Tem de ter muito culhão para divar tanto assim frente à macharada.

Ney Matogrosso

No primeiro dia do The Town ele fez uma participação mais do que especial. Ao cair da noite sirenes tocaram e o artista entrou no palco para reviver o número com o qual abriu a primeira edição do Rock In Rio, lá no longínquo mês de janeiro de 1985. Naquela época, ele ainda encarnava nos palcos uma evolução da criatura andrógina e mascarada que fez os Secos & Molhados virarem febre nacional entre 1973 e 1974. Afinal, em sua carreira solo continuou rebolando de peito e pernas nuas e cheio de badulaques e adereços. Ney Matogrosso tem, hoje. 82 anos. Você acha que está muito distante daquele passado? Nananinanão. Permanece altamente sensual, enlouquecendo homens e mulheres com seu gás, fulgor e vitalidade. Dança, agacha-se, rebola feito um garoto. A voz, ainda cristalina e marcante. O repertório, claro, provocativo como de costume. Sem muitas novidades, apresentou no festival um show baseado em sua mais recente turnê (e que, por sua vez, gerou um DVD).O repertório é pinçado no que de melhor o pop rock brasileiro entre os anos 1970 e 2000: de Rita Lee a Paralamas do Sucesso,  de Ednardo a Sergio Sampaio, de Raul Seixas a Cazuza. Muitos dos versos cantados por Ney tornam-se provocações ao statussociopolítico do país desses últimos anos (afinal, o disco de origem à tour e ao audiovisual é de 2019, o primeiro ano de desgoverno guiado pelo inominável). Portanto, um octogenário primordial aos nossos tempos e mais incendiário que muito moleque com uma guitarra a tiracolo.

Wet Leg

Foi deveras comovente ver Hester Chambers chorar copiosamente na metade da apresentação enquanto ficava quietinha, sentada ao lado do amplificador. Era muita emoção para ser segurada por uma jovem que foi alçada rapidamente ao estrelato mundial e ainda se vê no meio de todo o furacão da fama e do reconhecimento, tocando para uma multidão de cem mil pessoas. Quer dizer… cem mil pessoas se contar todo mundo que estava no autódromo. Com o esquema dos palcos intercalados, o quinteto inglês levou azar ao ser escalado como headliner de um deles. Afinal, sobrou o horário exatamente antes do Foo Fighters para entrar em ação, o que explicava o cenário bem esvaziado de público – afinal, se para qualquer um ficaria bem difícil concorrer com um headliner como Dave Grohl, imagina para uma banda formada durante a pandemia e que só lançou o disco de estreia no ano passado. Mesmo assim, quem ficou lá para ver a dupla dinâmica Hester e Rhian Teasdale não só ganhou uma performance formidável como também teve o privilégio de ver uma banda tocando em nosso país em plena ascensão ou auge (coisa que, talvez, só possa ser comparado a quem assistiu ao Nirvana em 1993 ou ao Arcade Fire em 2005 ou ao Killers em 2007). Em contrapartida, as meninas e seus três mosqueteiros mostram uma coisa no palco que poucas bandas que tocam para multidões parecem ter: todo mundo estárealmente se divertindo ali no palco, não apenas exercendo um papel profissional, por mais que goste de sua profissão. Talvez pela fama meteórica ainda estar sendo absorvida, talvez pelo lado pessoal extremamente brincalhão das duas (que se reflete também em letras absurdamente bem-humoradas quando não nonsense puro). Mas o fato é que a presença de uma banda como o Wet leg em solo brasileiro ainda faz ter esperança que o rock ainda possa permanecer descompromissado, juvenil e barulhento, com um pé e meio fincado ali na sonoridade da explosão do rock alternativo americano do fim dos anos 1980 e começo dos 1990. A hora dos gritos intensos e descontrolados em “Ur Mum” ou o misto de exclamação e interrogação de “What?!” no hit “Chaise Longue” são bons exemplos.

Racionais MCs

Existem cada vez mais duas certezas a cada grande festival no Brasil. A primeira é a de que o rap é o novo rock – ou melhor, cumpre hoje a função de contundência sonora e desobediência verborrágica que o rock cumpriu perante a juventude até pouco tempo atrás. A outra é barbada: Racionais hoje são o melhor grupo do Brasil. Quando se apresentam ao vivo em grandes espaços não tem para ninguém. Mesmo quando enfrentam como adversidade um dilúvio como o que caiu em São Paulo na primeira noite do The Town. O repertório não precisa trazer nenhuma novidade, bem verdade. Já com várias de suas músicas mais consagradas, como “Capítulo 4, Versículo 3”, “Mil Faces de Um Homem Leal (Marighella), “Jesus Chorou”, Nego Drama”, “Mano na Porta do Bar” e as duas partes de “Vida Loka”, Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e o DJ KL Jay – com o acréscimo de um monte de dançarinos, coral, mais dois DJs e o luxuoso acompanhamento de toda a Orquestra Sinfônica de Heliópolis em várias músicas – lavaram a alma de quem já estava encharcado por fora na pista Interlagos. As batidas e os graves ficaram mais brilhantes com o acréscimo de metais e cordas. Cenicamente, com a ajuda de toda a figuração devidamente fantasiada, coreografada e ensaiada, também é uma coisa de encher os olhos. Faz parecer – como se precisasse – que o discurso que Brown e seus asseclas fazem nos microfones fica ainda mais incisivo.

