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Aftersun

Cineasta estreia com um dilacerante drama sobre amadurecimento e a relação da filha de 11 anos com o pai emocionalmente abalado

Textos por Leonardo Andreiko e Janaina Monteiro

Fotos: 02 Play/Mubi/Divulgação

Há filmes que desde o início prendem nossa atenção. Anunciam sua chegada e, com presença de espírito, nos catapultam para dentro de si e ocupam nossas mentes até o final. Não raro eles também sabem encerrar sua estadia, seja por meio de uma conclusão narrativa ou deixando-nos abertos à incerteza. Na vida, contudo, o fim de uma história raramente é anunciado. Nosso último encontro com alguém não vem acompanhado do letreiro onde vem escrito “fim”. Aftersun (Reino Unido/EUA, 2022 – O2 Play/Mubi), queridinho da crítica mundial e arrebatador de premiações deste ano (incluindo o Troféu Bandeira Paulista, para novos diretores na Mostra de São Paulo), consegue o feito de fazer os dois.

O longa-metragem, primeiro da diretora escocesa Charlotte Wells, retrata uma viagem de Calum (Paul Mescal) e Sophie (Frankie Corio), sua filha de 11 anos, para um resort no Mediterrâneo. Em meio às atividades de férias, mergulhos e jantares, acompanhamos o amadurecimento do olhar de Sophie sobre o mundo, a conflituosa relação de Calum consigo mesmo e o movimento de aproximação–distanciamento de pai e filha.

Wells tece um delicado véu que unifica os muitos percursos temáticos que Aftersun explora, de modo que consegue abordar questões socioeconômicas, melancólicas, psicológicas e até mesmo de coming of age mantendo um filme coeso e direcionado. É sob a decupagem simples (mas não minimalista) de suas cenas que a diretora projeta os diferentes estados de espírito que permeiam sua obra. É simples pela movimentação desperturbada: o interesse nos planos longos e nos detalhes em cena. O fora-de-campo cumpre uma função essencialmente especulativa (por imaginarmos o que se passa para além das câmeras), mas também de tensão – as elipses, omissões simbólicas e a subexposição esmagadora do mar à noite são aspectos constitutivos da forma da obra. Não somente floreiam o que se passa como discursam sobre ele, o expandem.

O resultado, primoroso de certo, é um filme que carrega consigo a complexidade de duas vidas, e não somente a superficialidade de uma trama, uma mera premissa. Enquanto Sophie descobre relações, modos de interação e o romance que permeia a vida, a operação emocional de Calum é praticamente oposta. A pré-adolescente se encontra num movimento de afastamento da magia do jogo, do karaokê e da infância, partindo ao mundo dos interesses românticos e das nuances adolescentes, que faz florescer seu próprio desejo ao mesmo tempo que descobre e se interessa pelo desejo do outro. Seu mundo é o hotel, suas piscinas e o fliperama. Em paralelo, seu pai não consegue desvencilhar-se do próprio passado, das próprias aspirações e da opressão do mundo à volta. Seu desejo é sempre presente, mas reprimido – fuma escondido de sua filha, projeta saídas de problemas materiais para além da viagem, preocupa-se com o dinheiro e rememora o passado sem noção certa do futuro.

Das muitas sequências memoráveis, vejo aquela em que Calum almeja o tapete sem poder comprá-lo como uma das mais potentes. Em um quadro repleto de tapetes, empilhados sobre os demais numa espécie de sótão/estoque, irrompem Calum, Sophie, o vendedor e um tapete estendido ao chão, no qual o protagonista finca o olhar. Não é o desejo pelo artefato que o interessa, mas a capacidade de carregar consigo as histórias daqueles que o teceram.

Em um jogo de cena entre esse plano conjunto e um tocante close-up de Paul Mescal (que desde Normal People, série que projetou o astro às telas mundiais, é uma marca de sua carreira), o delicado olhar da direção faz o papel de nos impor a realidade emotiva que vive o protagonista. Em crise por não ver no tempo presente cumpridos seus sonhos de criança e muito menos os próximos passos na vida adulta, Calum se deita num de muitos tapetes e respira – busca sentir a história, mas não é capaz de tê-la.

Pincelando sua narrativa com o recurso da filmagem caseira que marcou o final dos anos 1990 e o começo do novo milênio, Wells opera uma exploração vívida da psique de suas personagens e o poder cristalizador da matéria-prima do cinema: o vídeo. São muitas as instâncias em que as brincadeiras de Frankie segurando a câmera, bem como os registros mais aterrados e “documentais” de Calum, são monumentos da memória, revelando ao espectador um passado muito latente e carregado de afetos. Não à toa, em dado momento, a espectadora é a própria Frankie, já adulta, que ao assistir as filmagens rememora e reinterpreta sua história e relação com o próprio pai.

Aftersun é, sem dúvidas, um dos lançamentos mais potentes deste ano, um sopro de ar fresco sobre o claustrofóbico e agonizante cenário das franquias intermináveis e lançamentos decepcionantes. Esse é um filme que emociona ao ser assistido, mas também é um dos raros que emocionam ao escrever sobre. Charlotte Wells, ao trabalhar a partir de sua própria memória, parece recuperar uma constatação óbvia, mas não menos potente: não há letreiro de “fim” para anunciar o último encontro. E é isso que os torna especiais. (LA)

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Gatilhos mentais podem ser acionados de várias maneiras, fazendo revisitar memórias guardadas nas mais profundas gavetas e que trazem à tona calafrios e sensações nada agradáveis. Tem gente, por exemplo, que associa assistir a vídeos caseiros a uma certa melancolia. Talvez porque saiba que quando alguém querido, da família, se for, essa é uma das formas de se perpetuar as lembranças, sejam elas alegres ou não. 

Por isso, assim que a personagem Sophie (a estreante Frankie Corio) aperta o play no registro de suas férias na Turquia com o pai Callum (Paul Mescal) só tive uma certeza: a de que seria engolida por uma imensa onda gigante de nostalgia, chamada Aftersun (Reino Unido/EUA, 2022 – O2 Play/Mubi).

Quando este primeiro longa-metragem da escocesa Charlotte Wells terminou, fiquei atônita por alguns momentos na frente da tela. E mesmo que eu tentasse me desvencilhar de tudo aquilo que havia assistido nos últimos cem minutos não conseguia recuperar o fôlego de jeito nenhum. Não conseguia me soltar daqueles fragmentos de uma história avassaladora. 

Charlotte me deixou completamente hipnotizada pela narrativa desenhada de forma melancolicamente deslumbrante para mostrar o período em que um pai separado, de 30 e poucos anos, e sua filha pré-adolescente de 11 passam juntos.

Do início ao fim, a diretora nos proporciona um mergulho na relação entre os dois, mostrando a paternidade por um viés diferente daquele que costumamos ver no cinema. Podemos lembrar de vários longas, por exemplo, como o delicado O Mundo de Jack e Rose, protagonizado por Daniel Day-Lewis, mas dificilmente algum título supere Aftersun no quesito profundidade.

Em entrevistas à imprensa estrangeira, Charlotte revelou que concebeu o filme a partir do momento em que se deparou com álbuns de fotografias antigas da família. Portanto, existe muito de autobiográfico no roteiro assinado por ela. 

Ao passo que o espectador é apresentado aos protagonistas, é possível perceber também que Charlotte busca uma certa inspiração na sua compatriota Lynne Ramsay, também conhecida por dirigir filmes complexos sobre as fraquezas humanas de uma outra perspectiva, como fez com o também avassalador Precisamos Falar Sobre Kevin

Aftersun é muito mais que uma história sobre a conexão entre pai e filha. É sobre o vazio, o desespero. Sobre ter de sorrir e zelar pela vida de outra pessoa enquanto se está dilacerado por dentro. Para traduzir essa relação delicada de afeto e dar pistas do estado mental de Calum, Charlotte nos brinda com muito plano detalhe, como na cena em que mãos de pai e filha se unem, e movimentos de câmera sutis, quando enquadra os livros de meditação dispostos em cima de uma estante.

Em início de carreira, Paul Mescal (o galã de Normal People) se mostra gigante quando de costas consegue representar com seu choro desesperador toda a agonia da personagem. Frankie Corio é a personificação de toda pré-adolescente, que faz suas descobertas e não tem papas na língua ao falar as verdades para o pai. 

Para contextualizar a época, a cineasta recorre a objetos e outros artifícios: a filmadora de Sophie, o walkman de Callum, as canções que marcaram a época, como “Tender”, da banda de britpop Blur. Assim, pouco a pouco, vamos nos guiando por fragmentos dessa viagem registrada pelos olhos de Sophie. E nos dando conta do sofrimento de seu pai e a luta dele para sobreviver. Seja quando ele diz para a ex-mulher, numa cabine telefônica, que ainda a ama (“Por que você disse eu te amo pra mamãe?”, pergunta Sophie logo em seguida). Seja na cena do karaokê em que a filha, ao contrário de todas as outras vezes, canta sozinha. E uma das cenas mais arrebatadoras do filme é, sem dúvida, a “última dança” de Callum ao som de “Under Pressure”.