Criolo + Planet Hemp

Se o rap é o novo rock, o que dizer então quando um dos maiores rappers da atualidade chama uma superbanda de rock que ama e faz rap também para dividir o palco? O resultado é uma apresentação mais pungente, ensandecida, barulhenta e muito mais vigorosa do que as da tarde, com muito funk e trap para o delírio do público mais jovem. Criolo veio antes ao palco, com um repertório calcado em obras mais recentes até emendar clássicos da carreira como “Não Existe Amor em SP”, “Subirusdoistiozin” e “Grajauex”. Aí veio a ex-quadrilha da fumaçapara fazer aquele feat especial e tudo ficar ainda mais pesado na segunda parte do set. “Distopia”, gravado por ambos artistas, já começou mandando o recado: “Os que detém o poder precisam ter medo, medo do povo/ […] Tá tudo errado, irmão/ Então pega a visão/ Pobre defende rico/ Empregado, o patrão/ Político vira herói/ Juízes, super-heróis/ Estão acima das leis/ Acima de tudo, acima de nós”. A força das entonações de Marcelo D2 e BNegão, com o acréscimo de Criolo, tornou-se avassaladora. “Jardineiro não é traficante”, rezou o refrão da cancão seguinte, “Jardineiros”, emendada com “Convoque Seu Buda”, do repertório do paulista, que, por sua vez, propõe a união de culturas religiosas para que se tente superar a violência social. No fim do set list, claro, orgasmo proporcionado por “Mantenha o Respeito” e seu poder irresistível de abrir rodas de pogo e fazer o povo berrar o refrão aplenos pulmões.

Garbage

Shirley Manson é uma baita vocalista. Não só pela voz firme, forte, segura, mas também por todo o apelo cênico. Roupa estilosa, olhar hipnotizante, gestos certeiros. Não há como não se render a ela quando está à frente do palco. Abrindo os serviços do palco principal no dia do rock alternativo, Manson e o trio de produtores macacos-velhos do Garbage (o baterista Butch Vig mais os guitarristas Duke Erikson e Steve Marker) fizeram uma apresentação correta, de qualidade, sem, contudo, fazer os povo tirar o pé do chão do autódromo. Meio que repetiram o esquema de dois diantes mostrado em Curitiba, com apenas uma ou outra troca de música no set list. Primeira metade, morna. A cover industrial de “Cities In Dust”, de Siouxsie & The Banshees, fazendo a virada de página e trazendo uma parte final mais quente e comunicativa, com os principais hits da banda (“I Think I’m Paranoid”, “Stupid Girl”, “Vow”, “Push It”). De novo, também, o destaque ficou para “Only Happy When It Rains”, que começa lenta, melancólica, bluesy, ao piano somente, para depois explodir no indie pop dançante de refrão com uma só frase tão assertiva quanto chiclete: “Pour your misery down on me” (“Despeje em mim a sua angústia”). 

Foo Fighters

Se o rock não dinossauro ainda carrega multidões para os estádios no Brasil, muito disso é culpa do Foo Fighters. Comandado por Dave Grohl e formado por músicos que passaram por importantes bandas nascidas e oriundas do underground americano (Nirvana, Nine Inch Nails, Sunny Day Real Estate, Germs, Devo), o FF é um amálgama poderoso do que de melhor existe na música feita por guitarras. Ali estão sementes plantadas pelo punk rockpost-punk (também chamado de new wave), hard rockblues rockhardcore… Por falar em hardcore, cada vez mais, no conjunto de obras pinçadas ao vivo de toda a trajetória discográfica, fica mais evidente a gênese do grupo no emocore. Refrãos explosivos, guitarras furiosas, riffs matadores, vocais estrategicamente berrados, andamentos ora acelerados ora mais lentos: todos elementos gerados nos porões do circuito independente americano dos anos 1980, fermentado por bandas seminais como Embrace e Rites Of Spring (que depois dariam origem ao Fugazi) mais Gray Matter, Fire Party, Hüsker Dü, Moss Icon, Policy Of 3 e Still Life. Por emocore, vale lembra, entenda o berço musical que desembocou em gerações posteriores que acabariam definidas pelos nomes de pop punk e tão somente emo. No set, o sexteto despejou uma saraivada de hits e levou o público ao delírio. Foi uma espécie de agradecimento a quem os ajudou a se manter vivo após a tragédia ocorrida no começo do ano passado, com a morte de Taylor Hawkins na Colômbia, e um pagamento pela dívida dos shows cancelados no resto da turnê sul-americana, incluindo o do nosso Lollapalooza. Só que quem esteve na passagem da banda por Curitiba dois dias antes percebeu que o set list de SP foi um pouco menor (faltaram duas músicas em Interlagos) e que na capital paranaense Dave mostrou-se mais empolgado e com mais gás. No fim das contas, entretanto, isso não afetou muito o resultado da troca com a plateia bastante emocionada.