Depois de Aftersun, será difícil ouvir a canção de David Bowie com o Queen sem se lembrar dessa estreia arrebatadora de Charlotte Wells. (JM)

Music, Videos

Clipe: Moby – This Wild Darkness

Artista: Moby

Música: This Wild Darkness

Álbum: Everything Was Beautiful, And Nothing Hurt (2018)

Por que assistir: À esta altura, com o álbum já disponível nas lojas e plataformas digitais, todo mundo já sabe que o novo trabalho do Moby traz um tom bastante apocalítico. As letras foram todas inspiradas no romance Matadouro 5, que fala sobre as feridas nunca cicatrizadas provocadas na mente de uma testemunha sobrevivente da Alemanha bombardeada Segunda Guerra Mundial. Musicalmente, para imprimir um tom mais emocional às novas faixas, o cantor, compositor e produtor resolveu retomar o caminho traçado duas décadas atrás, no cultuadíssimo Play, quando desacelerou as batidas eletrônicas (trip hop) e promoveu o casamento com as raízes da música popular norte-americana (blues, gospel, spiritual). “This Wild Darkness”, estrategicamente colocada lá no final do disco, dá o desesperançoso tom necessário à mensagem que Moby quis passar nesta obra: a sua mais absoluta perda de fé na capacidade humana de convivência e de tocar com sobriedade os rumos deste planeta. Por isso, as estrofes, sempre faladas, mostram as autorreflexões de um homem solitário e à beira da loucura. Elas se intercalam a um refrão gospel, guiado por backings da melhor escola dos corais vindos das igrejas dos EUA e cujos versos suplicam pela intervenção de uma luz divina (“Oh, nesta escuridão/ Por favor, ilumine meu caminho/ Ilumine meu caminho”). O mesmo tom é impresso às imagens do clipe, que misturam tons de ficção científica (tal qual a clássica obra literária, humanista e pacifista, criada por Kurt Vonnegut) com a sugestão de um vindouro e inevitável fim da Terra. Ouça a música e veja o vídeo. Depois responda para você mesmo a esta simples pergunta: tem como não se arrepiar?

Texto por Abonico R. Smith

Music, Videos

Clipe: Moby – Like a Motherless Child

Artista: Moby

Música: Like a Motherless Child

Álbum: Everything Was Beautiful, And Nothing Hurt (2018)

Por que assistir: Considerado um dos melhores romances em língua inglesa de todo o século 20, Matadouro 5 (Slaugherhouse-Five, no original) traz a perspectiva de uma pessoa que carrega na memória uma ferida bem aberta: a de ter assistido ao bombardeio feito pelos aliados à cidade alemã de Dresden quando lutava na Segura Guerra Mundial. Seu autor, o escritor Kurt Vonnegut, que viu de fato o bombardeio, resolveu escrever uma história antiguerra, de viés pacifista. Para isso, criou um personagem chamado Billy Pilgrim, que veio do interior americano, não tem problemas com dinheiro, viaja no tempo e para outros planetas e revisita diversos momentos de sua própria vida. A narrativa, bastante fantasiosa e satírica, mistura melancolia e ironia, sarcasmo e tristeza. O livro foi publicado em 1969, enquanto ocorria a Guerra do Vietnam, o que o levou a ganhar muitos e muitos fãs pelo mundo a partir de então. Um desses fãs é o cantor, compositor e multiinstrumentista Moby, que resolveu usar a obra literária como inspiração para todo o seu próximo álbum. Deixando de lado qualquer abordagem política e se concentrado apenas em questões humanistas, ele compôs as doze faixas para lançar ao mundo alguns dos mesmos questionamentos que Vonnegut fizera meio século atrás. Quem somos como espécie? Por que os humanos têm feito escolhas tão terríveis e escandalosas? Uma das faixas que tenta procurar respostas que levem a algum tipo de iluminação é “Like a Motherless Child”, cujo refrão é embalado pela voz de Raquel Rodriguez, cantora residente na cidade de Los Angeles, a mesma para a qual Moby decidiu ir após abandonar a vida louca vida que levava em sua Nova York natal. Para criar mais impacto musical à sua nova obra, ele também decidiu desacelerar o ritmo e retomar o flerte com o trip hop e o gospel, elementos que marcaram o mais clássico de seu álbum, Play, de 1999. O clipe feito para a faixa traz ainda um certo ar de mistério e desamparo pós-apocalíptico, com bela fotografia em p&b e os dois artistas solitários na amplidão de um largo, extenso e vazio mundo. Como diz o título, aliás, “feito uma criança sem mãe”.

Texto por Abonico R. Smith