Bruno Mars

Das cinco noites ele foi a atração principal de duas, curiosamente os dois domingos. E foi o headliner que fez esgotar em apenas uma hora TODOS os ingressos de ambos os dias voltados para a música dançante. A expectativa pela sua vinda era alta, o cachê também. O astro havaiano não decepcionou: entregou um show vibrante a seus fãs, que mostrou o porquê de ser um dos grandes nomes da música pop americana dos últimos anos. Sua performance foi impecável. Na voz, nos falsetes, no comando coreográfico de sua banda (os instrumentistas faziam também a parte dos bailarinos), nos arranjos. Tudo bem que muita gente pode considerá-lo um sub Michael Jackson ou ainda uma tentativa de soar como o trio Police, mas é justamente aí que reside aí o maior talento de Mars: trafegar fluidamente entre o pop, o soul, o rock… e o populismo! Afinal, a plateia veio abaixo quando o tecladista de sua banda mandou uma base instrumental de “Evidências”, logicamente comandada por um coro de cem mil vozes. Se alguns hits pipocaram durante o set list, o final com “Just The Way You Are” e o bis com “Uptown Funk” (parceria de Bruno com Mark Ronson) levou ao êxtase quem foi vê-lo.

Sports

Pelé – Parte 1

Do maior craque do futebol de todos os tempos a Edson: a divindade transcende o homem que se tornou o brasileiro mais conhecido do planeta

Texto por Fábio Soares

Fotos: Reprodução

Ao morrer, na tarde deste 29 de dezembro de 2022, Edson Arantes do Nascimento era a pessoa física mais conhecida do planeta Terra. Rei em outro planeta (chamado Bola), transformou o ofício de seu esporte num ato tão simples quanto tomar um copo d’água.

Na véspera de sua despedida do Santos, no dia 2 de outubro de 1974, ele era dúvida para a partida devido à sua condição física. Entretanto, declarou um pouco antes: “Jogo até de muletas!”. Na vitória santista contra a Ponte Preta por 2 a 0 não marcou mas monopolizou as atenções do mundo ao ajoelhar-se de braços abertos no círculo central, aos 22 minutos do segundo tempo.

Para além da questão futebolística, a imagem de Pelé transcendia a estética fotográfica. O Rei negro com uniforme branco e número 10 às costas transformou-se em ícone pop que encantou, inclusive, Andy Warhol, que imortalizou seu rosto numa serigrafia em 1977 – obra esta que foi arrebatada por US$ 855 mil, cerca de R$ 3,58 milhões num leilão da Christie’s, em Nova York, em novembro de 2019.

“Te conheço há um bom tempo. Sou uma pessoa muito mais curiosa do que vocês imaginam. Inclusive, canto samba. Qualquer dia vamos cantar um samba”, teria dito o artista ao Rei. Coincidência ou não, o álbum The New Brazil’ 77, de Sérgio Mendes, encontrava-se estourado nas rádios norte-americanas.

O mundo de sonhos de Pelé com contornos de parque de diversões dentro dos gramados, no entanto (e por muitas vezes), contrastou com atitudes nada elogiáveis do homem Edson Arantes do Nascimento. Como a falta de engajamento político, a constante onipresença ao lado de presidentes americanos e sobretudo o modo como deixou-se ser usado pela ditadura militar de Médici com ares de alienação. “A gente sabia de muitas coisas que aconteciam no país, mas outras não”. Houve ainda a forma inacreditável que lidou com a questão de sua filha biológica Sandra Regina (morta em 2006). Tudo isso escancarou o lado “santo com pés de barro”, o homem com muitos defeitos, a pessoa real por trás do personagem. 

Desde 1957, quando passou a defender o time dos profissionais do Santos, Pelé é um, Edson é outro. Assim como Diego era um, Maradona era outro e Ziggy Stardust era um ser distinto a David Bowie. Pelé ganhou tr6es Copas do Mundo (o único a consgeur tal feito até agora) em quatro disputadas. Ele elevou o futebol ao status de arte e, como artista, descolou-se de seu corpo físico. Um dos únicos casos da história em que a divindade superou o homem, superou a própria história e o próprio país. Um rosto que, de tão popular, em todo o planeta, teve o mesmo alcance de símbolo máximo de uma religião.

Morre o homem, fica o Deus.  E deuses não morrem. Até para ateus.

>> Leia aqui a parte 2 desta homenagem a Pelé